Elisabeth Roudinesco argumenta
no seu livro "Por Que A Psicanálise?" que as movimentações
da sociedade cobram terapêuticas que deêm respostas mais rápidas.
Dentro dessa manifestação contemporânea as terapias de curto
prazo e os psicofármacos tornam-se uma opção que vai ao
encontro do contexto atual.
Já na primeira parte do livro (A derrota do sujeito) ela expõe
sua visão pontuando que o homem moderno é o contrário de
um sujeito. Contrário na medidade que vive uma ilusão de liberdade,
sem levar em conta a história. O tempo para assimilar a história
parece estar sendo subtraído a cada instante.
"O indivíduo depressivo
sofre ainda mais com as liberdades conquistadas por já não saber
como utilizá-las. (...) ... a era da individualidade substituiu a da
subjetividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita,
de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história,
o homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito.
(...) ... liga-se a redes, a grupos, a coletivos e a comunidades, sem conseguir
afirmar sua verdadeira diferença." pp. 13-14
A autora critica fortemente o curar proposto pelos modelos terapêuticos que divulgam seu olhar sobre as manifestações sintomatológicas dos sujeitos contemporêneos. Diz que estas intervenções não chegam as verdadeiras causas da produção da dor... Será que existe uma terapêutica que chega à verdade?
"... o inconsciente ressurge através do corpo, opondo uma forte resistência às disciplinas e às práticas que visam a repeti-lo. Daí o relativo fracasso das terapias que proliferam. Por mais que estas se debrucem com paixão sobre a cabeceira do sujeito depressivo, não conseguem curá-lo nem apreender as verdadeiras causas de seu tormento. Só fazem melhorar seu estado, deixando-o esperar por dias melhores." p. 18
No texto chamado "Os medicamentos do espírito" Roudinesco diz que a utilização dos psicotrópicos mostra uma substituição de camisas-de-força. Essa terapêutica visa deixar o humano mais "polido".
"A partir de 1950, as substâncias químicas - ou psicotrópicos - modificaram a paisagem da loucura. Esvaziaram os manicômios e substituíram a camisa-de-força e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa. Embora não curem nenhuma doença mental ou nervosa, elas revolucionaram as representações do psiquismo, fabricando um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser conforme ao ideal que lhe é proposto." p. 21
Dentro dessa lógica temporal, onde o sintoma é "destruído" muito rapidamente, a psicanálise vai progressivamente ficando de lado nas intervenções clínicas. As pessoas sentem que suas crises podem ser atacadas sem processos longos de analíse pessoal. Basta tomar alguns medicamentos e a doença vai embora...
"Dentro em breve, a psicanálise só interessará a uma faixa cada vez mais restrita da população. Porventura não haverá senão psicanalistas no divã dos psicanalistas?" (Jean-Bertrand Pontalis, 1998) p. 28
Segundo Elisabeth esse é um sintoma da modernidade.
"... muitos são os sujeitos que preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de seus sofrimentos íntimos. O poder dos remédios dos espírito, portanto, é o sintoma de uma modernidade que tende a abolir no homem não apenas o desejo de liberdade, mas também a própria idéia de enfrentar a prova dele. O silêncio passa então a ser preferível à linguagem, fonte de angústia e vergonha." p. 30
Em outro momento do livro (O homem comportamental) a autora estabelece uma relação interessante entre a "cura" médica e a "cura" analítica. As duas se baseiam em entendimentos distintos do ser humano. A primeira tem a crença de que o humano está clivado entre corpo e psicológico, atua no modelo de "sinais-diagnóstico-tratamento". A segunda crê que os sintomas não estão vinculados à um único sentido corporal, a "cura" nessa visão seria entendida como transformação da pessoa.
"... no campo do psiquismo
não existe cura no sentido como esta é constatada no campo das
doenças somáticas, sejam elas genéticas ou orgânicas.
Na medicina científica, a eficácia apóia-se no modelo sinais-diagnóstico-tratamento.
Constatam-se os sintomas (febre), dá-se um nome à doença
(febre tifóide) e se administra um tratamento (medicamento antibiótico).
O doente fica então 'curado' do mecanismo biológico da doença.
Em outras palavras, ao contrário das medicinas tradicionais, para os
quais a alma e o corpo formam uma totalidade incluída numa cosmogonia,
a medicina científica repousa numa separação entre esses
dois campos.
No que concerne ao psiquismo, os sintomas não remetem a uma única
doença e esta não é exatamente uma doença (no sentido
somático), mas estado. Por isso, a cura não é outra coisa
senão uma transformação existencial do sujeito." p.
48
Fazendo um genealogia dos processos de utilização de terapias até hoje em dia, Elisabeth Roudinesco identifica um alternância de utilizações das clínicas que atuam sobre o sofrimento humano. O processo colocou em evidencia a psiquiatria (século XIX), a psicanálise (século XX), e segundo a autora, talvez o próximo século seja marcado pelo uso das psicoterapias.
"Nascidas ao mesmo tempo que
a psicanálise, essas escolas de psicoterapia têm como ponto comum
contornar três conceitos freudianos, a saber, os de inconsciente, sexualidade
e transferência. Elas opõem ao inconsciente freudiano um subconsciente
cerebral, biológico ou automático; à sexualidade, no sentido
freudiano (conflito psíquico), ora preferem uma teoria culturalista da
diferença entre os sexos ou gêneros, ora uma teoria dos instintos.
Por último, opõem à transferência como motor do tratamento
clínico uma relação terapêutica derivada da sugestão.
Assim, quase todas essas escolas propõem ao sujeito, saturado de medicamentos,
de causalidade externas, de astrologia e de DSM, uma relação terapêutica
mais humanistas e mais adaptada à sua demanda. E, sem dúvida,
a progressão das psicoterapias, em tal contexto, é inelutável
ou até necessária. Dito de outra maneira, se o século XIX
foi realmente o século da psiquiatria, e se o século XX foi o
da psicanálise, podemos perguntar-nos se o próximo não
será o século das psicoterapias." p. 51-52
Roudinesco deixa clara (também no texto Freud está morto na América) sua crítica frente aos achados das ciências cognitivas, neurofisiologia, inteligência artificial, neuropsicologia, etc. Algumas vezes a autora parece ir contra a todo um processo de subjetivação existente em nossa sociedade que proclama o uso de vários olhares sobre o mesmo fenômeno.
"Surgida nos Estados Unidos
por volta de 1950, a 'ciência' cognitiva atribuiu-se prontamente a tarefa
de descrever as disposições e capacidades da mente humana (cognição),
tais como a linguagem, a percepção, o raciocínio, a coordenação
motora e o planejamento. Baseando-se num concepção da mente segundo
a qual o mental e o neural seriam duas faces de um mesmo fenômeno, essa
'ciência' apoiou-se também em várias disciplinas que estavam
em plena expansão: a neurobiologia ou estudo dos mediadores químicos,
que explicava o comportamento humano até o nível mais fundamental
do organismo humano, isto é, o gene, a neurofisiologia, que se interessava
pela significação funcional das propriedades do cérebro;
a inteligência artificial, que estudava o raciocínio considerando
o computador como modelo do funcionamento cerebral; e a neuropsicologia, ou
descrição dos fenômenos patológicos ligados ao funcionamento
da cognição.
Todas essas disciplinas visavam - e continuam visando até hoje - a dar
conta, de maneira universal, do funcionamento da atividade mental do homem a
partir de uma caracterização do sistema nervoso como sistema físico-químico."
p. 79
Talvez aqui seja o momento de mostrar
também a minha crítica (vou me permitir) em relação
às críticas formuladas pela autora.
No texto A ciência e a psicanálise ela segue um raciocínio
divulgando que apenas a psicanálise trata da complexidade humana.
Acredito que esse não é um mérito apenas da psicanálise;
segundo a (pouca) leitura da psicologia cognitiva que tenho, cada sofrimento,
crises, dificuldades, alegrias, desejos, etc... são subjetivados na e
pela vida, com tudo que esta envolvido nesse processo.
Não vejo que o mérito de levar em conta a subjetividade seja apenas
da psicanálise. Acredito que essa visão mostra um grande preconceito
com outras intervenções e, talvez, uma falta de leitura e vivência
de outras formas de lidar com a produção humana de subjetivação.
Como diz a autora:
"... uma discriminação nunca pode ser positiva, pois sempre pressupõe a existência de uma outra vítima que serve de bode expiatório por sua própria diferença." p. 147
E mais, não encontrei referências
bibliográficas importantes sobre as "ciências cognitivas"
(como: Aaron Beck, Robert Sternberg, Judith Beck, Salkovskis, etc.) citadas
no livro. Seria como escrever um livro criticando a psicanálise sem usar
fontes de Freud, Lacan, Melanie, Ana Freud, etc.
Será que os psicanalistas levariam em conta um livro que não deixasse
clara as referências bibliográficas das críticas divulgadas,
direcionando a argumentação à fala dos autores da teoria
que está sendo questionada?
Algumas vezes percebo, talvez seja um erro da minha leitura, que a intenção
do livro é divulgar que a única intervenção capaz
de lidar com o humano de uma maneira ética é feita pela psicanálise.
"Assim como as ciências
formais repousam na pura especulação, as ciências da natureza
são dotadas de um componente formal e de um componente experimental.
As primeiras descobrem seu objeto ao construí-lo, enquanto as últimas
referem-se a um objeto externo que corresponde a dados empíricos. Quanto
às ciências humanas, elas se distinguem das outras duas por se
aterem a compreender os comportamentos individuais e coletivos a partir de três
categorias fundamentais: a subjetividade, o simbólico e a significação.
No entanto (...) Uma tende a eliminar toda forma de subjetividade, de significação
ou de simbólico, e a tomar como único modelo da realidade humana
os processos físicos-químicos, biológicos ou cognitivos;
a outra, ao contrário, reivindica essas três categorias, pensando-as
como estruturas universais. Por uma lado, uma abordagem do homem como máquina,
e por outro, um estudo da complexidade humana que leva em consideração
o corpo biológico e o comportamento subjetivo, quer em termos de intencionalidade
ou de vivência (a fenomenologia), quer por intermédio de uma teoria
interpretativa dos processos simbólicos (psicanálise, antropologia),
na qual são postulados mecanismos inconscientes que funcionam à
revelia dos sujeitos." p. 120
Acredito que qualquer visão sobre o ser humano é, a priori, fragmentada, parcial, viciada segundo o olhar de que "vê".
"O estudo da relação arcaica com a mãe permitiu, então, apreender melhor a origem das psicoses, que em geral decorrem de uma fusão destrutiva com o corpo materno, vivido como um objeto persecutório." p. 133
Apesar de mostrar um desejo de explicar
a origem das psicoses, essa frase, para mim estudante de psicologia, ainda parece
bastante reducionista. Essa frase é repetidade desde o início
do curso. Dentro dessa lógica poderíamos pensar que essa psicanálise
não leva em conta os achados das outras "ciências" pois
resume tudo à relação mãe-filho.
Talvez seja o momento não das defesas ferrenhas de territórios de poder sobre a clínica dos processos existenciais dos seres humanos, mas o exerecício da interdisciplinaridade dos olhares sobre nossa condição.
"... é tão errôneo valorizar o universalismo em nome da recusa da diferença quanto rejeitar o universalismo em nome da valorização arbitrária de uma única diferença." p. 146
Acredito que o livro "Por que
A Psicanálise?" é importante pelas críticas que coloca
em evidência à nossa sociedade e suas maneiras de lidar com o sofrimento.
Mas, penso também que seria fundamental sair desse lugar de defesa ferrenha
de territórios de atuação clínica. No meu ver só
a prática ética de cada profissional provará a eficácia
ou não do ser agir como agente da saúde.
Para mim, a intervenção ética pode se dar para além
de uma única "linha teórica" que é proclamada
como a forma certa de ver o ser humano.
Bibliografia Consultada
BECK, Aaron; ALFORD, Brad. O Poder Integrador da Terapia Cognitiva. Porto Alegre:
Artes Médicas, 2000. 173p.
BECK, Judith S. Terapia Cognitiva: Teoria e Prática. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1997. 348p.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por Que A Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. 163p.
Notas
1
- Texto produzido em abril de 2001 na cadeira de Fundamentos da Clínica
Psicológica (UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS)
2 - Graduando em psicologia pela UNISINOS.
e-mail: [email protected]