DOUTRINA CATÓLICA

Doutrina Católica

JUSTIFICAÇÃO: O ACORDO CATÓLICO-LUTERANO

Luteranos e Católicos se encontram (III):

Em síntese: Abaixo vão transcritos em tradução portuguesa pontos importantes da famosa Declaração Conjunta Católico-Luterana assinada a 31/10/99. A leitura desses textos evidencia que ninguém merece, por suas boas obras, tornar-se justo ou amigo de Deus, mas também mostra a necessidade das boas obras para que o cristão possa permanecer na graça recebida. Cada qual será julgado na base do seu comportamento frente aos irmãos necessitados, conforme Mt 25, 31-46. Sempre foi pacífico na Igreja Católica que, assim como ninguém começa a ser amigo de Deus porque o mereceu, assim também ninguém pratica as boas obras necessárias à salvação sem a graça de Deus.

A Declaração Conjunta Católico-Luterana foi elaborada durante anos de estudos por uma Comissão mista de teólogos católicos e luteranos e, finalmente, submetida ao parecer da suprema autoridade de cada uma das duas confissões religiosas. A Federação Luterana Mundial aprovou-a aos 17/06/98, ao passo que a Igreja Católica aos 25/06/98 pediu ulteriores esclarecimentos, que foram obtidos e aprovados num Anexo à Declaração Conjunta.

O Comunicado que acompanha a Declaração e seu Anexo assinado pelas duas partes interessadas, diz o seguinte:

"Os dois parceiros do diálogo estão dispostos a prosseguir e aprofundar o estudo dos fundamentos bíblicos da doutrina da justificação. Procurarão assim progredir na sua compreensão comum da doutrina da justificação, para além dos pontos abordados na Declaração Conjunta e no Anexo que a completa. Na base do consentimento obtido, a continuação do diálogo é necessária em particular no tocante às questões especificamente mencionadas na Declaração Conjunta nº 43(1) como sendo pontos que exigem mais amplos esclarecimentos, a fim de se atingir plena comunhão eclesial, ou uma unidade na diversidade em que as diferenças remanescentes seriam 'reconciliadas' e não dariam mais motivo de divisão. Luteranos e católicos prosseguirão em seus esforços para testemunhar em comum um espírito ecumênico, a fim de interpretar a mensagem da justificação numa linguagem acessível aos homens e às mulheres de nosso tempo e em vista das preocupações tanto individuais quanto sociais dos nossos dias".

A Declaração Conjunta é um documento extenso de vinte páginas, de modo que não pode ser na íntegra transcrito em nossa revista. Todavia o Anexo exprime claramente o que o longo texto quer dizer, de modo que, a seguir, vai apresentado o teor desse Anexo em tradução portuguesa.

"Pelo presente documento a Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial confirmam a Declaração Comum a propósito da doutrina da justificação em sua íntegra.

1. Os esclarecimentos seguintes enfatizam o consentimento estabelecido na Declaração Comum sobre a Doutrina da Justificação (DC) concernentes às verdades fundamentais da justificação. Assim aparece nitidamente que as condenações mútuas dos tempos antigos não se referem às doutrinas católica e luterana da justificação tais como são apresentadas na Declaração Comum.

2. 'Confessamos juntos: é somente pela graça, por meio da fé na ação salvífica de Cristo, e não por causa de méritos nossos, que somos aceitos por Deus e recebemos o Espírito Santo, que renova os nossos corações, nos habilita e nos chama a cumprir boas obras' (DC 15).

A) 'Confessamos juntos que é somente por graça que Deus perdoa aos seres humanos os pecados e os liberta da escravidão do pecado...' (DC 22). Pela justificação perdoados são os nossos pecados e somos justificados, e Deus o realiza 'oferecendo a vida nova em Cristo' (DC 22). 'Por conseguinte, justificados pela fé, estamos em paz com Deus' (Rm 5,1). Somos 'chamados filhos de Deus, e nós o somos realmente' (1Jo 3,1). Somos autêntica e interiormente renovados pela ação do Espírito Santo, ficando sempre dependentes da obra dele em nós. 'Por conseguinte, se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. O mundo antigo passou, eis que se fez uma realidade nova' (2Cor 5, 17). Neste sentido, os justificados deixam de ser pecadores.

Todavia nós nos enganaríamos se disséssemos que não temos pecado (1Jo 1, 8-10; cf. DC 28), 'pois todos nós tropeçamos' (Tg 3, 2). 'Quem percebe os seus erros? Perdoa-me as faltas ocultas!' (Sl 19,13). E, quando oramos, apenas podemos dizer com o coletor de impostos: 'Meu Deus, tem piedade do pecador que eu sou' (Lc 18, 13). Isto se exprime de muitas maneiras em nossas liturgias. Juntos ouvimos a exortação: 'Que o pecado não reine em vosso corpo mortal para vos fazer obedecer às suas cobiças' (Rm 6,12). Isto nos lembra o perigo permanente que vem do poder do pecado e de sua ação sobre os cristãos. Nesta medida, luteranos e católicos podem compreender juntos que o cristão é simul justus et peccator (simultaneamente justo e pecador), apesar das diferentes abordagens deste tema expostas em DC 29-30.

B) O conceito de concupiscência é utilizado em sentidos diferentes pelo lado católico e pelo lado luterano. Nos escritos confessionais luteranos, a concupiscência é entendida como o desejo egoísta do ser humano, que, à luz da Lei no sentido espiritual, é considerado como pecado. Na concepção católica, a concupiscência é uma tendência que subsiste na pessoa humana mesmo após o Batismo, proveniente do pecado e tendente ao pecado. Apesar das diferenças que aqui aparecem, pode-se reconhecer na perspectiva luterana que o desejo se pode tornar a abertura pela qual o pecado ataca. Em conseqüência do poder do pecado, o ser humano inteiro traz a tendência a opor-se a Deus. Essa tendência, segundo as concepções luterana e católica, 'não corresponde ao plano inicial de Deus em relação aos homens' (DC 30). O pecado tem uma característica pessoal e, a este titulo, leva à separação de Deus. É a cobiça egoísta do velho homem e a falta de confiança e de amor a Deus.

A realidade da salvação no Batismo e o perigo do poder do pecado podem ser expressos de tal modo que, de um lado, o perdão dos pecados e a renovação do gênero humano em Cristo pelo Batismo são enfatizados e, de outro lado, pode-se ver que mesmo o cristão justificado 'não está isento do poder sempre ainda ameaçador nem do domínio do pecado' (cf. Rm 6,12-14); ele não está dispensado de combater constantemente... a aversão a Deus' (DC 28).

C) A justificação intervém 'somente por graça' (DC 15 e 16). Unicamente por meio da fé a pessoa é justificada 'independentemente das obras' (Rm 3, 28; cf. DC 25). 'A graça cria a fé não somente quando a fé nasce em alguém, mas também enquanto a fé perdura' (São Tomás de Aquino, Summa Theologiae II/II 4, 4 ad 3). A obra da graça de Deus não exclui a ação do homem; Deus realiza tudo, o querer e o agir; eis por que somos chamados a agir bem (cf. FI 2, l2ss). 'Disto se segue que nós podemos e devemos cooperar pela força do Espírito Santo... desde que o Espírito Santo tenha começado em nós sua obra de regeneração e de renovação pela Palavra e pelos sacramentos...' (Fórmula de Concórdia, FC SC II 64s, nº 975 in: La foi des Eglises luthériennes. Confessions et catéchismes. Paris 1 Genéve 1991; BSLK 897, 37ss).

D) A graça, na medida em que é comunhão dos justificados com Deus na fé, na esperança e na caridade, é sempre recebida em consequência da obra criadora e salvífica de Deus (cf. DC 27). Não obstante, é da responsabilidade dos justificados não esbanjar essa graça, mas viver nela. A exortação a realizar boas obras é exortação a pôr em prática a fé (cf. Apologie de la Confession d'Augsbourg IV nº 129 in: La Foi des Eglises luthériennes...; BSLK 197, 45). As boas obras dos justificados deveriam ser praticadas 'para que a vocação seja consolidada, isto é, a fim de que o cristão não perca sua vocação pecando novamente' (Apol. XX, 13, nº 270 in: La Foi des Eglises luthériennes...; BSLK 316,18-24, com referência a 2Pd 1,10. Cf. também FC SC IV; 33, nº 1012 in: La foi des Eglises luthériennes...; BSLK 948, 9-23). Neste sentido, luteranos e católicos podem compreender juntos o que é dito a respeito da 'preservação da graça' em DC 38 e 39. Por certo, 'tudo o que na pessoa precede e segue o livre dom da fé não é a causa da justificação e não a merece' (DC 25).

E) Pela justificação, somos incondicionalmente postos em comunhão com Deus. Isto inclui a promessa da Vida eterna; 'Se nós fomos totalmente unidos, assemelhados à sua morte, nós o seremos também no tocante à sua ressurreição' (Rm 6, 5; cf. Jo 3, 36; Rm 8,17). No dia do último juízo, os justificados serão julgados também segundo as suas obras (cf. Mt 16, 27; 25, 31-46; Rm 2,16; 14, 12; 1Cor 3, 8; 2Cor 5,10, etc.). Seremos confrontados a um julgamento no qual a sentença misericordiosa de Deus aprovará tudo o que, em nossa vida e em nosso agir, corresponder à sua vontade. Ao contrário, tudo o que houver de mau em nossa vida, será revelado e não terá acesso à Vida eterna. A Fórmula de Concórdia diz também: 'Deus quer que os fiéis pratiquem boas obras; tal é a sua ordem, tal é o seu preceito;... obras nas quais o Espírito Santo age, obras que agradam a Deus por causa de Jesus Cristo. E Ele promete recompensar gloriosamente seus fiéis tanto neste mundo como no mundo vindouro' (FC SD IV, 38). Toda recompensa é uma recompensa dada à graça, que não temos o direito de pretender obter.

3. A doutrina da justificação é a pedra de toque da fé cristã. Nenhum ensinamento pode ir de encontro a esse critério. Em tal sentido, a doutrina da justificação é 'um critério indispensável que remete incessantemente a Cristo o conjunto da doutrina e da prática da Igreja' (DC 18). A este título, ela tem sua verdade e seu significado específico no contexto geral da confissão de fé trinitária fundamental da Igreja. Juntos, 'temos por meta confessar em toda parte o Cristo, colocar tão somente nele nossa confiança, pois ele é o único Mediador (lTm 2, 5s), pelo qual Deus se dá no Espírito Santo e oferece seus dons renovadores' (DC 18).

4. A resposta da Igreja Católica não tenciona pôr em questão a autoridade dos Sínodos luteranos ou da Federação Luterana Mundial. A Igreja Católica e a Federação Luterana Mundial iniciaram o diálogo e o continuam como parceiros dotados de iguais direitos (par cum par). Apesar de haver diferentes concepções de autoridade na Igreja, cada parceiro respeita o processo seguido pelo outro no tocante às decisões doutrinárias".

REFLETINDO...

Como se pode perceber, o texto do Anexo, como também o da Declaração Conjunta, não é de fácil leitura, pois desce a minúcias, por vezes, repetitivas. Todavia pode-se dizer que, através da linguagem cautelosa e tendente à precisão, exprime três pontos doutrinários de grande significado:

1) Ninguém se torna justo ou amigo de Deus por seus próprios méritos, pretensamente anteriores à graça de Deus. Tal verdade já foi definida pela Igreja durante a controvérsia semipelagiana, tendo em vista a tese herética segundo a qual a entrada na fé e na amizade com Deus se devia unicamente à iniciativa do homem. A gratuidade do chamado divino e a concessão da graça correspondente são totalmente gratuitas. Verifica-se, aliás, que a Declaração enfatiza constantemente o aspecto "gratuidade" - o que dá a impressão de que basta crer e aceitar o dom de Deus para conseguir a salvação. Ora tal conclusão seria falsa, pois o próprio documento reconhece nitidamente a necessidade e o valor das boas obras para se obter a salvação eterna (cf. nº 3 a seguir).

2) Mesmo feito justo ou amigo de Deus, o homem continua sendo simultaneamente santo e pecador. Santo, porque os pecados lhe foram perdoados. Pecador, porém, porque, mesmo após o perdão, fica a cobiça desregrada no íntimo do homem, resquício do pecado absolvido. Este fato é de experiência cotidiana e inegável. Todavia aqui se estabelece uma diferença entre luteranos e católicos, que não foi superada; com efeito, para os luteranos o simples fato de haver tendências desregradas no homem já é pecado, e, como essas tendências persistem geralmente até a morte do individuo, Lutero considerava o homem irremediavelmente vendido ao pecado ou escravo do pecado. Para os católicos, a concupiscência remanescente é conseqüência do pecado e tende ao pecado, mas não é pecado se não quando aceita e alimentada voluntariamente; quando combatida, não pode ser tida como pecado, pois todo pecado é um ato consciente e cometido com responsabilidade. - A questão portanto deverá provavelmente ser objeto de ulteriores conversações entre as partes interessadas.

3) Assim como ninguém entra na amizade com Deus por seus méritos próprios, assim também ninguém fica nessa amizade a não ser que traduza sua fé em obras boas. A fé inerte é condenável, conforme São Tiago (2, 14-26). O Documento não cita a epístola de São Tiago, mas cita o Evangelho e São Paulo, especialmente o quadro do juízo final: "no dia do último juízo os justificados serão julgados segundo as suas obras... Deus quer que os fiéis pratiquem boas obras; tal é a sua ordem, tal é o seu preceito" (Anexo nº 2). Verdade é que ninguém pratica algo de bom senão por graça ou dom de Deus; ao homem, porém, toca a liberdade de corresponder ou não à graça divina; caso não lhe corresponda e cometa o mal, ele se exclui da vida eterna. Donde se vê que não se pode apregoar simplesmente a salvação só pela fé, sem se levar em conta o que a criatura humana tenha ou não tenha feito.

Em síntese, pode-se dizer que o Acordo luterano-católico reconhece que:

a) ninguém entra na amizade com Deus porque o tenha merecido mediante boas obras, mas:

b) ninguém permanece nessa amizade se não exteriorizar sua fé através de boas obras,... boas obras que são suscitadas pela graça, sendo que a graça tanto pode ser aceita como pode ser rejeitada pelo cristão.

Nota:

(1) Eis os pontos que, conforme o citado nº 43, necessitam de ulterior estudo: a relação entre a Palavra de Deus e o magistério da Igreja, a Eclesiologia, a autoridade na Igreja e a unidade da Igreja, o ministério sacerdotal e os sacramentos, a relação entre justificação e Ética Social (N. da Redação).

Autor: d. Estevão Bettencourt:

Fonte: PR 455 - pp. 169-174

Hosted by www.Geocities.ws

1