Deleuze permanece

França celebra o pensamento de Gilles Deleuze

 

            Nos últimos meses, as livrarias francesas têm acolhido o retorno de Gilles Deleuze. Aproveitando a impulsão fornecida pela celebração dos dez anos de sua morte, ocorrida em novembro de 1995, a França parece decidida a passar a limpo as múltiplas contribuições deste que se firmou como um dos maiores nomes da filosofia na segunda metade do século XX. Mais de uma dezena de livros sobre Deleuze foi lançada no prazo de alguns meses abordando o impacto de suas reflexões em campos como: a estética, a política, a historiografia filosófica e as práticas clínicas. Uma leva que engloba desde livros introdutórios, como Gilles Deleuze: heritage philosophique, de Alain Beaulieu (2005, PUF) e La philosophie de Gilles Deleuze, de Jean-Clef Martin (2005, Payot), até publicações que procuram lançar luz sobre dimensões muitas vezes negligenciadas da experiência intelectual deleuzeana, como Deleuze et la psychanalyse, de Monique David-Ménard (2005, PUF) e Matéralismes d´aujourd´hui – De Deleuze à Badiou, de Fabien Tarby (2005, L´harmattan).

            Todo este interesse tem sua razão de ser. No quadro da filosofia da segunda metade do século XX, Deleuze foi um dos poucos a conseguir aliar sua sólida produção como historiador da filosofia a uma elaboração filosófica original capaz de definir novos objetos e estilos de reflexão. Mas é fato que ele fez história da filosofia como “um estrangeiro em sua própria língua” procurando, na verdade, sintetizar problemas e identificar linhas de força negligenciadas pela crítica especializada. Tal condição estrangeira talvez tenha lhe dado forças para levar a reflexão filosófica ao terreno da confrontação com objetos “menores”, como o cinema, o masoquismo e a literatura de Lewis Caroll. O resultado foi uma escrita híbrida capaz de misturar objetos e estilos através de uma produção plástica de conceitos. Foi desta forma que Deleuze acabou por ser responsável por alguns dos temas principais com os quais a contemporaneidade procura pensar a si mesma. Basta lembrarmos do destino de conceitos deleuzeanos como: devir, virtual, nomadismo, rizoma, desterritorialização e simulacro.

 

Como um conceito nasce do confronto

 

            Mas se quisermos apreender como Deleuze muitas vezes produzia tais conceitos também através da confrontação com pensadores com os quais ele só podia se relacionar no interior de um movimento complexo de aproximação e distância, então a leitura de Deleuze et la psychanalyse, de Monique David-Ménard é fundamental. Psicanalista e filósofa, David-Ménard anda na contracorrente das leituras dominantes ao procurar mostrar como o autor de O anti-Édipo, panfleto determinante para a crítica pós-1968 da ideologia psicanalítica, sempre sustentou uma relação central (mas nem sempre claramente visível) com a psicanálise.

Mas no caso de David-Ménard, não se trata apenas de mostrar como alguns conceitos deleuzeanos centrais foram construídos a partir de uma leitura da psicanálise marcada pelo movimento duplo de aceitação de problemas e  reorientação de funções. Exemplos maiores aqui são a maneira deleuzeana de repensar as noções de diferença e de repetição através do recurso à compulsão freudiana de repetição, assim como a deriva que o fez moldar a noção de devir como resposta à idéia de pulsão. Na verdade, David-Ménard quer também fazer o movimento inverso, ou seja, confrontar fragmentos de casos clínicos com elaborações filosóficas, isto a fim de mostrar como, na individualidade do caso, encontramos em operação problemas maiores de toda experiência filosófica. Muitas vezes sofremos e procuramos um analista não apenas porque ficamos sem saber o que fazer com o impossível que se materializa no interior de uma relação amorosa ou com a ausência de um pai que fragilizou nossa capacidade de nomear acontecimentos que nos aterrorizam. Sofremos porque não conseguimos nos relacionar com o que, em nós, não se deixa inscrever nas categorias lineares de espaço e tempo. Sofremos porque somos prisioneiros de uma concepção de espaço e tempo que nos impede de nos relacionar com o que não se submete à lógica segura da representação. E é neste campo que Deleuze tem muito a dizer a todos aqueles que se engajam em práticas clínicas.

            Por fim, estas elaborações cruzadas permitem a David-Ménard inquirir a obra de Deleuze a partir de  uma perspectiva nova e rica em questões. è desta forma que ela aborda, por exemplo, a crítica de Deleuze à idéia que o desejo nasce da experiência da negatividade da falta e de que a sexualidade é o campo de procura de um prazer vinculado a experiência originárias de satisfação que se perderam. Crítica feita em nome de uma noção de desejo como o que nasce, ao contrário, da afirmação da potência da vida e do excesso.

 Tendo o problema da natureza do desejo em vista, a autora pode lembrar como certos casos clínicos nos demonstram muitas vezes, e aí contrariando Deleuze, que a cura é solidária da capacidade dos sujeitos em mudar o estatuto do que aparece como negatividade do desejo, da sexualidade e do corpo. Não se trata de procurar calar, através uma teoria do desejo como pura afirmação, o que em nós aparece como “paixões tristes”, como dizia Spinoza. Daí porque o livro termina através de um esforço minucioso em repensar, a partir de Kant, a própria noção de negativo. Prova maior de como o pensamento de Deleuze ainda é capaz de alimentar mesmo aqueles que dele procuram se distanciar.

 

Vladimir Safatle

 

 

 

 

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