O que significa “estar doente”?

 

 

“A saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Esta frase famosa do cirurgião francês René Leriche indicava como a doença é, em última instância, o que faz o corpo falar. É a experiência da doença que rompe uma certa imanência silenciosa entre sujeito e o seu próprio corpo; é ela que transforma o corpo em um “problema” que determina exigências de saber e configura necessidades de cuidado e intervenção. Desde há muito, ouvimos que “o homem que pensa é um animal doente”. A frase se presta a, pelo menos, duas interpretações: não apenas que o pensar é uma doença que marca o ponto de exílio em relação a uma naturalidade perdida, mas, principalmente, que a doença é o que provoca o pensar. Pois, se é verdade que toda ciência procede do espanto, então não haveria como esquecer desta afirmação maior do filósofo Georges Canguilhem: “o espanto verdadeiramente vital é a angústia suscitada pela doença”[1].

Se assim for, temos sempre o direito de perguntar de onde vem isto que poderíamos chamar de “gramática da doença”, ou seja, este modo com que o saber transforma a doença em discurso pronto para ser lido e interpretado pelo olhar clínico. Discurso que se expressa em sintomas, nosografias, distúrbios, transtornos, síndromes e sinais vitais. Pois uma das idéias fundamentais de uma combativa tradição epistemológica do século XX, esta que tem nomes como Michel Foucault e Georges Canguilhem, consistiu em lembrar que a doença, o patológico, não tem gramática própria. A maneira com que ela fala depende da maneira com que organizamos o que há a ser visto e ouvido.

A princípio, tudo isto pode parecer muito abstrato e especulativo. Afinal, estamos acostumados a pensar que a configuração do nosso saber sobre a doença é resultado direto da eficácia em combater o sofrimento e em re-instaurar a saúde.

Lembremos, no entanto, o que tal perspectiva tem de ideológica (sim, a palavra é antiga, mas não deveríamos ter medo de usar velhas palavras). Pois é ideológico todo sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de justificação como se estivéssemos diante de “fatos que falam por si mesmo”. Neste sentido, podemos perguntar: afinal, o sofrimento é um “fato que fala por si mesmo” ou é um fenômeno que é levado a falar no interior de contextos sócio-históricos determinados? Podemos, por exemplo, tirar as conseqüências de afirmações como esta, de Foucault: “Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e estável, em oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob sua especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se passaria como se : “Na aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residisse em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia”[2]. Tal pressuposição de imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz sofrer” muda constantemente de configuração.

Poderíamos tentar dizer que a experiência da dor é algo que ancora o sofrimento em um solo inquestionável e indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria difícil lembrar como não há nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de um sofrimento vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. Há dores que certos sujeitos procuram como quem procura a manifestação de uma espécie de auto-violência criadora. Basta lembrar aqui das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche: “Só a grande dor, esta longa e lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe melhor, mas eu sei que ela nos aprofunda”[3].

Se aceitarmos estas posições, temos diante de nós questões que guardam toda sua atualidade. Pois devemos sempre perguntar: o que está pressuposto em afirmações como “alguém sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo”, “alguém sofre de Transtorno de Déficit de atenção e de Comportamento Disruptivo”, “alguém sofre de Transtorno do Desejo Sexual”? Dentre várias coisas, vale sempre a pena perceber como a doença é compreendida, nestes casos, como um fenômeno de funções órgãos tomados de maneira isolada. Por trás da constituição de patologias que permitem a constituição de diagnósticos e intervenções que privilegiam categorias pontuais, há a crença fundamental de que a doença nada mais é do que alguma forma de distúrbio, transtorno, déficit ou excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Isto legitima uma prática que compreende a diferença entre normal e patológico como uma mera diferença quantitativa, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo, apenas variações quantitativas de base fisiológica, o que o vocabulário do déficit expõe de maneira bastante clara.

Esta perspectiva, por sua vez, possibilita tanto uma clínica submetida à fisiologia quanto uma terapêutica que se submete de maneira praticamente sem limites à medicalização, já que ela é o caminho mais curto para a regulação de variações quantitativas de base fisiológica.. Pois, a doença aqui nada mais é do que um sub-valor derivado do normal. É a definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da clínica.  Esta experiência clínica exige que o normal esteja assentado em um campo mensurável acessível à observação. Tal campo privilegiado é a fisiologia que aparece assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos postulados de uma anatomia patológica, ou seja, de uma anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa explicativa para o desvio da conduta.

Desta forma, a gramática das doenças de nossa época pode ser atomizada e quantificadora porque ela se submete a um ideal normativo assentado na crença na possibilidade de determinar o normal como estrutura valorativa positiva. Neste sentido, o discurso hegemônico das ciências médicas e médico-psiquiátricas da contemporaneidade não inovou. Na verdade, ele simplesmente reatualizou, como dizia Canguilhem, “uma espécie de dogma cientificamente garantido” a respeito da distinção entre normal e patológico que nos remeteu novamente ao século XIX.

Que o progresso científico apareça como um grande salto para trás, eis algo que não deveria nos impressionar, até porque não será a primeira vez que isto ocorre. Historiadores das ciências gostam de ver sua disciplina como a descrição de um irresistível progresso em direção a um espelhamento, cada vez mais acabado, do mundo e de suas propriedades, assim como a descrição de um aprofundamento reflexivo sobre os limites e desafios do fazer científico. Infelizmente, esta história é, muitas vezes, a descrição da consolidação de práticas de instrumentalização e controle ideologicamente orientadas. Neste sentido, é sempre bom lembrar que decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico são, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica.

Fica, no entanto, a questão sobre a possibilidade de uma outra visão a respeito do que está em jogo na distinção entre normal e patológico, no que está em jogo na própria definição de “doença”. Neste sentido, é lastimável que teóricos da ciência como Georges Canguilhem sejam tão pouco lidos. O mesmo Canguilhem que afirmava: “Quando classificamos de patológico um sintoma ou um mecanismo funcional isolados, esquecemos que aquilo que os torna patológicos é sua relação de inserção na totalidade indivisível de um comportamento individual”[4]. 

Todo o trabalho de Canguilhem diz respeito à tentativa de mostrar que devemos compreender a doença não como uma variação quantitativa de um estado normal, mas como uma diferença qualitativa fundamental que atinge todo o organismo com a integralidade de seus processos e funções. Pois não haveria um único fenômeno que se realizaria no organismo doente da mesma forma que no organismo são. Canguilhem chega mesmo a afirmar que ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Isto implica em assumir que a doença é a produção de novas normas de ajustamento entre o organismo e o meio ambiente; normas estas que, embora sejam vivenciadas como restrição do mundo e da capacidade de atuação do indivíduo biológico, podem, muitas vezes, ser o embrião do desenvolvimento de novos comportamentos. O que aparece como anormal é, em vários casos, o prenúncio de uma nova potência de normatividade em relação à vida. Daí esta definição surpreendente de Canguilhem: a saúde não é o ajustamento completo entre organismo e meio ambiente; ela é a conservação de uma margem de transcendência e de infidelidade do organismo em relação ao meio. Margem que permite ao organismo não sucumbir à primeira modificação do meio.

Não se trata, com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somática e causalidade psíquica, entre organogênese e psicogênese. A posição de Canguilhem é mais radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biológico quando vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões gerais de mensuração e quantificação? Esta vida não seria apenas o exemplo de uma razão que se transformou em princípio de dominação e controle da vida, ou seja, naquilo que um dia Foucault chamou de biopoder? Se assim for, então o verdadeiro saber sobre a doença é indissociável de um impulso de politização da clínica.

 

Vladimir Safatle, Professor do Departamento Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de “A paixão do negativo: Lacan e a dialética” (Unesp, 2006)

 

 

 



[1] CANGUILHEM, O normal e o patológico, Forense Universitária, p. 76

[2] FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60

[3] NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução

[4] CANGUILHEM, idem, p. 65

Hosted by www.Geocities.ws

1