Análise do Filme "O Príncipe das Marés"1
Vanessa Marques Sonego2

 

Escolhemos este filme porque é um trabalho sensível e que mostra as diversas facetas do trabalho e da subjetividade dos trabalhadores de forma sutil, porém reveladora. Mesmo que ele não enfoque o trabalho dentro da organização, da instituição tradicional, ele consegue expressar o espaço que o trabalho ocupa na vida das pessoas e qual a importância disso.
A concepção de trabalho a partir da qual analisamos o filme é a de DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Por um trabalho, fator de equilíbrio. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, 33(3):98-104 Maio/Junho 1993. p. 99), que nos diz que o trabalho:

"É, também, um 'ofício' ou um 'emprego', é uma atividade, uma reflexão, um savoire-faire, uma fonte de interesse, uma causa de fadiga, mas também um meio de desenvolvimento.(...) o trabalho é, também, um fator essencial de nosso equilíbrio e de nosso desenvolvimento (o grifo é nosso)."

Certamente, é uma visão do trabalho bastante ampla, mas parece transmitir com clareza nossa idéia a respeito do assunto. Os indivíduos despendem boa parte de seu tempo trabalhando. Se ele não for adequado as necessidades de cada sujeito, pode trazer conseqüências funestas para o mesmo, como a doença.

O enredo

O filme narra a história da vida de Tom, um professor de Inglês desempregado casado que repentinamente precisa ir a Nova Iorque para cuidar de sua irmã gêmea, que tem depressão severa e tenta cometer suicídio. Seu casamento está em crise, sua relação com seus pais não é boa e ele precisa ir para uma cidade que ele detesta. Chegando lá, a terapeuta de Savannah lhe pede que ele seja a "memória" da irmã para ajudá-la a prosseguir com o tratamento, uma vez que a comunicação com a paciente é muito difícil.

O trabalho da terapeuta

Susan é uma terapeuta que está tratando Savannah em uma de suas tentativas de suicídio. Para tanto, precisa entender a origem do quadro depressivo e assim necessita de algum familiar que ajude no tratamento de Savannah, agindo como sua "memória". A pedido da mãe, Tom, seu irmão gêmeo, aceita a proposta. Inicia-se, então, um trabalho de revivência da infância da irmã e da família e à medida que episódios traumáticos são relembrados, permite-se a reelaboração de traumas e vivências dolorosas por parte de Tom e da compreensão do funcionamento familiar e dos contratos que foram sendo firmados entre eles, bem como os sentimentos que emergiram ou permaneceram imersos.
O trabalho da terapeuta de fazer Tom sentir a dor que fora negada permitiu, conseqüentemente, sentir o amor e a realização na vida afetiva e profissional. O que destacamos neste trabalho são: a empatia, como capacidade de se colocar na situação do outro, associada à capacidade de compreensão, conduzindo a uma reflexão de seus sentimentos e comportamentos segundo o desejo e a necessidade do paciente, além da flexibilidade da terapeuta em manejar as resistências do paciente e as suas, utilizando percepção e sensibilidade desenvolvidas. Ainda cabe ressaltar que o trabalho psicoterápico é um trabalho de parceria entre terapeuta e paciente, pois implica em comprometimento de ambas as partes, onde os dois trabalham de forma interdependente, fazendo uso de uma conexão transferencial que visa justamente o fim desta dependência, para que o paciente possa fazer da reflexão um exercício constante.
No campo a subjetividade assim se expressa DIÓGENES (DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento Hip Hop. São Paulo: Annablume, 1998.):

"As tramas da subjetividade que tencionamos compreender têm início no complexo e desconhecido da nossa própria subjetividade. A nossa subjetividade, essa eterna desconhecida, se desvenda para nós, em todo processo de investigação, como matéria-prima dos esforços de decodificação das representações do outro, do desconhecido e como argila para que se possa moldar um mapa possível de interpretação de experiências estrangeiras e, muitas vezes, exiladas da nossa própria compreensão."

A subjetividade da terapeuta influência diretamente sua conduta, bem como a subjetividade do paciente. Essa subjetividade também se constrói no trabalho.
Entretanto, temos de reconhecer que neste esforço de "nunca desistir de um paciente", a terapeuta rompe a relação profissional, cometendo a falha ética de se envolver romanticamente com seu paciente. À medida que isto foi permitido a terapeuta "abandonou" o seu paciente, conquistando um parceiro sexual. A partir de então percebemos como a contra-transferência mal manejada pelo terapeuta pode prejudicar, e neste caso, acabar com a relação transferencial. Em última análise, há uma confusão de papéis, uma vez que a analista perde a capacidade de funcionar como um "espelho", ou seja, refletindo o que o paciente precisa perceber e não consegue, e termina projetando nele seus problemas pessoais (no caso a traição de seu marido), tentando resolvê-los com o próprio paciente através de seu envolvimento amoroso.

O trabalho do professor

Tom é uma pessoa aparentemente feliz, já que demonstra possuir grande senso de humor, muitas vezes sarcástico, progressivamente descobre ser este seu "escudo" de defesa contra as agressões e desajustes familiares, um comportamento reativo que desencadeia um péssimo relacionamento com sua mãe, crise conjugal e situação de desemprego. Porém, enquanto se processa o trabalho psicoterápico, chega-se ao ponto em que seu entendimento e o de Savannah, sua irmã, se encontram: o estupro sofrido por ele, seus irmãos e a mãe quando eram crianças, e que foi tratado como um segredo entre eles por toda vida. À medida que esse sofrimento latente consegue achar expressão através das palavras na psicoterapia, também se inicia sua expressão mais autêntica em termos profissionais e afetivos - a busca da reconciliação com sua mulher e a busca por atuação profissional na sua área de formação. Tom aceita ser a memória de sua irmã Savannah no trabalho psicoterápico, aceitando a possibilidade de se entender, se curar, se reorganizar e, assim, poder amar e trabalhar de fato, já que naquele momento a vida lhe parecia sem perspectivas.
Ele afasta-se da família (mulher e filhas), da cidade litorânea onde mora e passa a olhar-se, a olhar suas crises, seus desajustes, que de modo extremo foram expressos por Savannah em sua tentativa de suicídio. A depressão latente familiar havia deixado de ser segredo, pois não era mais possível negá-la e suportá-la como havia ocorrido durante todos os últimos anos. Neste momento ele encontra coragem para encará-la. Embora para sua irmã , a consequência fora quase catastrófica, para Tom nem tanto, já que se mostrou mais adaptado, apesar de alguns desajustes de inserção familiar e profissional. Lentamente, o trabalho deste paciente é de se "aquecer", se "preencher", de sentir, transformando sua frieza, seu vazio e sua angústia, mascarados por seu senso de humor sarcástico, em formas de expressão autênticas, reais e não distorcidas. Ele gradualmente reconquista sua capacidade de amar e trabalhar, passa a viver uma relação afetiva com Susan, permitindo-se sentir afeto, que estava "congelado" em sua relação com sua esposa pelo processo de embotamento. Tom também se insere numa proposta alternativa de trabalho, como treinador de futebol americano do filho de sua terapeuta, e a descarga psíquica, física e afetiva que esse trabalho lhe proporciona é também uma forma de exercitar suas vias de descarga preferenciais, atuando como fator de equilíbrio naquele momento.
O tratamento psicoterápico atinge seu objetivo quando Tom retorna à sua atividade profissional e à relação amorosa em que ele havia investido sua libido: as aulas de inglês e a convivência familiar, tanto com sua mulher e filhas, como com sua mãe e seu pai.
De acordo com DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Op. Cit. p. 1.):

"O trabalhador não chega ao seu trabalho como uma máquina nova. Ele tem uma história pessoal, que se concretiza por uma certa qualidade de suas aspirações, de seus desejos, de suas motivações e de suas necessidades psicológicas. Isto confere a cada indivíduo características únicas e pessoais, que combatem o mito do 'trabalhador médio' tão ao gosto do taylorismo."

Considerando que Tom estava vivendo um momento de tensão nervosa ao rememorar situações angustiantes de seu passado, associada à necessidade financeira, surge a proposta de trabalho de treinador de futebol americano. Essa atividade, considerando suas aptidões físicas, sua motivação para o esporte e sua necessidade psicológica momentânea de uma atividade psicomotora de descarga de tensões, é a ideal naquele momento. Então o trabalho aparece como meio de desenvolvimento e fator de equilíbrio.
Sobre outro enfoque, queremos analisar a profissão de Tom, que no filme aparece sendo subestimada por seu status social. Um exemplo evidente disso nos mostra uma passagem do filme em que Tom e sua mãe discutem. Ela diz: "Por que você não procura algo melhor para fazer?", ao que ele replica com a seguinte frase: "Mas eu sou um professor!" Nesta cena, a questão do trabalho como provedor de uma posição social é explicitamente abordada. Este "lugar" na sociedade será maior ou menor de acordo com os valores defendidos pelo sistema sócio-econômico vigente. "Presos" às concepções neoliberais, tendemos a supervalorizar o individualismo, dentro da lógica capitalista. A atividade de docência, a primeira vista, poderia parecer completamente "out", já que com a crise da "sociedade de trabalho" assistimos a uma recusa do papel central do trabalho, porém ela permite a defesa do nocivo fenômeno atual do estranhamento, que segundo ANTUNES ( ANTUNES, Ricardo. A centralidade do trabalho hoje. In: FERREIRA, Leila.(org) A sociologia no horizonte do século XXI. São Paulo: Boitempo, 1997. ):

"Se o estranhamento é entendido como a existência de barreiras sociais que se opõe ao desenvolvimento da individualidade em direção à omnilateralidade humana, à individualidade emancipada, o capitalismo de nosso dias, ao mesmo tempo que, com o avanço tecnológico, potencializou as capacidades humanas, fez emergir crescentemente o fenômeno social do estranhamento, na medida em que este desenvolvimento das capacidades humanas não produziu necessariamente o desenvolvimento de uma subjetividade cheia de sentido..."

Embora o professor seja um trabalhador assalariado, sua atividade é extremamente saudável, pois existe o poder de escolher e transformar seu modo operatório, permitindo uma sociabilidade e variedade de atuações intensas. Recorrendo à DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Op. Cit. p. 1.) novamente:

"No trabalho, igualmente, pode-se constatar como uma tarefa regular, fixa, repetitiva, imutável é perigosa para os trabalhadores. Lá, também, a variedade, a possibilidade de escolher seu modo operatório ou de mudá-lo são certamente mais favoráveis à saúde que a monotonia e a constância impostas."

O trabalho da poetisa

Encontrando-se num quadro agudo de depressão, Savannah encontra em seu retorno ao trabalho de escrever poesias um caminho de reestruturação de sua vida, um canal de comunicação com o mundo real, e ao mesmo tempo uma fonte de esperança e de desejo. Por isso, esse trabalho artístico será terapêutico no quadro da depressão, favorecendo a psicoterapia, já que é um instrumento de expressão. O trabalho movido pelo desejo permitirá um retorno à saúde, como nos mostra DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Op. Cit. p. 1.):

"A saúde é a existência da esperança, das metas, dos objetivos que podem ser elaborados. É quando há o desejo. O que faz as pessoas viverem é o desejo e não só as satisfações. O verdadeiro perigo é quando o desejo não é mais possível. Surge, então, o espectro da 'depressão', isto é, a perda do tônus, da pressão, do elã."

O trabalho do aspirante a jogador de futebol americano

Vivendo um impasse entre realizar o desejo do pai de se tornar um violinista virtuoso e seguir seu próprio desejo de se tornar um jogador de futebol americano, o filho da terapeuta enfoca a necessidade de ajustar o trabalho ao seu aparelho psíquico, lutando para concretizar seu desejo.
Para DEJOURS (Ibid. P. 103.), "o trabalhador, em função de sua história, dispõe de vias de descarga preferenciais, que não são as mesmas para todos e que participam na formação daquilo que se chama estrutura da personalidade." A tarefa exige atividades psíquicas fantasiosas e psicomotoras em quantidade suficiente? Esta é a questão fundamental e resume toda problemática da relação entre o aparelho psíquico e o trabalho.
Diante desta observação, associada à problemática surgem algumas questões importantes: Tocar violino era uma atividade psicomotora em quantidade suficiente para o filho de Susan? Ou ainda: o trabalho de violinista correspondia à sua estrutura de personalidade?
Percebemos claramente no filme que, à medida que esse adolescente consegue exercitar seu desejo, atenuam-se sua rebeldia e sua contestação, parecendo mais feliz, ou de acordo com DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Op. Cit. p. 1.):

"O bem estar psíquico não provém da ausência de funcionamento, mas, ao contrário, de um livre funcionamento em relação ao conteúdo da tarefa. Se o trabalho favorece esse livre funcionamento, ele será fator de equilíbrio; se ele se opõe, será fator de sofrimento e de doença."


O trabalho do violinista

Embora apareça timidamente no filme, o violinista (marido da terapeuta) é um profissional de sucesso em sua área, reconhecido internacionalmente, e que nos mostra algo muito interessante: uma supervalorização de seu ofício e, particularmente, de sua competência como músico, como artista, em detrimento das demais profissões, o que gerará um conflito familiar.
Esse conflito se estabelece entre pai (violinista) e filho (aprendiz de violinista, mas aspirante a jogador de futebol americano), a partir do momento em que o primeiro tenta impor sua vontade, de que siga a mesma carreira, ao segundo. Uma constatação importante é de que essa imposição, de algo que deveria ser uma escolha pessoal, e que é arbitrariamente decidida pelo pai é o fato de que isso não parecer derivar de uma falta de conhecimento das outras possibilidades de atuação e inserção. Ao contrário, esta atitude autoritária e intransigente provém de alguém que sabe que existem infinitas possibilidades de atuação no mundo do trabalho, porém essa pessoa reconhece somente seu ofício, ou pelo menos o meio social no qual ele está inserido, como possuidor de real valor social, digno de reconhecimento e admiração, pois sabemos que o trabalho proporciona uma colocação social, um certo status.
A posição desse pai é narcísica, pois ele não considera que a atividade que lhe realiza, e que exige mais trabalho intelectual do que trabalho físico, possa não satisfazer seu filho, uma vez que as descargas preferenciais não são as mesmas para todos e devem adaptar-se a estrutura de personalidade do indivíduo para não causar sofrimento psíquico.
Há também a possibilidade dele estar considerando apenas a continuidade de seu trabalho e a manutenção de seu status social. Mas também sabemos que a centralidade que o trabalho têm na vida das pessoas perpassa todas as questões do sujeito (individuais, familiares, sociais) fazendo com que o indivíduo utilize o mundo de seu trabalho como referência de modo muito forte. Esta centralidade do trabalho está ligada à lógica do capital, uma vez que o trabalho abstrato cumpre papel decisivo na criação de valores de troca.
Esta determinação do mundo do trabalho sobre o modo de vida do trabalhador apresenta uma contradição, segundo ANTUNES (ANTUNES, Ricardo. Op. Cit. p. 5.):

"...os segmentos mais qualificados e intelectualizados,(...) que poderiam estar dotados, ao menos objetivamente, de maior potencialidade anticapitalista (...) são exatamente aqueles que têm vivenciado, subjetivamente, maior envolvimento e subordinação por parte do capital."

Conclusão

Percebemos que o filme aborda formas de trabalho que permitem a expressão do desejo, através de um livre funcionamento em relação ao conteúdo da tarefa. As profissões de ofício, como o trabalho artístico (a poetisa, o violinista), o trabalho liberal (terapeuta) e a atividade de docência (professor) permitem uma maior expressão da individualidade e da criatividade, pois os indivíduos não se encontram "presos na armadilha da estrutura estratégica" (ENRIQUEZ, Eugène. O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 37, n. 1, p. 18-29 Janeiro/Março 1997.) e ainda consegue ser sujeitos do seu próprio desejo. Segundo DEJOURS (DEJOURS, DESSORS e DESRIAUX. Op. Cit. p. 1.):

"... a organização do trabalho é suficientemente flexível, para que o trabalhador possa organizá-lo e adaptá-lo a seus desejos, às necessidades de seu corpo, às variações de seu estado de espírito. Assim, por exemplo, o trabalho de ofício, como o vemos no artesanato, deixa, freqüentemente, o trabalhador livre para sua organização."

Para que isso seja possível, é imprescindível considerar como se constitui a subjetividade do trabalhador, como ele a reconhece. O modo de produção capitalista não favorece essa construção de uma subjetividade mais autônoma do trabalhador, colaborando para que ele padeça de sofrimentos físico e psíquico, e ainda se sinta culpado por não corresponder às exigências muitas vezes desumanas feitas pelo mercado de trabalho. Como disseram NARDI, TITTONI e BERNARDES (NARDI, TITTONI e BERNARDES. Subjetividade e trabalho. In: CATTANI, A. (org) Trabalho e Tecnologia: Dicionário Crítico. Petrópolis: Vozes; Porto Alegre:Ed. Universidade,1997).:

"A temática Subjetividade e trabalho está inserida no campo de conhecimento que busca analisar o sujeito trabalhador, definido a partir das vivências e experiências adquiridas no mundo do trabalho. Neste sentido, concebe o sujeito como atado às normas sociais e construído nas tramas que definem tais normas, opondo-se às concepções de sujeito autônomo e livre, associadas à idéia e indivíduo. (...) A noção de indivíduo concebido como a forma do sujeito moderno (FOUCAULT)"


Notas

1 - Texto produzido na cadeira de Organizações e Relações de Trabalho I (UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS)
2 - Graduanda em psicologia pela UNISINOS. e-mail: [email protected]


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