O Desemprego e Relações de Poder
Este trabalho busca integrar alguns
pontos abordados no filme "O Quarto Poder", com questões referentes
aos conceitos de trabalho/desemprego/poder. Para tanto, focaremos nossa discussão
em dois pontos principais: a questão do desemprego, retratada no filme
pela personagem Sam Baily (John Travolta) e as formas de poder que perpassam
o mundo do trabalho, foco este representado no filme pela personagem Max Brackett
(Dustin Hoffman).
Este filme conta a história de um segurança de um museu que foi demitido e retorna a seu antigo local de trabalho para reivindicar seu emprego. Porém, este homem é retratado como muito ansioso. Sam leva consigo uma arma e munições a fim de que possa fazer com que a diretora do museu o escute. Neste ínterim, o repórter Max Brackett estava realizando uma entrevista com a diretora do museu, a história destes dois homens se cruza. O ex-segurança dá um tiro acidental no seu ex-colega de trabalho e Max encontra ai uma oportunidade de executar uma matéria que lhe trará a repercussão que sua carreira necessita.
No auge do capitalismo, que assola não somente os países de terceiro
mundo, uma das características do campo social que mais se destaca é
o desemprego. Cada vez mais é difícil conquistar um novo emprego,
em função das transformações crescentes no campo
do trabalho. Os vínculos empregatícios estão diminuindo,
o trabalho informal está se expandindo. Em meio a estas transformações,
percebemos que muitas pessoas se estagnaram. É necessário, neste
contexto, pensarmos em novas formas de relações de trabalho e,
principalmente, numa maneira de expandir as informações para as
pessoas que não tem acesso a elas em função do seu auto
custo. Todas estas mudanças, juntamente com o avanço das novas
tecnologias, nos mostram uma triste realidade: a exclusão social.
Antigamente, era a tradição que garantia ao sujeito um lugar na
sociedade, na pós-modernidade, este lugar só será obtido
através do emprego, só quem está empregado merece respeito.
Somente será reconhecido quem desempenha funções que são
necessárias (e esperadas) pelo capitalismo (Wickert, 1999). Desta forma,
o sujeito só é sujeito se estiver empregado. O emprego pode ser
entendido assim como forma (única) de possibilidade de subjetivação.
Wickert (1999) ainda ressalta que o trabalho é considerado como porta
de acesso ao lugar social, pois este só terá sua existência
reconhecida caso produza. O desemprego, neste contexto, torna-se foco de angústia
através de sua longa duração que traz consigo o desprezo,
a humilhação, dentre outros sofrimentos psíquicos. Carmo
(apud Wickert, 1999) coloca que "o sentimento de fracasso, de exclusão
social, e a sensação de ser facilmente descartável afetam
profundamente o desempregado" (p. 69).
Tittoni e Nardi (apud Wickert, 1999)
colocam que o desemprego, enquanto vivência, desencadeia um rompimento
dos traços identificatórios que estruturam a identidade do trabalhador.
Quando isto não é substituído por outras formas de exercícios
da subjetividade, acaba por se traduzir em sofrimento psíquico. Max pergunta
a Sam, em determinada parte do filme, o que ele pensou quando pegou a arma.
Sam coloca que, quando pegou a arma, pensou nos filhos. "Se perco o emprego,
perco a casa, os benefícios...não posso cuidar deles se perco
os benefícios". É inerente a situação de estar
desempregado a má condição financeira, pois não
há condições mínimas de saúde, de vestimentas
e alimentação, o que prolonga o estar desempregado uma vez que
estas condições se retroalimentam (Silva, 1997).
Este ponto também é
refletido quando Sam coloca que, quando foi demitido, não conseguiu contar
para sua esposa. "Todo dia visto o uniforme como um idiota, entro no cinema
e passo o dia todo lá...".O medo do desemprego não afeta
somente o indivíduo, mas também toda a sua família. Aparecem,
nesse contexto, as desavenças familiares dado ao estado emocional do
trabalhador que torna-se alterado. Certamente este fato reflete nos filhos,
pois estes sofrem com o conflito e com a desagregação familiar
(León e Iguti, 1999).
Sam é vítima desta
triste realidade, o museu, com sua crise econômica, vê-se obrigado
a cortar custos. Surge assim o desemprego. A dificuldade em encarar e aceitar
esta situação levou Sam a abordar agressivamente e sem controle
sua ex-chefe. Ela, no entanto, o tratou com desprezo e sem dar espaço
para abrir novas possibilidades de trabalho remunerado. "Não acha
que meus problemas aqui são maiores que seus problemas financeiros? Meu
trabalho é cuidar do museu, e não de suas carreiras", fala
a diretora do museu frente às solicitações de Sam. Aí
há um exemplo do individualismo e egoísmo social, pois esta personagem
está preocupada em manter seu nível financeiro e deixar intacto
o patrimônio familiar sem preocupar-se em dar algum suporte para as dificuldades
financeiras de seu ex-funcionário. O desemprego também acarreta
a violência social urbana, o empobrecimento da maioria da população,
o aumento das desigualdades sociais e a exclusão da participação
social (León e Iguti, 1999).
A privação material
não é a única conseqüência da exclusão
de um cidadão do mercado de trabalho, há igualmente a restrição
dos seus direitos, sua segurança socioeconômica e sua auto-estima
(Pochmann, 1999). Pochmann (1999) também nos coloca que "a sua generalização
(a perda do emprego) por longo tempo pode implicar, muitas vezes, a maior fragilidade
ante os demais riscos da sociedade, pois o quase pleno emprego foi uma das principais
garantias do Estado de bem-estar social" (p. 21).
O emprego, para Sam, aparece como
a forma predominante de sua subjetivação. O segurança sente-se
valorizado e reconhecido socialmente através do seu trabalho. Sam, acuado
pelo sistema que rege a sociedade, não consegue vislumbrar outras possibilidades
de trabalho. Aí percebemos que sua criatividade cristalizou-se, não
sendo possível para ele entrar novamente no mercado de trabalho. Cabe
ressaltar aqui que a criatividade que é valorizada em nossa sociedade
é somente aquela que serve ao sistema, que gera lucros para o capitalismo.
A criatividade, como força produtora de novos fazeres que possibilitam
a inserção social das minorias (que, na realidade, é a
maior parte da população...), não encontra eco em uma organização
capitalista que preza o utilitarismo e a produtividade. Toda esta opressão
acabou, no filme, por gerar a violência de Sam que, a princípio,
não era intencional, ou seja, o "querer ser escutado" transforma-se
em "ter que ser escutado à força"... Neste momento,
Max sentiu-se seduzido a conquistar seu sucesso novamente a partir deste "furo"
noticiário que está por ser construído a partir desta situação.
A partir daí, podemos perceber
a relação que Max mantém com seu trabalho. O individualismo
desponta na figura dos jornalistas retratados no filme. Max exalta esta condição
quando, sem pensar na dimensão que o ocorrido tomaria, transforma um
episódio ansiogênico em uma bomba relógio que ativará
o seu sucesso novamente. Max usufrui da ansiedade de Sam e do fato acidental
do disparo para engendrar uma situação, por ele programada, que
irá perder o controle e se transformar a todo momento. Na verdade o jornalista
não queria ajudar o ex-funcionário do museu, o que pretendia era
manipular o ocorrido em seu próprio benefício. Max fala para a
diretora do museu: "isso é bom para minha carreira e para o museu
também". Aí se fazem presentes às relações
de poder que transformam o caráter humano. Sam, por não ter tanto
acesso à informação, deixou-se levar pelas idéias
ambiciosas de Max.
O que em uma certa época
tínhamos como caráter, ou seja, o companheirismo, a cumplicidade,
a cooperação, entre outros; hoje se transformou em ganância,
ambição, uma noção de descartabilidade. O caráter
está se diluindo em meio a uma organização de trabalho
onde impera a flexibilidade que representa relações de trabalho
com fracos laços, onde a rotatividade impera. Aquele indivíduo
que não se preocupa com o estabelecimento de um vínculo está
crescendo profissionalmente e encontrando todo o tipo de espaço para
trabalhar. Esses sujeitos são aqueles que, ao sugarem todo o conhecimento
que o local pode lhes fornecer, tranqüilamente se demite para ir em busca
de novos conhecimentos e de um novo local para potencializar suas habilidades
ainda desconhecidas. Nossos novos líderes apresentam este tipo de características
irrigado pela noção capitalista da produtividade e lucro acima
de tudo.
Neste contexto aparece no filme
a figura da estagiária que é designada para trabalhar com Brackett.
Ela mostra-se muito dedicada, esforçada e cooperativa. Porém,
quando surge a oportunidade de crescer profissionalmente a partir do contato
com o jornalista-âncora da famosa emissora, a estagiária corrói
uma noção de caráter que suspeitávamos que ela teria
deixando-se levar pela ambição profissional. Mal sabia ela o que
estava fazendo, ou melhor, ajudando a destruir a vida de dois trabalhadores
(Sam e Max). Sam, no final, concretamente foi diluído a cinzas pela ganância,
egoísmo e pelo poder da mídia. Neste instante Max se deu conta
do que havia provocado a um sujeito que já estava com um sofrimento bastante
significativo devido a sua situação de desemprego e vulnerável
a ponto de embarcar numa viagem sem volta: a da mídia. Estes jornalistas
a que referimos brincaram com a vida de Sam, armaram um jogo sujo que lhe custou
caro, não só o prejudicaram como a toda a sua família.
Ao exercerem este poder, acabam por destruir toda e qualquer noção
de caráter.
Podemos pensar a atitude dos jornalistas
à luz da noção de imediatismo proposta por Sennett (1999).
Muitas pessoas preocupam-se com sua ação em um tempo imediato,
não refletindo sobre as conseqüências futuras de suas ações.
Essa característica está em voga, o que promove a procura de jovens
profissionais que sejam dinâmicos, ao contrário dos profissionais
rígidos e conservadores que vão aos poucos perdendo seu lugar
no competitivo mercado de trabalho. Com isso não queremos fazer juízo
de valor em relação às características dos trabalhadores.
Outra questão que se coloca, e é refletida nas atitudes dos jornalistas do filme, é a noção de ousadia. Esta é muito procurada para preencher as vagas das empresas e demais locais de trabalho. No mundo onde a moda e o descontraído estão em alta, a ousadia toma conta destes novos profissionais que a cada dia estão se transformando a partir das mudanças do nosso mundo de trabalho. Surge ai uma questão importante: quem se adapta e consegue suportar e modificar-se com as novas exigências sociais, conquista um espaço no mercado.
Referências Bibliográficas
LEÓN, Letícia M.; IGUTI, Aparecida M. (1999). Saúde em tempos de desemprego. In: GUIMARÃES, Liliana Andolpho M., GRUBITS, Sônia. Série saúde mental e trabalho - Vol. 1. São Paulo: Casa do Psicólogo.
POCHMANN, Márcio. (1999). O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto.
SILVA, Edith S. (1997). A interface desemprego prolongado e saúde psicossocial. In: SILVA FILHO, J., JARDIM, S.. A danação do trabalho. Rio de Janeiro: Te Cora.
SENNET, Richard. (1999). A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record.
WICKERT, Luciana Fim. (1999). O adoecer psíquico do desempregado. Psicologia: ciência e profissão. Ano 19, Nº 1.
Notas
1
- Texto produzido na cadeira de Organizações e Relações
de Trabalho I, abril de 2001. (UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS)
2 - Graduandas em psicologia pela
UNISINOS. e-mail: [email protected]