Spinoza de novo

 

A história da filosofia desconhece a linha reta. Seu tempo não é aquele das sucessões lineares, onde a passagem de um sistema filosófico a outro aparece como um progresso inexorável. O tempo da filosofia é este no qual o presente não é outra coisa que uma versão mais contractada do passado. Presente como campo de forças no qual vários passados entram em confronto e relação. Isto talvez explique esta plasticidade que faz com que certos autores clássicos ganhem atualidade inesperada em vários momentos da história.

            Peguemos, por exemplo, o caso de Spinoza. Conhecemos dois grandes momentos de recuperação do spinozismo. O primeiro ocorreu no idealismo e romantismo alemães, onde o monismo do filósofo holandês aparecia como uma via possível para a constituição de uma crítica às dicotomias produzidas pelo entendimento kantiano. O segundo ocorreu no pensamento francês contemporâneo (em especial através de nomes como Deleuze e Althusser). Neste caso, a recuperação de um spinozismo mediado muitas vezes por Nietzsche aparecia, sobretudo, como forma de anular o peso do hegelianismo que havia marcado o pensamento francês até os anos cinqüenta.

            Sentimos os efeitos desta segunda recuperação do spinozismo até hoje. Noções fortemente presentes no debate contemporâneo das idéias como: imanência (utilizada no campo da política, por exemplo, por Toni Negri), recuperação da centralidade do corpo no interior da reflexão filosófica, esgotamento da filosofia do sujeito devem muito a uma certa recuperação do spinozismo.

            De qualquer forma, é notável como a contemporaneidade conseguiu inverter uma equação quase constante durante toda a filosofia moderna que colocava Spinoza como a pior figura regressiva da filosofia, como uma espécie de fantasma paradigmático do irracionalismo. Hegel, que fora acusado de spinozismo, definia o pensamento do filósofo holandês como: “eco do pensamento oriental”. No que ele expunha claramente a maneira com que a filosofia de Spinoza aparecia fora de uma certa noção de Ocidente fundamental para a constituição da modernidade. Noção depende, sobretudo, da laicização de categorias teológicas, da constituição de uma metafísica elaborada através das dicotomias instauradas por um pensamento judaico-cristão. No entanto, se atualmente Spinoza aparece como um contemporâneo, talvez seja porque o pensamento ocidental aprendeu a desconfiar de si mesmo.

 

Ontologia e ética

 

            É neste contexto que chega às livrarias uma nova tradução da Ética (Autêntica, trad. Tomaz Tadeu), assim como o curioso A vida e o Espírito de Baruch de Espinosa (Martins Fontes), composto por uma biografia provavelmente escrita por um discípulo de Spinoza em 1678 e pelo Tratado dos três impostores: panfleto anônimo anti-clerical contra Moisés, Jesus e Maomé profundamente marcado por um certo spinozismo que animava meios ateus no século XVII e XVIII. A edição deste segundo volume não deixa de ter sua ironia em um tempo, com o nosso, que assiste o retorno do fundamentalismo cristão travestido de crítica da modernidade.

            A nova tradução da Ética é um empreendimento editorial louvável. Anteriormente, o Brasil dispunha de duas traduções: uma feita por Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antonio Simões e outra, mais antiga, levada a cabo por Lívio Xavier. No entanto, nenhuma delas continha aparato crítico e o texto original em latim. Além disto, salta aos olhos um cuidado de tradução que foi capaz de aliar precisão conceitual e recusa em abandonar o solo das potencialidades coloquiais da língua portuguesa, isto além da generosidade em não abarrotar o texto com notas de edição que procuram dirigir a interpretação. Graças a isto, temos enfim nas livrarias brasileiras uma edição à altura de uma dos livros maiores da história da filosofia. Que este cuidado imponha, entre nós, um novo parâmetro na tradução de textos clássicos.

            Muito haveria a se dizer a respeito da originalidade de Ética com sua ordem geométrica e seu estilo translúcido próprio à grande tradição racionalista do século XVII. Partindo da constituição de uma ontologia monista assentada na defesa da univocidade do Ser, Ética  pode apresentar deus como substância de todas as coisas, como o ser uno que se expressa na multiplicidade de todos os entes. Ele é causa imanente do que há. O que valeu à filosofia de Spinoza a acusação reiterada de panteísmo que rebaixaria deus à condição de natureza que se expressa sem a necessidade de se pôr como transcendência.

            Esta ontologia fornece o fundamento tanto para uma teoria complexa do conhecimento quanto para uma reflexão sobre os modos de determinação e orientação da conduta, ou seja para uma ética que, por partir de uma perspectiva monista, não precisa basear-se em dicotomias entre vontade livre e desejo patológico, mente autônoma e corpo preso à heteronomia da natureza, entre outros. Dicotomias que marcarão estruturas gerais da reflexão moderna sobre a ética. Desta forma, Spinoza fornecia vias possível para a reconstrução profunda de questões maiores da filosofia. Uma reconstrução a respeito da qual medidos as conseqüências até hoje.

 

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, autor de ‘Lacan” (Publifolha, 2007) e “A paixão do negativo: Lacan e a dialética” (Unesp, 2006).

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