A questão árabe

O problema árabe é mais um capítulo do mal-estar da nossa própria civilização

 

 

Em 1798, Kant publicava uma obra chamada Antropologia de um ponto de vista pragmático. Nela, é possível encontrar, entre outras coisas, uma digressão a respeito do “caráter dos povos”. Em meio a várias páginas plenas de generalidades a respeito dos principais povos da Europa, há três linhas sobre a Turquia: “quanto aos nacionais da Turquia da Europa, eles nunca estiveram e nunca estarão à altura exigida para adquirir um caráter nacional determinado”. Ponto final.

            Ao dizer isto, Kant não inovava. Fazia parte do mantra a respeito da especificidade do caráter europeu a afirmação de que a Turquia encarnava um limite intransponível à modernidade e aos processos de modernização. Sem saber, Kant já professava a teoria do “choque de civilizações”. Não ter um caráter nacional determinado significava não estar em condições de se constituir enquanto Estado moderno dotado de uma burocracia racional submetida a um poder esclarecido e liberal. Afinal, a religião muçulmana enraizaria os “nacionais da Turquia da Europa” em uma mentalidade atrasada, avessa a este esclarecimento que imperava na Europa Ocidental e que estava prestes a contagiar até mesmo camponeses bávaros e habitantes de pequenos vilarejos dinamarqueses. De nada adiantava lembrar da relativa eficácia estatal de um império multi-étnico que durou séculos, nem da sua relativa tolerância religiosa; algo que contrastava, por exemplo, com a França radiante de Luis XIV que revogara o Edito de Nantes. Na verdade, de nada adiantava lembrar o que quer que fosse porque a Turquia tinha sido simplesmente alçada à condição de Outro da Europa: muito perto para ser simplesmente ignorada, muito parecida em alguns aspectos, muito diferente em outros. Ou seja, algo que desestabilizava as próprias dicotomias constitutivas da “identidade européia”.

            Dois séculos se passaram e não parece que conseguimos nos livrar deste imaginário dos turcos e árabes como a exterioridade intransponível da modernidade. Não deixa de ser irônico ver, por exemplo, a Turquia, à ocasião da discussão sobre a possibilidade de sua integração na Comunidade Européia, ainda aparecer como o corpo estranho que a Europa não pode aceitar sem arriscar-se a se dissolver enquanto identidade. Mas esta é apenas a parte irônica do problema, pois a parte trágica é outra. Ela diz respeito à constituição de um espaço no qual a resistência à modernidade só pode aparecer como uma mistura de fundamentalismo religioso, terrorismo político e arcaísmo de costumes. Um espaço que os árabes são levados cada vez mais a ocupar.

 

A tolerância multicultural intolerante

 

            Se houvesse um manual intitulado “Como produzir um homem-bomba: ABC do terrorista fundamentalista” ele descreveria três processos que são condição suficiente para a síntese desta nova modalidade de mártir. Primeiro, deixe fermentar uma situação social explosiva, própria de quase todos os países árabes e marcada pela exploração econômica de riquezas naturais por grandes multinacionais sem transferência de tecnologia, favelização de amplas camadas da população e forte desigualdade social. Depois, impeça sistematicamente que toda tentativa de transformação social possa alcançar a esfera do político. Isto pode ser feito através da subvenção de regimes ditatoriais e corruptos apoiados pelos arautos da modernidade ocidental; algo que encontramos facilmente na Jordânia, na Arábia Saudita, no Egito, no Paquistão, entre outros. Caso isto não funcione, uma outra alternativa é a inviabilização de todo e qualquer governo minimamente comprometido com mudanças sócio-econômicas. Lembremos, por exemplo, da sorte do governo nacionalista de Mossadegh, no Irã.

Bloqueado o espaço do político enquanto terreno de transformações socio-econômicas, o campo da violência direta crescerá naturalmente. Podemos até mesmo fornecer uma fórmula: aquilo que não encontra lugar no político, volta sob a forma de violência direta contra uma modernização que, para os árabes, só significou apoio a ditaduras e exploração econômica. Se tivermos um terceiro processo vinculado a um esforço sistemático de transformação de tais demandas de transformação que não podem ser realizadas na ordem econômica atual em “choque de civilizações” entre modernizadores e supersticiosos ignaros, então o problema está todo armado e mais um homem-bomba estará à solta.

            De fato, a opinião pública ocidental tem se esmerado neste último ponto, já que seu know-how vem de longe. Vejamos, por exemplo, o recente caso das charges de Maomé veiculadas em jornais europeus. Muitos tentaram criar um paralelo entre tal ímpeto dessacralizador e a velha batalha entre a superstição e as Luzes. Até mesmo o nome de Voltaire foi usado para dizer que, nesta ironia em relação a Maomé, estava em jogo os valores supremos da liberdade de expressão, pedra de toque de nosso projeto iluminista. No entanto, é bem possível que  Voltaire, se estivesse vivo, lembraria como sempre é mais fácil falar de liberdade de expressão ironizando valores dos outros. É sintomático que o mesmo jornal direitista que iniciou todo o processo tenha recusado publicar uma charge ridicularizando Jesus Cristo sob a alegação de que tal representação feria a sensibilidade de seus leitores. Como vemos, nada melhor do que pregar o evangelho da tolerância fora de casa.

            Mas o mais revelador neste problema é que ele não tem nada, mas absolutamente nada a ver com liberdade de expressão. Pois a liberdade de expressão está relacionada à possibilidade de colocar em discussão todo e qualquer conteúdo de opinião, mas não de usar, para isto, toda e qualquer forma de expressão. Por exemplo, tente comprar uma bandeira dinamarquesa, ir para frente do Palácio Real em Copenhagen e queimá-la no momento da troca da guarda. Provavelmente, o responsável pelo ato será preso em regime de pão e água. Isto, no entanto, não impede que alguém vá aos jornais e escreva um artigo dizendo que há algo de podre no Reino da Dinamarca e que os valores representados em sua bandeira nada significam, que a bandeira, por isto, não passa de um pano velho. Ou seja, posso expressar qualquer conteúdo de opinião, mas não através de qualquer forma. Posso criticar todo e qualquer dogma religioso, mas não se segue daí que isto deva ser feito ridicularizando sistematicamente tais dogmas na esfera pública. Por sinal, nunca fazemos isto quando é questão de dogmas católicos, protestantes e judaicos. Ou alguém acha que a crítica ao dogma da transubstanciação deve ser feita entrando na igreja e cuspindo na hóstia? Agora, a pergunta que não quer calar é: por que este mesmo princípio não é utilizado quando é questão da nossa relação com as crenças dos árabes?

            Uma resposta possível aparece se lembrarmos que, contrariamente ao que acontecia na época de Kant, os turcos e árabes não estão mais nas fronteiras da Europa, eles são a representação de seu limite interno. Eles estão lá, vivendo na periferia, nos bairros pobres e nos novos guetos das cidades européias, prontos para desencadear revoltas que lembram do caráter parcial do processo de integração econômica e o caráter absolutamente inexistente do processo de integração política. Ou seja, se o conflito não for visto e enquadrado como conflito cultural, ele será – e este talvez seja o verdadeiro temor – vivenciado como o mais puro conflito de classe.

É claro que poderíamos dizer que isto é delírio esquerdista, que o conflito é essencialmente cultural, já que é impossível integrar, em nossas sociedades tolerantes, pessoas com valores intolerantes. Afinal, podemos todos fazer como a extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto dias antes da eleição que o levaria ao poder neste que é o país mais tolerante do mundo. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte das características pessoais e opiniões eram  politicamente corretas : era homossexual assumido, tinha boas relações com imigrantes, um senso inato para a ironia etc. No entanto, o núcleo do seu discurso era: “Os Países Baixos alcançaram um alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo isto deixando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância, devemos então ser intolerantes contra os intolerantes”. Este tipo de discurso, infelizmente, tem se tornado cada vez mais uma moeda comum na nova retórica da tolerância multicultural intolerante. No entanto, quando nossos valores começam a justificar disposições que normalmente lhes eram contrárias, é porque está na hora de perguntar se não haveria algo de errado com nossos valores. Afinal, nossa tolerância funciona muito bem quando o que está em jogo são escolhas feitas em um sistema previamente estruturado de possibilidades. Mas o que acontece quando alguém coloca em questão o próprio sistema através do qual organizamos as possibilidades de escolha? Não seria isto que os árabes e turcos jogados novamente em direção a crenças gastas estariam a nos dizer? Que nossa sociedade esvaziou o espaço do político de maneira tal que toda contestação radical das diretrizes de nossos processos de modernização são automaticamente enquadradas no não-lugar do fundamentalismo étnico-religioso? Se assim for, não será a primeira vez na história que a verdade sai da boca dos que só conseguem aparecer como “irracionais”.

 

Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e autor de A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006)

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