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Mia Couto

 

 

 

 

 

 

 

 

Biografia

Mia Couto (1955- ) é o nome literário de um dos escritores moçambicanos mais conhecidos no estrangeiro. António Emílio Leite Couto ganhou o nome Mia do irmãozinho que não conseguia dizer "Emílio". Segundo o próprio autor a utilização deste apelido tem a ver com sua a paixão pelos gatos e desde pequeno dizia a sua família que queria ser um deles.

Nasceu na Beira, a segunda cidade de Moçambique, em 1955. Ele disse uma vez que não tinha uma "terra-mãe" - tinha uma "água-mãe", referindo-se à tendência daquela cidade baixa e localizada à beira do Oceano Índico para ficar inundada...

Iniciou o curso de Medicina ao mesmo tempo que se iniciava no jornalismo e abandonou aquele curso para se dedicar a tempo inteiro à segunda ocupação. Foi director da Agência de Informação de Moçambique e mais tarde tirou o curso de Biologia, profissão que exerce até agora.

 

Estreou-se no prelo com um livro de Poesia - Raiz de Orvalho, publicado em 1983. Mas já antes tinha sido antologiado por outro dos grandes poetas moçambicanos, Orlando Mendes (outro biólogo), em 1980, numa edição do Instituto Nacional do Livro e do Disco, resultante duma palestra na Organização Nacional dos Jornalistas (actual Sindicato), intitulada "Sobre Literatura Moçambicana".

Em 1999, a Editorial Caminho (que publica em Portugal as obras de Mia) relançou Raiz de Orvalho e outros poemas que, em 2001 teve sua 3ª edição.

Depois, estreou-se nos contos e numa nova maneira de falar - ou "falinventar" - português, que continua a ser o seu "ex-libris".

 

Carta ao Presidente Bush

 

CARTA de Mia Couto AO PRESIDENTE BUSH
Mia Couto
 
Senhor Presidente:
Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra.
Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito.
Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir?
A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria.
Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia.
Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do "apartheid" - violava de
forma flagrante os direitos humanos.
Durante décadas fomos vítimas da agressão desse regime.
Mas o regime do "apartheid" mereceu da vossa parte uma atitude mais branda:
o chamado "envolvimento positivo".
O ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!".
Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos.
Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho.
Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos.
Pois sonhei que eu era não um homem mas um País.
Sim, um país que não conseguia dormir.
Porque vivia sobressaltado por terríveis factos.
E esse temor fez com que proclamasse uma exigência.
Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro presidente.
E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva.
Por razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país.
Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspiravam?
Não eram produtos de sonho, infelizmente.
Eram factos que alimentavam a minha desconfiança.
A lista é tão grande que escolherei apenas alguns:
 
- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras nações;
 
- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da força"
pelo Tribunal Internacional de Justiça;
 
- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão;
 
- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto praticava
as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o gaseamento dos
curdos em 1998);
 
- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba
foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e baleado
na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídrico;
 
- Como tantos outros fantoches, Mobutu Seseseko foi por vossos agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu nenhum reparo dos EUA até que
ele deixou de ser conveniente, em 1992;
 
- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a resposta da  Administração Clinton foi "o assunto é da responsabilidade do governo indonésio e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade";
 
- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant um dos líderes mais sanguinários do Taiti cujas forças para-militares massacraram milhares de inocentes. Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua extradição. O governo americano recusou o pedido;
 
- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão uma  fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de Nairobi e Dar-es-Saalam.
 
- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao terrorismo internacional.
Mesmo assim, a moção foi aprovada pelo voto de cento e cinquenta e três
países.
 
- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram massacrados.
 
- A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa. Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA bombardearam: a China(1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo(1964), o Peru(1965), o Laos (1961-1973), o Vietname (1961-1973), o Camboja(1969-1970), a Guatemala (1967-1973), Granada (1983),Líbano(1983-1984), a Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua(1980), o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a Somália (1993), a Bósnia (1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão (1998), a Jugoslávia (1999) Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em prática pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína naquele país. O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência da guerra química das forças norte-americanas.
 
Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o
Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um ditador. Mas
ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades nas nossas
já precárias economias e teremos menos esperança num futuro governado pela razão e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das convenções do direito internacional. Estaremos, enfim, mais sós e mais desamparados.
 
Senhor Presidente:
O Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que
trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se oshorrores da primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de150 000 homens. O que está destruindo massivamente os iraquianos não são as armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações Unidas (Dennis Hallidaye Hans Von Sponeck) pediram a demissão em protesto contra essas mesmassanções. Explicando a razão da sua renúncia, Halliday escreveu:
"Estamos destruindo toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso.
E isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já levou à morte meio
milhão de crianças iraquianas.
Mas a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou há muito
tempo. Nas zonas de restrição aérea a Norte e Sul do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12 anos. Acredita-se que 500
iraquianos foram mortos desde 1999. O bombardeamento incluiu o uso massivo de urânio empobrecido (300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo). Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão seguros quando se tiver que gastar fortunas em armas. Como o seu país que despende 270 000 000 000 000 dólares (duzentos e setenta biliões de
dólares) por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável de milhões de seres.
O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu-lhe no final do ano  passado uma carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA ?" O bispo
da Igreja Católica da Florida é um ex - combatente na guerra do Vietname.
 
Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente ! Somo salvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso governo depuseram líderes popularmente eleitos substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu próprio povo às corporações norte-americanas multinacionais ?
E o bispo conclui:
O povo do Canadá desfruta  de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como  o povo da Noruega e da Suécia.
Alguma vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas ou suecas?
Nós somos odiados não porque praticamos a democracia, a liberdade ou os direitos humanos.
Somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas aos povos dos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas multinacionais."
Senhor Presidente:
 
Sua Excelência parece não necessitar que uma instituição internacional legitime o seu direito de intervenção militar. Ao menos que possamos nós
encontrar moral e verdade na sua argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós  preferíamos vê-lo assinar a Convenção de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional contra o Racismo. Não se preocupe, senhor Presidente. A nós, nações pequenas deste mundo, não nos passa pela cabeça exigir a vossa demissão por causa desse apoio que as vossas sucessivas administrações concederam apoio a não menos sucessivos ditadores. A maior ameaça que pesa sobre a América não são armamentos de outros. É o universo de mentira que se criou em redor dos vossos cidadãos. O perigo não é o regime de Saddam, nem nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu governo. O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA.
 
Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos. Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação e consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade e pensar.
 
Mia Couto

 

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