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Excerto do livro "Eva Luna" de Isabel Allende

 

 

Eva Luna

 

“…Passaram muitos anos sem sobressaltos para Consuelo. Não conhecia as novidades à sua volta, porque do claustro das freiras passara para o da casa do professor Jones. Havia lá um rádio para ouvir as notícias, mas raramente se ligava, só se ouviam os discos de ópera que o patrão punha na sua magnífica grafonola. Também não chegavam jornais, apenas revistas científicas, porque o sábio indiferente aos factos que ocorriam no país ou no mundo, estava muito mais interessado em conhecimentos abstractos, factos históricos ou prognósticos de um hipotético futuro, do que nas emergências vulgares do presente. A casa era um imenso labirinto de livros. Ao longo das paredes, desde o chão até ao tecto, acumulavam‑se os volumes misteriosos, com encadernações a cheirar a couro, macias ao tacto, rangentes, com os títulos e os cantos em ouro, folhas transparentes e delicadas gravuras. Todas as obras do pensamento universal se encontravam naquelas prateleiras colocadas sem uma ordem aparente, embora o professor soubesse exactamente o lugar de cada uma. As obras de Shakespeare repousavam junto de O Capital, as máximas de Confúcio ombreavam com a Vida das Focas, mapas de antigos nayegantes jaziam junto de novelas góticas e poesia da India. Consuelo passava várias horas do dia a limpar os livros. Quando terminava a última estante tinha de começar tudo de novo, mas isso era o seu trabalho mais agradável. Pegava‑lhes delicadamente, sacudia‑lhes o pó como se os acariciasse e folheava‑os como se mergulhasse por minutos no mundo privado de cada um. Aprendeu a conhecê‑los e a localizá‑los nas prateleiras. Nunca se atreveu a pedi‑los emprestados, por isso retirava‑os às escondidas, levava‑os para o quarto, lia‑os pela noite dentro e no dia seguinte colocava‑os nos seus lugares….” 

 

“…Consuelo não manifestou qualquer emoção. Continuou a trabalhar como sempre, ignorando as náuseas, o peso das pernas e os pontos coloridos que lhe enevoavam a vista, sem mencionar o extraordinário medicamento com que tinha salvo o moribundo. Não o disse, nem sequer quando começou a crescer‑lhe a barriga, nem quando o professor Jones a chamou para lhe dar um purgante, convencido de que aquele inchaço se devia a um problema digestivo, nem tão‑pouco o disse quando, na devida altura, deu à luz. Aguentou as dores durante treze horas sem deixar de trabalhar e quando já não podia mais, fechou‑se no quarto disposta a viver plenamente esse momento, como o mais importante da sua vida. Penteou o cabelo, entrançou‑o apertadamente, atou‑o com uma fita nova, despiu‑se, lavou‑se dos pés à cabeça, depois estendeu um lençol limpo no chão e sobre ele pôs‑se de cócoras, tal como tinha visto num livro sobre costumes dos esquimós. Coberta de suor, com um trapo na boca para abafar os gritos, fez força para trazer ao mundo a criança obstinada que se agarrava a ela. Já não era jovem e não foi tarefa fácil, mas o hábito de esfregar o chão de gatas, de carregar com pesos pela escada e de lavar a roupa até à meia‑noite, tinha‑lhe dado músculos firmes com os quais pôde finalmente parir. Primeiro viu surgir dois minúsculos pés que se moviam como se tentassem dar o primeiro passo num árduo caminho. Respirou profundamente e com um último gemido sentiu que algo se rompia no centro do seu corpo e uma massa estranha deslizava entre as suas coxas. Um enorme alívio comoveu‑a até à alma. Ali estava eu envolta num cordão azul, que ela separou com cuidado do meu pescoço, para me ajudar a viver. Nesse momento abriu‑se a porta e entrou a cozinheira que, tendo notado a sua ausência, adivinhara o que se estava a passar e acudiu a socorrê‑la. Encontrou‑a nua, comigo deitada sobre o ventre, ainda unida a ela por um laço palpitante….”

 

 


 

 

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