Editor: Wolfram da Cunha Ramos  
Estupro e Violência Presumida
HC 73.662-MG

DECISÃO: Por maioria de votos, a Turma rejeitou proposta do Presidente, no sentido de afetar ao Plenário o julgamento do habeas corpus, tendo em conta a importância da matéria, vencidos os Ministros Carlos Velloso e Presidente. Por maioria, a Turma concedeu o habeas corpus para absolver o paciente, vencidos os Ministros Carlos Velloso e Presidente. A Turma determinou, ainda, a expedição de alvará de soltura, em favos do paciente, se por al não houver de permanecer preso. 2ª Turma, 21.05.96.

Ministro Marco Aurélio (relator)

RELATÓRIO - Com a inicial de folhas 2 a 13, procuram os Impetrantes demonstrar que, na espécie, não restou configurado o tipo em relação ao qual foi condenado o Paciente, ou seja, aquele consubstanciado no artigo 213, combinado com o artigo 224 do Código Penal. A partir do exame da prova coligida, sustenta-se que não houve o estupro em si, já que a vítima se passara por pessoa com idade superior à real, quer sob o aspecto físico, quer sob o aspecto mental, tendo confessado em Juízo que mantivera relação sexual com o Paciente por vontade própria. Por sua vez, este último, após o episódio, ocorrido em 1991 quando contava com vinte e quatro anos, contraíra matrimônio, levando vida regular e sendo pai de filho menor. Ressalta-se que o Paciente pressupôs estar mantendo conjunção carnal com pessoa de idade superior aos dezesseis anos, verificando-se, assim, verdadeiro erro de tipo. É transcrita jurisprudência sobre a matéria. Aos autos veio a peça de folha 140, noticiando o julgamento, pela Primeira Câmara Criminal, de apelação interposta pela defesa, mediante o qual foi expungido o aumento da pena. Remetidos os autos à Procuradoria Geral da República, pronunciou-se esta no sentido do indeferimento do pedido, salientando ser o habeas corpus impróprio ao reexame de provas.

É o relatório.

VOTO -

[...] No mérito, tem-se que, nos crimes de estupro, o depoimento da vítima exsurge com inegável importância. No caso dos autos, ouvida em Juízo, esclareceu que vinha saindo de motocicleta com o Paciente, sempre indo a lugar deserto para troca de beijos e carícias. Apontou que o mesmo já fizera com um dos amigos do Paciente, entre outros rapazes. A seguir, noticiou que o Paciente pedira gentilmente para que mantivesse consigo conjunção carnal, e que se recusara, de início, mas cedera em face às carícias. Retornando à residência, pedira ao Paciente que a deixasse longe de casa, visando a fugir à fiscalização do genitor, que, por falta de sorte, viu-a descer da motocicleta. Ao que tudo indica, a ação penal em que condenado o Paciente surgiu única e exclusivamente da reação do pai da vítima. Esta, respondendo a perguntas endereçadas pelo Estado-acusador, foi categórica em afirmar que: "(...) já ficou com outro rapaz de nome Valdir; que se relacionou sexualmente com o réu por três vezes e que na última foi que seu pai pegou; que a depoente manteve relações sexuais com o réu na primeira vez que o conheceu; que tal relação sexual não foi forçada em hipótese alguma; que assim agiu porque pintou vontade; que o relacionamento da depoente com o pai não é muito bom e que o pai a pressionou para comparecer perante a autoridade; que transou com Valdir num sítio abandonado perto da fábrica." (folhas 48 e 49)

[...] Soma-se ao depoimento da própria vítima a da testemunha Henrique Ambrósio de Souza, consoante o qual: "(...)tinha conhecimento de que Márcio saía junto à menor M.A.N. que, igualmente ficou sabendo pelo próprio acusado que ambos mantiveram relações sexuais; que a vítima aparentava ter uns 15 ou 16 anos; é do conhecimento do declarante que ela saía com outros; que chegou a ver a menor sair à noite com outras pessoas de moto; que a menor anda muito pela noite ficando até a madrugada na rua e o depoente a considera uma prostitutazinha." (folha 51). Diante de tais colocações, forçoso é concluir que não se verificou o tipo do artigo 213 do Código Penal, no que preceitua como estupro o ato de "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". A pouca idade da vítima não é de molde a afastar o que confessou em Juízo, ou seja, haver mantido relações com o Paciente por livre e espontânea vontade. O quadro revela-se realmente estarrecedor, porquanto se constata que menor, contando apenas com doze anos, levava vida promíscua, tudo conduzindo à procedência do que articulado pela defesa sobre a aparência de idade superior aos citados doze anos. A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural. Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Àquela altura, uma pessoa que contasse doze anos de idade era de fato considerada criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida.

[...] Portanto, é de se ver que já não socorre à sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e, em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez. Alfim, cabe uma pergunta que, de tão óbvia, transparece à primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece; as leis, não? Ora, enrijecida a legislação - que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a - cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem o que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a uma sociedade que se quer global, ágil e avançada - tecnológica, social e espiritualmente. De qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento e à medida em que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo a mercê da potencialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo as peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes como reconhecido no depoimento e era de conhecimento público. Na doutrina encontra-se a corroboração a esta tese. Consoante ensina Magalhães Noronha, a presunção inscrita na letra "a" do artigo 224 do Código Penal é relativa, podendo ser excluída pela suposição equivocada do agente de que a vítima tem idade superior a quatorze anos: "Se o agente está convicto, se crê sinceramente que a vítima é maior de quatorze anos não ocorre a presunção. Não existe crime, porque age de boa-fé." (Direito Penal, 4ª ed., vol. 3/221). Também Heleno Cláudio Fragoso, em "Lições de Direito Penal", afirma que a presunção em comento não é absoluta, "pois o erro plenamente justificado sobre a idade da vítima exclui a aplicação de tal presunção". Por tais razões, concedo a ordem para absolver o Paciente. É o meu voto.

Ministro Néri da Silveira (voto-vista)

[...] É de anotar, assim, que, no exame das provas, a sentença não assentou que a menor aparentasse mais de doze anos de idade, como se pretende na inicial do habeas corpus. Ao recusar, por fundamentos jurídicos, a alegação da defesa, afirmou, inclusive, que isso seria, no ponto, irrelevante. De tal modo, esse fato não há, desde logo, de ser, aqui, em habeas corpus, invocado, para afastara as decisões das instâncias ordinárias. Não caberia, ademais, em habeas corpus, pretender reapreciar as provas do feito criminal, em ordem a poder sustentar a tese de a menor possuir aparência de pessoa com mais de quatorze anos. À evidência, a fotografia de fls. 19, trazida com a inicial, nada prova, desde logo, por absoluta falta de identificação das seis meninas que nela são vistas e da data a que corresponde. Nem seria invocável mera afirmação de uma testemunha de defesa, companheiro do paciente.

[...] A posição adotada pela sentença e o acórdão guardam conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. No julgamento do Recurso Extraordinário Criminal nº 116.649-PR, a Primeira Turma, por votação unânime, relator o ilustre Ministro Octávio Gallotti, decidiu em aresto assim ementado (RTJ 127/343): "Estupro cometido contra vítima que não é maior de catorze anos (artigos 213 e 224, "a", do Código Penal). Presunção de violência, que não cede em face da consideração da experiência sexual da ofendida. Recurso provido, para condenar-se o réu." Cuidava-se, então, de hipótese em que as decisões de primeiro e segundo graus, referindo, também lições de Magalhães Noronha e Heleno Cláudio Fragoso, sustentavam tratar-se de presunção relativa a da alínea "a" do art. 224, do Código Penal.

[...] Pois bem, a Primeira Turma conheceu do recurso extraordinário, por divergência do aresto recorrido com julgados do STF e de outros Tribunais, e lhe deu provimento para condenar o recorrido. Começou por invocar aresto desta Segunda Turma, no Habeas Corpus nº 51.500 (RTJ 68/375), assim ementado: "1. Estupro cometido mediante violência presumida (Código Penal art. 224, 'a'). O consentimento da ofendida e sua experiência sexual anterior não desconstituem a tipicidade de tal fato criminoso. 2. Dolo intenso, ou brando e qualquer matéria envolvida em prova não podem ser objeto de apreciação em processo de habeas corpus (Rel. Min. Antonio Neder, RTJ 68/375)." No precedente referido desta Turma, adotara-se este fundamento (RTJ 68/376): "4. Por outro lado, como também apontado pela veneranda decisão condenatória, irrelevante se apresenta, na espécie, o consentimento da menor ou a conclusão dos peritos sobre a atividade sexual anterior da ofendida, pois tanto 'não ilide a tipicidade do crime em tela, máxime considerando que o apelado por mais de uma vez possuiu a menor e o fato de, eventualmente, antes de alcançar a idade de doze anos, ter sido ela vítima de outro ou outros estupros em nada o beneficia."

[...] Idêntica orientação seguiu a Primeira Turma, no RECr nº 108.267-PR, relator o Ministro Sydney Sanches (RTJ 130/803-817), a 21.3.1989. Proclamou, com inteira adequação à teleologia da norma em exame, o colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator o Des. Thomaz Carvalhal ("in" Revista dos Tribunais, vol. 348, págs. 81 a 83): "A leviandade de uma menor de quatorze anos não autoriza ninguém a aproveitar, satisfazendo seus instintos sexuais. Sua imaturidade para consentir em ato de tal relevo para sua vida, torna criminosa a ação, pela qual seu autor responde penalmente".

[...] Nesse sentido, anotou, no precedente mencionado, o ilustre Ministro Sydney Sanches (RTJ 130/816): "A teleologia da norma penal é a defesa da menor. E essa tutela não pode ser ignorada mesmo quando alegadas experiências anteriores da menor. O contrário seria incentivar a prostituição infantil, pela impunidade que criaria. Como diz o recorrente, citando o Professor João Mestieri, "no estupro ficto tem-se um dever geral de abstenção de relações sexuais imposta aos destinatários da norma em relação a menores de certa idade."

[...] Não logra, desse modo, também, maior relevo, a tão invocada expressão da vítima de que "assim agiu porque 'pintou' vontade" ou estoutra "que não tem medo de pegar AIDS e nem de engravidar", reproduzidas na sentença (fls. 91). Não é menos certo que, no primeiro depoimento, informou que, por medo, subiu na carona da moto do paciente, quando este determinou. Está, de outra parte, em uma rápida incursão pelos documentos, no "laudo psicológico", às fls. 83: " Seu comportamento é instável, com falta de perseverança nas atividades, reagindo de forma imatura às estimulações ambientais. Percebe-se também seu narcisismo e exibicionismo, com fantasias no campo sexual. (...). Encontra-se emocionalmente perturbada, esforçando-se para manter a integridade do ego." Na compreensão do art. 224, "a", do Código Penal, cumpre ter, assim, presente que se supõe a violência pela falta de consentimento válido, ou seja, pela incapacidade de consentir do sujeito passivo. Nessa linha, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: "Irrelevante haja acedido (menor de 13 anos de idade) ao primeiro convite de seu estuprador, se por presunção legal não tinha discernimento e liberdade de volição. O seu querer era viciado pela incapacidade de consentir". Já, por isso, advertia Viveiros de Castro, prove o réu que a ofendida consentiu; prove ainda o réu que a menor tinha uma inteligência perspicaz e viva, sabia perfeitamente o que fazia (...), conhecia teoricamente todos os segredos da voluptuosidade (...). O crime não muda de natureza, é estupro (...)." (RJTJSP 28/400 e RT 460/327). O Superior Tribunal de Justiça, à sua vez, no Recurso Especial nº 15414, relator o Ministro Pedro Acioli, decidiu em aresto assim ementado: "A falta de consentimento válido é a essencial circunstância que confere ao artigo 224 a presunção 'juris et de jure', buscada para ter-se como real a violência presumida. Não há conceder que menores de quatorze anos, a quem não se permite validade de atos jurídicos tenha consciência plena para validar com o seu consentimento o ato em comento. É justamente a impossibilidade de o menor compreender em toda sua extensão o ato praticado, que afasta o consentimento válido, para excluir a incidência da norma penal. Falta ao menor a maturidade, quer mental, quer física, para ter alcance e avaliar com precisão o ato violador dos costumes. Não pode falar-se, portanto, em consentimento pleno e livre; a conseqüência é a violência presumida." (DJU de 31.8.1992, p. 13653). De todo o exposto, tenho, pois, que a exegese conducente a afastar a incidência do art. 224, letra "a", do Código Penal, quando a menor de quatorze anos manifestar consentimento em ato sexual, levaria a tornar impunes ações socialmente reprováveis, inaceitáveis e mesmo abjetas de elementos inescrupulosos que buscariam satisfação sexual com pobres crianças, já desprotegidas, em razão da miséria material e do abandono moral e intelectual, que cercam a prostituição infantil. Bastaria, a seguir, para a impunidade, que a infeliz vítima, em razão de dinheiro ou de favores outros do sujeito ativo, ou mesmo por medo de represália, afirmasse que consentira na prática da conjunção carnal ou que provocara, para isso, o agente do ilícito. Tal interpretação, "data venia", - além de negar o texto da lei, sua finalidade que é a proteção ao menor de quatorze anos, - não contribuiria, de outra parte, para a solução do gravíssimo problema da infância e da adolescência de nosso tempo, a qual não se restringe a mero amparo material a legiões de meninos e meninas que perambulam pelas ruas de nossas cidades, mas simultaneamente, exige, dos Poderes Públicos e das instituições privadas, a assistência moral e espiritual, em ordem a que possam participar dos valores da cidadania e se integrar nos caminhos da dignidade humana. O Poder Judiciário é co-responsável nessa obra da nacionalidade, cumprindo-lhe, destarte, não dar às leis interpretação que, aparentemente, atenderia a uma época de liberação sexual, mas que, em verdade, conduzirá à impunidade em crimes dessa natureza e isso implicará, assim, concorrer, na aplicação da lei, para a crescente dissolução dos costumes. A lei quer dar proteção ao que não é maior de quatorze anos; não é cabível, destarte, conferir-lhe interpretação que terá como destino, evidentemente, favorecer os que buscam dar satisfação a seus instintos sexuais, fora do matrimônio ou de relação familiar estável nos termos da Constituição, procurando menores, quase sempre desamparados, ou fruto da liberação dos costumes, os quais, por sua imaturidade, seriam, ainda uma vez, vítimas da própria sociedade. Com a devida vênia, mantenho a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, porque é a que melhor atende aos objetivos da lei, à exigida proteção social aos menores de quatorze anos e aos interesses maiores da sociedade. Indefiro o habeas corpus.


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