Uma Breve História do Kung Fu

(Texto de Átila Oliveira da Silva, originalmente publicado no fanzine "O Quickening")

O kung fu está entre as artes marciais mais antigas do planeta. Os primeiros relatos e escrituras que fazem alguma menção às artes marciais chinesas remontam à dinastia Xia, em cerca de 2.100 a.C.. Entretanto, devido à forma um tanto didática destas representações, alguns historiadores acreditam que as artes marciais chinesas devam ser ainda mais antigas. Antes de prosseguir, são necessários dois esclarecimentos sobre o kung fu.

Praticamente todo mundo já ouviu ou leu algo afirmando que a China é o grande berço das artes marciais. Isso não é totalmente verdadeiro. Na mesma época em que a China desenvolvia os exercícios precursores das artes marciais, uma outra região, paralelamente, fazia o mesmo: este local é hoje conhecido como Índia. Pouca gente sabe, mas a Índia abriga as outras duas artes marciais mais antigas do mundo (tão antigas quanto o kung fu): o Vajramushti e o Yawara (que no Japão recebeu o nome Jiu-Jitsu). O próprio Sidarta Gautama, o Buda, era um mestre na arte do Vajramushti, como muitos outros pertencentes à casta dos Kshastryias (guerreiros).

Uma série de fatores faz com que as artes marciais indianas sejam praticamente desconhecidas fora de sua terra natal. O ensino da maioria delas é restrito aos discípulos de alguns mestres ioguis, fazendo com que seja necessário todo um aprendizado filosófico, disciplinar e ascético antes do início às técnicas marciais. Além disso, apenas uma destas artes é ensinada fora da Índia, e mesmo assim em raríssimos locais. Esta arte, denominada Kalari Payat, abrange uma grande variedade de armas (incluindo espada e escudo), bem como uma série extensa de exercícios físicos e técnicas de combate desarmado. Tomar conhecimento da existência das artes marciais indianas é fundamental, como se verá mais adiante, para compreender a própria história das artes marciais chinesas.

Um segundo esclarecimento. Embora façamos uso do termo kung fu para denominarmos as artes marciais chinesas, o mesmo não é utilizado na China. Provavelmente, isso teve início quando algum ocidental, impressionado com as habilidades de um viajante chinês, perguntou-lhe o que seria aquilo. A resposta foi kung fu, que pode ser traduzido como "trabalho contínuo" ou simplesmente "habilidade". O termo então tornou-se a referência para todas as artes marciais chinesas. Na China, cada estilo é chamado pelo seu nome de origem, ou utilizam-se termos como Kuo Shu ("arte nacional") ou Wu Shu ("arte guerreira") para se referir a um determinado grupo de estilos. Hoje em dia, o termo Wu Shu é mais utilizado para as modalidades olímpicas e de exibição.

Tanto a China quanto a Índia encontram-se isoladas geograficamente (pela cordilheira do Himalaia, pelos desertos da Manchúria e Gobi e pelos oceanos Índico e Pacífico) e ocupam grandes extensões territoriais. Isso colaborou para a criação de culturas únicas. E, paralelamente, acabaram semelhantes em alguns aspectos. Há mais de 4.000 anos, para proteger seu enorme território da ameaça dos invasores bárbaros, a família imperial chinesa tomou uma medida desesperada, cedendo porções de terra aos governantes regionais, à semelhança do que ocorreria na Idade Média na Europa. Como conseqüência quase que natural, alguns senhores feudais queriam mais terra e então, as guerras internas, já tão comuns em território Chinês, tornaram-se ainda mais freqüentes. Durante todo este período, alguns monges adeptos da meditação e do auto-conhecimento, desenvolveram exercícios cujo objetivo era a melhora e a manutenção da saúde, por meio do equilíbrio físico, mental e espiritual.

Não demorou para que alguns destes monges descobris-sem a utilidade de alguns destes movimentos para se defender de ladrões e encrenqueiros. Vários passaram a incluir tais práticas combativas em seus ensinamentos, como forma de defesa e auto-controle. Alguns senhores feudais as incluíram no treinamento dos seus exércitos e muitos camponeses também passaram a aprendê-las para defenderem a si próprios e suas famílias. As guerras deixavam a população na miséria e uma família que vivesse amontoada como ratos em um pequeno barco, podia considerar-se afortunada.

Com o passar dos anos, muitos mestres passaram a criar suas próprias seqüências de movimentos. Como a população chinesa é constituída por 56 etnias diferentes, é de se imaginar que cada população desenvolvesse suas próprias formas de defesa. Talvez o mais famoso mestre desta época seja o médico acupunturista Huato, que criou uma seqüência à qual deu o nome de "A Dança das Cem Bestas" (Wu Chin Si). Nela, os movimentos eram baseados nos de animais como o macaco, o tigre, a águia, o cervo e o urso. Cada seqüência criada era mantida em segredo por uma família ou por um mestre seguido pelos seus discípulos mais fiéis. Aprendizes graduados incluíam novos movimentos ou uniam técnicas de seqüências diferentes. Nasciam assim os diferentes estilos das artes marciais chinesas.

Por ser uma sociedade isolada e agrícola, grande parte da cultura chinesa encontrou suas origens nos elementos da natureza. Isso explica porque muitos dos primeiros estilos de artes marciais foram baseados nos movimentos dos animais, como o tigre (fu jow pai), a águia (fan tzi), o macaco (tai ching) e outros.


O Templo Shaolin, Bodhidharma e A Grande Mudança na Arte

O início da era cristã constituiu um marco para a cultura chinesa, inclusive nas artes marciais. Foi nesta época que instituiu-se e ganhou fama, o templo Shaolin ou Shao Lin Chi ("templo da jovem floresta" ou "templo do pequeno bosque"). O local era um centro de ensino monástico, o maior da época. O budismo começava a entrar na China, por meio da visita de monges hindus e tibetanos. Muitos destes passaram a residir nos templos chineses, compartilhando seus ensinamentos e aprendendo a filosofia taoísta. Alguns cidadãos procuravam os templos como uma forma de escapar à mão opressora do governo ditador pois, pelas leis da época, quando um indivíduo buscava o caminho espiritual, o imperador perdia o poder sobre ele, já que os locais de ensino espiritual eram considerados por ele próprio como livres.

A chegada do budismo causou tamanho impacto na cultura chinesa que, com o passar dos anos, os monges budistas passaram a ter influência não apenas religiosa e filosófica, mas também social e política.

Após a destruição do templo Shaolin, por volta do Século VI d.C., muito pouco restou de documentos escritos sobre a origem e a história do mesmo. A maior parte do que se sabe hoje em dia foi passada de forma oral ao longo dos séculos, e muitos fatos estão acompanhados de lendas e crendices. Muita coisa é difícil de confirmar ou mesmo desmentir.

Ao contrário do que muitos pensam, o ensino marcial era apenas um dos vários caminhos do templo Shaolin e nem mesmo era obrigatório. Havia monges que não sabiam lutar. Outra confusão muito comum é acreditar que o kung fu se originou neste templo, sendo que na verdade as artes marciais chinesas já existiam há séculos.

A razão desta confusão sobre a origem do kung fu tem um motivo: Bodhidharma, o 28º patriarca do budismo. Este monge budista hindu e mestre em Vajramushti foi o grande responsável pela reestruturação das artes marciais chinesas. Ao chegar no templo Shaolin, provavelmente no Século V d.C., Bodhidharma acrescentou novos ensinamentos a toda a filosofia e rotina monásticas. Foi ele o grande responsável pela introdução do Budismo Dhyanna (ou Ch’Anna) por todo o Oriente. Esse modo de viver e de pensar, praticamente impossível de definir em palavras, ficou conhecido mais tarde na China como Ch’an, na Coréia como Sun e no Japão, como Zen. O objetivo inicial de Bodhidharma era aprimorar a concentração e o auto-controle dos monges durante as meditações. Tal base filosófica passou a fazer parte de toda a rotina monástica Shaolin desde então.

Talvez a maior contribuição de Bodhidharma tenha sido o ensino do controle do chi (ki em japonês), a energia vital que permeia todos os seres vivos, segundo o Budismo Dhyanna. Através deste conjunto de técnicas, Bodhidharma mudou para sempre as artes marciais. As diferenças idiomáticas óbvias, fizeram com que ele ficasse conhecido com outros nomes pelo Oriente afora: Bodai Daruma, no Japão; Ta Mo, na China; e Dart Mor na Coréia.

Mesclando estilos tradicionais chineses com as técnicas do Vajramushti e controle do chi, Bodhidharma criou uma série de exercícios que constituíram a base do que mais tarde viria a ser denominado Kung Fu Shaolin. Muitos dos estilos chineses milenares acrescentaram ao seu conteúdo os exercícios de Bodhidharma, tornando-se assim, estilos novos. Inicialmente, os estilos Shaolin eram representados por cinco animais (As Cinco Bestas de Shaolin): o tigre (Hu Chuan), o dragão (Lung Chuan), a garça (Pak Hok ou Pai Ho Chuan), a serpente (She Chuan) e o leopardo (Pao Chuan). Mais tarde esses estilos principais deram origem a muitos outros, e formam a base de todo o kung fu moderno. Quase todos os estilos de kung fu praticados atualmente se originaram no templo Shaolin ou derivam dos estilos praticados ali. Calcula-se que, só na China, existam cerca de 300 estilos de artes marciais diferentes, alguns muito semelhantes entre si, provavelmente por derivarem do mesmo conjunto de técnicas ou por somarem mais tarde movimentos iguais. Muito pouco restou dos estilos anteriores a Bodhidharma. Dentre os poucos estilos milenares ainda praticados no mundo, talvez os mais conhecidos sejam o Garra de Águia (Fan Tzi Ying Jow) e o Tai Chi Chuan.

Com o crescimento da religião budista na China e seus privilégios junto à nobreza, muitos filósofos taoístas sentiram-se ameaçados. Como reação, os filósofos da corte alçaram o taoísmo à categoria de religião e se auto-proclamaram semi-deuses. Dentre os nobres endeusados, também conhecidos como imortais, destacaram-se os oito imortais bêbados, criadores do estilo Chui Pa Hsien ou estilo do bêbado.

De acordo com a filosofia empregada (budismo ou taoísmo), os estilos das artes marciais chinesas podem ser classificados em Internos (Nei Chia) ou Externos (Wai Chia). Esta classificação é muitas vezes arbitrária, mas de grande utilidade quando se pretende estudar o lado filosófico do kung fu.

Os Estilos Internos baseiam-se no taoísmo. Recebem este nome por ser esta a filosofia mais antiga da China. Estes estilos dão ênfase às técnicas de meditação, controle respiratório e manutenção da saúde. As técnicas de combate e defesa pessoal são secundárias e, em muitos casos, seu aprendizado não é obrigatório. Fazem parte desta escola estilos como o Tai Chi, o Hsing I e o Pa kua.

Os Estilos Externos baseiam-se no zen-budismo, trazido da Índia por Bodhidharma. Estes estilos são bem mais enérgicos e seus movimentos são vigorosos. Neles, as técnicas de combate são tão importantes quanto as práticas ascéticas. Foi também a partir deles que se criou todo o arsenal bélico das artes marciais chinesas. A maioria dos estilos de Shaolin e outros como o Wing Chun e o Choy Lay Fut são exemplos típicos.


Das Revoluções aos Dias Atuais e o Estilo de Duncan MacLeod

O início do Séc. XX marcou o território chinês com uma série de guerras e conflitos. O episódio chamado A Revolta dos Boxers (pelo fato do conjunto das artes marciais chinesas começar a ser conhecido no ocidente, nessa época, pelo nome de "boxe chinês"), que durou de 1899 a 1901, foi o primeiro grande conflito de uma série. Tendo se originado como reação às invasões do território chinês pelos exércitos inglês, alemão, russo, francês e japonês; esses combates ocasionaram sérias baixas entre todos os países envolvidos, estando entre os mortos muitos mestres tradicionais de kung fu. Muitos dos mestres haviam fundado ou se aliado a sociedades secretas (eram cinco ao todo) como forma de combater o governo opressor, e alguns defendiam a população contra abusos, tornando-se assim verdadeiros heróis aos olhos de alguns. No final, a China venceu, mas as artes marciais perderam muito.

Durante as duas grandes guerras mundiais, a China ficou dividida em três regiões: uma ocupada pelos comunistas, uma sob controle nacionalista e uma invadida pelo Japão, desde 1931. A reduzida atividade militar do país favoreceu a reorganização das forças comunistas no norte e leste. Os governos se deterioravam pela desmoralização decorrente de desmedida corrupção. Instaura-se uma guerra civil que dura décadas.

Em 1966, Mao Tse-Tung (1893-1976) decreta a Revolução Cultural. Dentre várias medidas radicais e totalitárias, Mao declara que todo o comportamento e costumes passados são "burgueses" e "reacionários" (incluindo o kung fu), proibindo tais práticas em todo o território chinês. Toda e qualquer forma de kung fu acabou se tornando uma arte marginal, ensinada e praticada às escondidas. Com o final da Revolução, em 1969, criou-se o que hoje é conhecido pelo nome de Wu Shu, como uma forma de se estabelecer uma "arte nacional legítima". Muitos praticantes atuais de kung fu desprezam o Wu Shu, por considerá-lo uma salada desconexa e desnecessariamente acrobática dos estilos tradicionais, cujo único propósito seria a exibição. O próprio tchia dsu (seqüência de movimentos que caracterizam um determinado estilo, também conhecida como kati ou kuen) do Wu Shu é visto por estes praticantes como uma colcha de retalhos totalmente teatral e excessivamente floreada. Nessa mesma época, foi liberada a prática de uma versão mais "terapêutica" do Tai Chi Chuan.

Com o passar dos anos, a prática do kung fu legítimo voltou a fazer parte da cultura da população chinesa. Mas muito se perdeu nas guerras e conflitos anteriores. Muitos estilos morreram com seus mestres, ou perderam-se por falta de discípulos. Nos dias de hoje, alguns praticantes mais radicais acreditam que o verdadeiro kung fu foi extinto, e o que restou não passa de uma caricatura dos estilos tradicionais.

O ator Adrian Paul é praticante dos estilos Choy Lay Fut e Hung Gar. Na série de TV, em várias ocasiões, estes estilos foram mostrados. Na abertura do seriado, ele aparece executando um tchia dsu do estilo Hung Gar.

Criado no Séc. XIX pelo mestre Chan-Heung, o Choy Lay Fut é um dos estilos mais enérgicos do kung fu. O nome do mesmo é uma homenagem de Heung aos três mestres que o orientaram durante sua soberba carreira como lutador: cada um dos três termos faz referência ao nome de um dos mestres. Sua principal característica são os movimentos rápidos, a base muito baixa (posição do cavalo) e seqüências de golpes combinados como uma autêntica metralhadora. A filosofia de combate do Choy Lay Fut consiste em derrubar rapidamente o oponente, sem que o mesmo tenha chance de reagir. Para isso, braços e pernas combinados em golpes diretos, tanto longos quanto curtos e defesas circulares, fazem a diferença.

O Hung Gar se originou da combinação de dois dos principais estilos de Shaolin: a garça e o tigre. Com o propósito de encontrar o equilíbrio entre a agilidade e a leveza do primeiro e a força do segundo, o mestre Hung Hei Kung uniu o melhor de cada um. O resultado é a combinação de manobras ao nível do solo, muitas com os dois pés plantados, aliados a poucos saltos e posições equilibradas em uma só perna. A combinação das duas formas animais resultou em uma grande variedade de ataques com as mãos e os dedos, bem como um equilíbrio entre os golpes efetuados com braços e pernas (cerca de 50% de socos e 50% de chutes). O Hung Gar é um dos estilos chineses mais praticados no mundo atualmente.

Contudo, percebemos que, na série de TV, o personagem Duncan MacLeod ficou mais de duzentos anos de sua vida sem aprender estilos orientais de combate. O seu aprendizado inicial, nesse sentido, é mostrado no episódio "O Samurai", onde é apresentado por um mestre guerreiro à arte da espada japonesa, bem como ao Jiu-Jitsu e ao Karate. Antes disso, como é mostrado em flashbacks da série, ambientados cerca de dois séculos no passado, Duncan provavelmente só conhecia a esgrima escocesa e alguma coisa de luta livre.

Em outros episódios da série, Duncan demonstra conhecimentos de Boxe e do Kickboxing Americano. O aprendizado destes estilos, bem como dos estilos chineses, devem ter ocorrido no seu último século de vida.

A grande quantidade de técnicas conhecidas por Duncan MacLeod não chega a ser absurda, principalmente para alguém que treina com afinco há cerca de quatro séculos. Lembremos que, por exemplo, Bruce Lee (uma pessoa real), estudou a fundo nada menos do que vinte e seis estilos de luta diferentes.
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