O esgotamento da forma crítica como valor estético

 

 

Nothing is given by this method;

but much is taken away

Schoenberg

 

The postman will never

whistle Schoenberg

Steve Reich

 

 

“Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento. Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vem ao caso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas neste meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante no corpo da sociedade humana”[1]. Podemos partir desta frase de Walter Benjamin a fim de tentar dar conta de certos processos hegemônicos em marcha na constituição da forma estética atualmente. Eles dizem respeito àquilo que críticos de artes visuais, como Hal Foster[2], chamam de “esgotamento da forma crítica como valor estético”. Esgotamento que estaria exposto de maneira mais clara através das transformações da relação crítica entre arte e domínios hiper-fetichizados da cultura (publicidade, moda, musica tonal, quadrinhos, pornografia etc.) em relações de “cumplicidade desafiadora”, como diria o simulacionista Ashley Bickerton. Relações nas quais a crítica como “distância correta” a respeito da fascinação fetichista parece entrar definitivamente em colapso em prol da elevação da mera repetição de conteúdos hiper-fetichizados a esquema geral da produção artística. Tal colapso tem como resultado maior o advento de uma certa estetização da razão cínica. Neste sentido, vale a pena retornarmos à análise do esquema hegemônico de determinação da forma crítica que foi uma das marcas maiores do modernismo, isto a fim de melhor avaliarmos as causas de seus impasses, assim como a natureza das figuras que lhe sucederam.

 

Forma crítica e desvelamento dos mecanismos estruturais de produção 

 

Conhecemos, por exemplo, um dos impulsos hegemônicos de crítica à aparência estética no modernismo. Ele está sintetizado em uma noção de crítica como dispositivo de distanciamento em relação a conteúdos miméticos. Pois se trata de definir a obra de arte moderna como aquela capaz de se estruturar através da estetização da distância que devemos tomar em relação às organizações, processos, representações e valores que aparecem de maneira naturalizada na realidade social. Desta forma, ela deve impor a autonomia dos seus processos construtivos negando, com isto, qualquer semelhança fundamental com organizações funcionais vistas como naturais no interior de realidades sociais historicamente determinadas. A crítica a mímesis aparece assim como peça maior da definição da racionalidade das obras. Por outro lado, esta negação da afinidade mimética é figura da crítica por insistir que os modos de organização funcional naturalizados são locais onde a ideologia afirma-se em toda sua violência, isto se compreendermos a ideologia fundamentalmente enquanto reificação de modos de disposição dos entes. Lembremos como a ideologia era vista, tradicionalmente, como uma questão de naturalizar modos de apresentação dos entes. Trata-se assim de pensar a racionalidade estética como setor privilegiado da crítica social da ideologia.

Este tema clássico é o que levou, por exemplo, Clement Greenberg a compreender o impulso crítico da obra de arte moderna a partir da abstração da pura forma que se afirma contra tendências figurativas. Sabemos, por exemplo, do que animava afirmações como: “O fato é que, até agora, o modernismo na arte, se não na literatura, se sustentou ou fracassou por seu ´formalismo´”[3]. Por trás desta noção de “formalismo” estava a crença de que a arte deve saber afirmar o primado da autonomia de seus processos construtivos a despeito de toda e qualquer afinidade mimética com o que a realidade social oferece como aparência.

Tal afirmação do primado da autonomia da forma poderia ganhar a figura de obras capazes de tematizar seus próprios modos de produção, seus próprios processos construtivos. Lembremos novamente de Greenberg, quando este afirma: “o não-figurativo ou o ´abstrato´, se deve ter validade estética, não pode ser arbitrário e acidental, mas deve derivar da obediência a alguma injunção ou princípio de valor. Essa injunção, uma vez que se renunciou ao mundo da experiência comum, extrovertida, só pode ser encontrada nos próprios processos ou disciplinas pelos quais a arte e a literatura já haviam imitado a natureza. Estes meios tornam-se, eles próprios, o tema da arte e da literatura”[4]. Desta maneira, a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “distância correta”, seus próprios processos construtivos, forma que já traz em si a negação da naturalização da sua aparência como totalidade funcional. Esta idéia é central: as obras fiéis à forma crítica seriam capazes de se organizar a partir de protocolos de desvelamento do seu processo de produção. As obras que se organizam a partir deste impulso crítico têm, como dizia Hegel, os intestinos fora do corpo.

Notemos, no entanto, que a racionalidade desta noção de forma depende de um conceito de crítica como passagem da aparência à essência, como movimento de desvelamento. Trata-se de expor, através de uma passagem à essência, os modos de produção que determinam a configuração da aparência. Na verdade, tudo funciona como se a estruturação da forma crítica seguisse os moldes “clássicos” de uma certa crítica marxista do fetichismo e uma arqueologia psicanalítica do sentido latente[5].

Sabemos que um dos processos fundamentais presentes no fetichismo da mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito apreender a estrutura social de determinação do valor dos objetos devido a um regime de fascinação pela “objetividade fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit) daquilo que aparece. Fascinação vinculada à naturalização de significações socialmente determinadas.  Uma certa crítica do fetichismo se organizaria a partir daí através da temática da alienação da consciência no domínio da falsa objetividade da aparência e das relações reificadas. Alienação que indicaria a incapacidade de compreensão da totalidade das relações estruturalmente determinantes do sentido

Por outro lado, a tomada de consciência resultante do trabalho da crítica pressuporia a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido. A crítica viraria assim: “descrição das estruturas que, em última instância, definem o campo de toda significação possível”[6]. O que vale para a crítica social vale também para a arte. Pois, da mesma maneira, haveria uma totalidade de relações que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura através das obras de arte. As obras apareceriam como locus de manifestação de uma verdade que é clarificação progressiva da material devido à possibilidade de posição integral de processos construtivos e de relações de sentido. Processos muitas vezes recalcados, marcados pelo véu do esquecimento, mas que poderiam vir à luz através de mecanismos de interpretação e rememoração inscritos no próprio cerne da obra. Lembremos ainda que o impulso em direção ao que está fora da cena da aparência pode também se transformar em exposição do que é ob-sceno, do que estaria abaixo da cena enquanto arcaico ou informe. Por mais que isto possa parecer estranho, os programas de retorno ao arcaico e de desvelamento estrutural mostram-se unificados em certas estratégias comuns de crítica.

Michael Fried é um caso exemplar de como tal regime de reflexão sobre a forma estética pode funcionar. Para Fried, o valor estético na modernidade é fundamentalmente vinculado à possibilidade da obra servir de palco para a posição do processo de clarificação progressiva dos mecanismos de produção do sentido. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmação de que  “o teatro é a negação da arte”[7].  O teatro aqui não é o teatro brechtiano que transforma a cena em locus de manifestação de operações de distanciamento capazes de desvelar os modos de produção da aparência. Teatro é, para Fried, o nome de uma imanência com a literalidade que impede o sujeito de transcender a coisidade (objecthood) em direção a uma Outra cena na qual os processos construtivos poderiam ser revelados. Daí porque Fried pode afirmar que: “a pintura modernista chegou a perceber como imperativo a suspensão de sua própria coisidade”[8].

 

Racionalização serial

 

            Não deixa de ser sintomático encontrar, na música, o espaço originário para o desenvolvimento das potencialidades desta forma crítica hegemônica no modernismo. Colocação menos insuspeita por vir de um crítico das artes visuais, no caso, o próprio Clement Greenberg: “Em razão de sua natureza ‘absoluta’, da distância que a separa da imitação, de sua absorção quase completa na própria qualidade física de seu meio, bem como em razão de seus recursos de sugestão, a música passou a substituir a poesia como a arte-modelo (...) Norteando-se, quer conscientemente quer inconscientemente, por uma noção de pureza derivada do exemplo da música, as artes de vanguarda nos últimos cinqüenta anos alcançaram uma pureza e uma delimitação radical de seus campos de atividade sem exemplo anterior na história da cultura”[9]. A afirmação não poderia ser mais clara: a música teria imposto, às outras artes, uma noção de modernidade e de racionalização do material vinculada à autonomização da forma e de suas expectativas construtivas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimética com processos e elementos extra-musicais[10].

            O que Greenberg tem em mente é um longo e heteróclito movimento de constituição da racionalidade da forma musical, movimento fundamental para a definição das expectativas críticas da forma musical a partir, principalmente, de Arnold Schoenberg e que herda motivos próprios ao debate em torno da “música absoluta” no romantismo alemão. É a isto que Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da música em sua “pureza”. 

A grosso modo, podemos chamar de ‘música absoluta’ uma certa noção que via na música instrumental, desligada de textos, de programas, de funções rituais e “pedagógicas” específicas, o veículo privilegiado para a expressão ou o pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade e o estágio de realização natural da racionalidade musical. É a proximidade com tal temática que permitirá a Schopenhauer, cuja filosofia da música influenciou bastante Schoenberg, afirmar:  “Não podemos encontrar na música a cópia, a reprodução da idéia do ser tal como se manifesta no mundo”, ela é “cópia de um modelo que não pode, ele mesmo, ser representado diretamente”, pois “a música, que vai para além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal”[11].

Este impulso de autonomização da forma musical será fundamental para que teóricos posteriores, como Eduard Hanslick insistissem em levar tal processo ao extremo. Ao afirmar que a música nada mais era do que “formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena consciência de estar adentrando em um estágio histórico de racionalização do material musical que permitia a consolidação da esfera musical em sua legalidade própria. Legalidade própria que o leva a afirmar: “se se perguntar o que se há de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim : idéias musicais. Mas uma idéia musical trazida inteiramente à manifestação é já um belo autônomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representação de sentimento e pensamentos”[12].

            O impulso de Schoenberg na constituição de uma forma crítica perde muito de seu solo natural se não tivermos tais balizas em vista[13]. Quando Schoenberg afirma: “Faz-se música a partir de conceitos”,  isto a fim de lembrar que o objetivo maior da forma é compreensibilidade de “idéias musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melodia e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua noção de autonomia da forma que serve aqui de guia[14]. Esta exigência de visibilidade da idéia ordenadora das disposições formais do material leva Schoenberg a pensar a verdade na música como uma questão de possibilidade de posição dos procedimentos de construção responsáveis pela determinação de relações racionais entre elementos musicais. Há assim uma exigência fundamental de transparência das obras. Visibilidade que leva  o compositor à procura pela  “clarificação progressiva do material natural da musica”[15] através, por exemplo, de um conhecido combate contra tudo o que é ornamento. Combate este que é figura da recusa em estabelecer distinções hierárquicas entre notas ornamentais “não-harmônicas” e notas essenciais, já que a forma musical só deve dar lugar aquilo que contribui para a visibilidade integral da idéia musical. A este respeito, muito já se disse sobre o sentido das similitudes estratégicas entre as “construções racionais” de Schoenberg e de arquitetos como Adolf Loos.

            Mas esta noção schoenbergiana de idéia musical advém incompreensível se partirmos de uma perspectiva meramente “formalista”, isto no sentido mais restritivo do termo. Esta é uma questão importante, já que o projeto musical de Schoenberg nos lembra como “formalismo” não é a marca de alguma forma de abandono de expectativas expressivas. Tal como já em Hanslick, a idéia musical é o que permite a realização construtiva de exigências expressivas, ou seja, ela é o que deve unificar construção racional e expressão subjetiva. É a fidelidade a exigências expressivas que leva Schoenberg a afirmar, de maneira surpreendente: “a arte é, em seu estágio mais elementar, uma simples imitação da natureza. Mas logo se torna imitação em um sentido mais amplo do conceito, isto é, não mera imitação da natureza exterior, mas também da interior”[16].

O recurso ao vocabulário da imitação poderia parecer nos recolocar nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituição da aparência estética. No entanto, ao contrário, a expressão desta “natureza interior” só poderá ser posta através da crítica à aparência funcional das obras. A natureza desta crítica à aparência como motor da racionalidade de obras que aspiram à modernidade foi claramente identificada por Adorno ao afirmar que: “em Schoenberg, o aspecto verdadeiramente novo é a mudança de função da expressão musical”[17]. Esta frase é mais decisiva do que parece, já que normalmente, aceitamos que o aspecto realmente novo da experiência musical de Schoenberg estaria presente na sua maneira de criar totalidades funcionais sem recorrer ao sistema tonal.

            A mudança de função a que alude Adorno consiste em romper com o fato de que: “Desde Monteverdi e até Verdi, a música dramática, como verdadeira musica ficta, apresentava a expressão como expressão estilizada, mediada, ou seja, como aparência de paixões”[18]. Segundo esta leitura, a expressão esteve paulatinamente subordinada a uma gramática das paixões e dos afetos, gramática que faria com que a particularidade dos momentos expressivos fosse sempre fetichizada e submetida à generalidade conciliadora que constitui o primeiro princípio da aparência estética.  O esgotamento do sistema tonal é, também, esgotamento de uma gramática de expressões que se naturaliza no uso reiterado de cadências e elementos que desempenham sempre a função de um “sistema de representações”. A “emancipação da dissonância” em relação ao esquema antecipação-resolução, emancipação a respeito da qual fala constantemente Schoenberg não seria outra coisa que a possibilidade de construir idéias musicais capazes de desvelar uma expressão recalcada pela gramática do sistema tonal. Recalque produzido por uma aparência que submete a expressão singular aos ditames de uma linguagem sedimentada.

            Neste sentido, não deixa de ser ilustrativo que Schoenberg interesse-se por Freud e por sua noção de interpretação das formações do inconsciente como revelação do que se aloja em uma outra cena[19]. Ao interpretar obras estéticas, Freud parte do princípio de que a verdade da obra não coincide com sua letra, já que a aparência estética oblitera uma dinâmica pulsional que só pode aparecer a partir de operações arqueológicas de procura pelo sentido. “Eu percebi constantemente”, dirá Freud, “que o conteúdo (Inhalt) de uma obra de arte me apreende mais que suas qualidades formais e técnicas”[20].  Este comentário inocente é, na verdade, a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o pensamento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo Freud, é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus desejos inconscientes e suas moções pulsionais) através do ato de: “descobrir (herausfinden) o sentido e o conteúdo do que é representado (Dargestellten) na obra de arte “[21]. Desta maneira, o entrelaçamento entre estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de visibilidade integral das obras.  Por outro lado, com sua teoria das pulsões, Freud permitiu a reconfiguração de uma categoria estética fundamental como a expressão.

Para Schoenberg, tal exigência de visibilidade afirma-se como resgate do que não se apresenta através da linguagem reificada de um tonalismo que aparece como bloqueio às aspirações da “paixão pela verdade por trás das mediações e das máscaras burguesas da violência”[22]. Tal aspiração à plena visibilidade chega a fazer com que Schoenberg afirme, a respeito de Pierrot lunaire: “A expressão sonora dos movimentos dos sentidos e da alma são de uma imediatez quase animal. Como se tudo fosse diretamente transposto (Fast als ob alles direkt übertragen wäre)”.

            Procurar uma forma capaz de ser a transposição direta da idéia musical na dimensão do que aparece, idéia que procura realizar exigências expressivas que não se reconhecem na gramática dos sentimentos reificada pelo tonalismo, é o que leva Schoenberg ao dodecafonismo. Aqui, vemos como ele realiza enfim um impulso partilhado pelo modernismo de “crítica da reificação e do fetichismo através da reconstrução de um pensamento estrutural”.

Adorno sempre insistiu no fato de convergir, no uso schoenbergiano da noção de série, a tentativa de conservar exigências de expressão do que não se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princípio construtivo e transparente de relação. A este respeito, Schoenberg não cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “ainda posso assegurar coerência e unidade, ainda que existam vários elementos construtivos da forma importantes, assim como auxílios à compreensibilidade, que não uso”[23]. Orgulho de quem podia, ao mesmo tempo, oferecer um protocolo de crítica à aparência reificada e assegurar um princípio autônomo de racionalização e legibilidade das obras.

De fato, ao racionalizar todas as incidências do material musical através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja automaticamente reportado a este padrão transcendental de justificação que é a série, a música poderia se liberar da aparência costurada pela naturalização do sistema tonal. Ao mesmo tempo, graças à onipresença da série, seu tema é seu próprio processo de construção. Ela é o que realiza exigências de “obediência irrestrita a alguma injunção ou princípio de valor” das quais falava Greenberg. Desta forma, Schoenberg mostrava como a forma crítica deveria ser forma que expõe, em uma “correta distância”, seu próprio processo de construção (a série), forma que já traz em si a negação da naturalização da sua aparência como totalidade funcional. Lembremos, por exemplo, deste momento em que afirma: “Minha música não parte da visão de um todo mas é construída de cima para baixo de acordo com um plano e esquema pré-concebido mas sem uma verdadeira idéia visualizada do todo”[24]. Trata-se de insistir que sua música não naturaliza totalidades funcionais (como no caso da música tonal), mas expõe claramente seu processo de construção através da posição do plano e do esquema. Tal afirmação é feita na expectativa de levar o sujeito à necessidade de ouvir a estrutura e o plano construtivo. Este é o sentido fundamental da “audição estrutural” exigida por Schoenberg. Pois, para o Schoenberg do período dodecafônico, a verdade era uma questão de construção formal coerente, e não de adequação a regras naturalizadas de disposição do sonoro. Neste sentido, podemos seguir a afirmação feliz de Antonia Soulez: “Segundo Schoenberg, que toma do lógico este ideal sintático do verdadeiro, a música pensa na mesma medida em que, por e através dela, articulam-se leis do verdadeiro segundo uma certa gramática”[25].

 

A racionalização e seu extremo

 

Sabemos como algo desta noção de forma crítica capaz de desvelar a aparência estética servirá de guia para boa parte da vanguarda musical da última metade do século XX. É pensando no advento de tal forma que Pierre Boulez, por exemplo, falará de uma “necessidade incontornável da linguagem musical” que deve obedecer a “leis absolutas da história”. Boulez quer com isto levar ao extremo a “desnaturalização” da racionalidade musical do tonalismo. “A era de Rameau e seus princípios naturais está definitivamente abolida”, diz Boulez a fim de insistir que nenhum resquício da linguagem musical deve ficar imune a uma crítica da reificação: “A este que irão me objetar que, partindo do fenômeno concreto, obedecem à natureza, às leis da natureza, eu responderei, sempre segundo Rougier : ‘damos o nome de leis da natureza à fórmulas que simbolizam a rotina da experiência”[26].

            Tal crítica à reificação da linguagem musical não irá poupar sequer Schoenberg. Ao contrário, o dodecafonismo de Schoenberg aparece para Boulez como um fracasso histórico, como um “romantismo-classicismo deformado”. Para Boulez, se a música serial de Schoenberg estava destinada ao fracasso, era porque: : “a exploração do domínio serial foi feito de maneira unilateral; falta o plano rítmico, e mesmo o plano sonoro propriamente dito, as intensidades e os ataques”. Ou seja, “a série intervém, em Schoenberg, como um mínimo denominador comum para assegurar a unidade semântica da obra; mas que os elementos da linguagem assim obtidos são organizados por uma retórica pré-existente”[27].

O que Boulez afirma é : o dodecafonismo não realizou seu próprio programa crítico de nos liberar de toda aderência natural aos materiais através da posição de um conteúdo de verdade construtivo. Isto, só um serialismo integral, procedimento que submeta todos os parâmetros sonoros (intensidade, duração, altura e timbre) a um pensamento serial, poderá realizar. Assim, Boulez afirmará: “As funções harmônicas, por exemplo, não saberiam colocar-se agora como funções permanentes; os fenômenos de tensão-distensão não se coloca em absoluto nos mesmo termos que outrora e sobretudo, não mais de maneira fixa e peremptória”[28]. O que está em jogo, pois, é o aprofundamento de um mesmo programa de  constituição de uma forma crítica através da autonomização absoluta de seus processos construtivos.

Boulez leva assim o ideal construtivo do pensamento serial dodecafônico ao extremo. Este ideal enquanto verdade da forma musical não teme em seguir uma tendência várias vezes presentes no modernismo : a reconstrução da racionalidade da forma musical a partir de parâmetros fornecidos pela racionalização científica. “Quando se estuda o pensamento dos matemáticos ou dos físicos de nossa época sobre as estruturas (do pensamento lógico, das matemáticas, da teoria física...), percebe-se, claramente, o imenso caminho que os músicos ainda devem percorrer antes de chegar à coesão de uma síntese geral”[29]. A afirmação não podia ser mais clara : o ideal da razão musical deve ser procurada no pensamento estrutural que anima as matemáticas e a ciência. Fato que não escapou a Adorno : “podemos dizer que os serialistas não inventaram arbitrariamente a matematização da música, mas confirmaram um desenvolvimento que Max Weber, na sua sociologia da música, identificou como a tendência dominante da mais recente história musical – a progressiva racionalização da música. Ela alcança sua realização na construção integral”[30]. 

Mas sigamos ainda o jovem Boulez. O termo “estrutura” não é aqui aleatório. De fato, há um certo estruturalismo musical em Boulez que é claramente assumido pelo próprio. O material musical vale integralmente devido às relações que ele estabelece. Boulez, citando Rougier, define seu programa : “O método axiomático permite construir teorias puramente formais que são redes de relações, deduções totalmente prontas. Desde então, uma mesma forma pode ser aplicada a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, à única condição que estes objetos respeitem entre eles as mesmas relações que aquelas enunciadas entre os símbolos não definidos da teoria’. Parece-me que tal enunciado é fundamental para o pensamento musical atual; notemos principalmente a última parte”[31]. Isto apenas mostra claramente como, para Boulez, e agora seguindo textualmente Lévi-Strauss, não haveria oposição alguma entre forma e conteúdo (entendido aqui como o material musical), entre estrutura e aparência pois a forma já organiza previamente as possibilidades de significação da matéria a ser formada, isto mesmo quando ela admite o acaso[32].

 

Ideologia transparente e retorno à mímesis

 

            No entanto, sabemos como, principalmente a partir dos anos 60, a arte abandona progressivamente este programa de subtração da fascinação fetichista pela aparência através da posição de uma forma capaz de tematizar, de maneira integral, seus próprios processos construtivos. Ao contrário, as obras foram pensadas cada vez mais como espaços de repetição mimética da realidade social fetichizada. Tendência que pode ser encontrada através de um longo movimento de retorno ao tonalismo, ela nos forneceu, em seus melhores momentos, o padrão de uma crítica da crítica. Adorno, por exemplo, percebeu claramente que recorrer novamente à mímesis com a realidade social mutilada, realidade cuja representação musical mais bem acabada seria o tonalismo, era o único modo de impedir que o formalismo serial de um programa estético de tematização auto-reflexiva dos processos construtivos das obras não se transformasse em  hipóstase de totalidades funcionais que não são mais capazes de levar em conta a resistência dos materiais às operações de sentido. Uma das funções maiores de seu Filosofia da nova música consistia exatamente em fornecer os protocolos de inversão da racionalidade dodecafônica em modo puro e simples de dominação do material, isto a fim de compreender tal inversão no interior da crítica à racionalidade instrumental com seus múltiplos processos de dominação da natureza.

Por esta razão, Adorno está disposto até mesmo a insistir que a arte não deveria mais procurar o absoluto de sua subtração integral ao fetiche através da autonomização integral da sua esfera e da consolidação de um sistema estrutural fechado de produção de significações. Na verdade, ela deveria repetir mimeticamente a realidade fetichizada, já que “A arte é obrigada [a confrontar-se com o fetiche] devido à realidade social. Ao mesmo tempo em que ela se opõe à sociedade, ela não é no entanto capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade"[33].

            No entanto, esta exigência de retorno à realidade social fetichizada foi muitas vezes compreendida no interior de um quadro de deposição da forma crítica. Se voltarmos nossos olhos às artes visuais, veremos críticos como Pierre Restany  (que escreve na mesma época em que Adorno pensava uma Teoria estética baseada no resgate à mímesis) chegar a afirmar que: “ a arte abstrata recusava por definição todo apelo da realidade exterior: arte de evasão e de recusa do mundo, correspondeu à manifestação extrema de uma visão pessimista da condição humana”[34], mas as vanguardas pós-60 seriam realistas por terem superado esse “mito negativo”. Daí esta definição peculiar de realismo: “O realismo não discute nem o contexto nem o cenário de sua vida: identifica-se com o real [que, em uma situação social de integração de todas as esferas de valores à dinâmica do fetichismo da mercadoria, só pode significar: real da forma-mercadoria, ou seja, posição da forma-mercadoria como dispositivo fundamental de constituição da nossa experiência da realidade – o que a pop art compreendeu de maneira absolutamente clara], nele se insere, se integra”[35]. Ao tematizar esta adesão da arte à realidade social, Restany chega mesmo a prever uma mudança radical da função social da arte que só será sentida de maneira decisiva a partir dos anos 80: a transformação do potencial disruptivo da arte de vanguarda em glamour disponibilizado aos setores de consumo conspícuo, como a moda e o design: “No mundo automatizado de amanhã, o problema capital será a utilização do tempo livre. O artista aparecerá então, não mais como um paria ou um revoltado, mas como o engenheiro e o poeta de nossos lazeres. Seu papel na sociedade será central e determinante, ele se verá promovido aos mais altos níveis da hierarquia tecnocrata”[36].   

            Podemos tentar entender tal esgotamento da forma crítica levando em conta problemas internos à racionalidade da forma estética no século XX[37]. Mas devemos também estar atento para uma dimensão “exterior” do problema e que é normalmente negligenciada.

            Grosso modo, é possível afirmar que a concepção de forma crítica que vigorou de maneira hegemônica no modernismo tem força em situações históricas nas quais a ideologia pode ser pensada como recalcamento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da aparência à essência. A obra de arte se estrutura a partir da dinâmica disponível à crítica social com suas temáticas da alienação da consciência no domínio da reificação da aparência. A idéia benjaminiana de crítica como “correta distância” só pode ser operativa diante de mecanismos ideológicos desta natureza. No entanto, ela será marcada com o selo da obsolescência ao se deparar com uma realidade social na qual a ideologia não opera mais através do recalcamento e da reificação.

Neste sentido, devemos insistir neste diagnóstico de Adorno, já comentado em capítulos anteriores: “A ideologia em sentido estrito se dá lá onde o que rege são relações de poder (Machtvehältnisse) não transparentes em si mesmas, mediadas e, neste sentido, inclusive atenuadas. Mas a sociedade atual, erroneamente acusada de excessiva complexidade, transformou-se em algo demasiadamente transparente (durchsichtig)”[38]. Como vimos, esta afirmação é capital por indicar uma situação social na qual a ideologia transparece e afirma-se enquanto tal na própria efetividade, sem que isto modifique o engajamento dos sujeitos em seu campo. Ela pode vir a nu, mas sob o regime de uma nudez que não desmascara mais.

            Lembremos ainda desta afirmação de Lyotard a respeito do “cinismo” do capitalismo contemporâneo, colocação ainda mais interessante por procurar fornecer o solo sócio-histórico para a crítica lyotardiana à filosofia adorniana da música: “Ele [o capitalismo contemporâneo] coloca tudo em representação, a representação se reduplica (como em Brecht), logo, se apresenta. O trágico dá lugar ao paródico (...)”[39]. Ou seja, ao invés da tragédia de um sistema que não pode assumir aquilo que ele realmente é ao fundar-se no recalcamento ideológico de seus pressupostos, teríamos o cinismo de práticas de poder capazes de reduplicar seu próprio sistema de representações, tomando a todo momento uma distância brechtiana em relação àquilo que elas próprias enunciam, tal como em uma eterna paródia. A força do capitalismo viria do fato dele não se levar mais a sério, ou ainda, da ideologia ser, atualmente, auto-irônica. Desta forma, a crítica como “correta distância” seria impossível porque a ideologia já opera, a todo momento, uma distância reflexiva em relação àquilo que ela própria enuncia. Ou seja, poderíamos todos tomar distância dos conteúdos normativos do universo ideológico capitalista porque o próprio discurso do poder já critica a si mesmo, ele já ri de si mesmo. A forma crítica esgotou-se porque a realidade internalizou as estratégias da crítica. Ela esgotou-se porque nos deparamos atualmente com aquilo que Peter Sloterdijk um dia chamou de ideologia reflexiva, posição ideológica que porta em si mesma a  negação dos conteúdos que ela apresenta. Maneira astuta de perpetuá-los mesmo em situações históricas nas quais eles não podem mais esperar enraizamento substancial algum.

 

De Stravinsky ao novo tonalismo: uma arqueologia da forma cínica

 

            Este é o quadro social de análise do que poderíamos chamar de “novo tonalismo”, ou seja, desta tendência cada vez mais hegemônica na contemporaneidade em retornar à noções como centro tonal e pulsação regular. Tendência maior no contexto musical anglo-saxão (Steve Reich, John Adams, Terry Riley, Phillip Glass, Thomas Adès, Howard Skeptom, entre outros) e eslavo (Arvo Pärt, Schnittke, Penderecki).

            Primeiro, devemos salientar que o retorno ao uso de materiais tonais na composição musical traz problemas simétrico àqueles postos pelo retorno à mímesis nas artes visuais da segunda metade do século XX. Nos dois casos, materiais e procedimentos alvos de críticas estéticas virulentas retornam mas, normalmente, sem a força para preencherem as funções outrora desempenhadas e sem a capacidade de operarem no interior de uma lógica da naturalização. Depois da emancipação da dissonância não há como se servir do sistema tonal enquanto princípio organizador de totalidades funcionais e de progressão harmônica  fundamentado de maneira segura. O que nos deixa com a questão de saber o que pode significar retornar a um material que traz as marcas da sua impotência e de seu esgotamento sócio-histórico, material em crise de legitimidade. Posição de esgotamento e crise nem sempre partilhada. Basta lembrarmos aqui do que afirma Steve Reich: “Para mim, princípios naturais de ressonância e da percepção musical humana não são limitações; são fatos da vida”[40], isto a fim de insistir que a realidade de um centro modal é realidade tanto em músicas ocidentais como não-ocidentais. No entanto, mesmo no caso de Reich não há exatamente um uso do tonalismo enquanto sistema funcional  de progressão mas como princípio de encadeamento de repetições e de gravitação unificadora dos momentos.

            Mas da mesma forma que a música forneceu às artes do século XX um padrão de racionalidade da forma crítica através dos protocolos de autonomização reflexiva da forma, ela talvez tenha sido a primeira arte a fornecer uma figura de esgotamento de tal racionalidade através de um tratamento paródico do que se coloca como aparência estética. Forma-paródica que ganha paulatinamente centralidade à medida em que a ideologia vai se revelando como ideologia da ironização. Esta forma, ao invés de organizar-se como uma crítica da aparência através da visibilidade integral da estrutura, ela organiza-se como a submissão integral do material a um “princípio de estilização”. O material aparece normalmente como o representante de um estilo codificado, elemento congelado como uma imagem-clichê. A obra advém “jogo” com materiais fetichizados. Caminho que poderia nos levar, simplesmente, à composição de obras “regressivas”, isto se tais materiais fetichizados não fossem tratados como aparências postas como aparência. Desta maneira, a forma-paródica realiza cinicamente o programa que a forma crítica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua própria negação, já ser , em si mesma, a performance de uma distância correta em relação a sistemas naturalizados de representações (como é o caso do sistema tonal).

            Novamente, é Adorno quem compreendeu esta estranha complementaridade entre crítica e paródia ou, ainda, entre crítica e cinismo. Neste quadro, sua confrontação entre Schoenberg e Stravinsky tende a ganhar outro contorno.  Esta discussão me parece atual já que Stravinsky, de uma maneira sintomática, pode nos oferecer o quadro de compreensão para a racionalidade dos dispositivos formais que estruturam vários programas-chaves no interior do novo tonalismo. Há, por exemplo, uma linha reta que vai de Stravinsky até John Adams e Thomas Adés.  

Da multitude de questões que Adorno endereça à obra de Stravinsky, guardemos principalmente sua maneira de vê-la como um jogo infinito de máscaras.  Jogo que fica mais visível através da passagem de Stravinsky em direção ao neo-clacissismo.

Normalmente, a crítica indica o neo-classicismo do ballet Pulcinnella, de 1920, como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais de Stravinsky, mas Adorno insiste que A história do soldado, de 1918, já é composta a partir de procedimentos que determinarão a forma musical, em Stravinsky, de maneira cada vez mais hegemônica. Isto porque, a partir da História do soldado,  o único material de composição será o material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais pobres, convenções deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno já indicara algo desta tendência ao perceber que, devido ao princípio artístico da recusa e a um certo anti-humanismo, os momentos de inflexões expressivas em Stravinsky eram, normalmente, sucessões sonoras elementares. Desde Petruschka, a expressão advém grotesca, risível e conjugada apenas em uma gramática claramente posta como ultrapassada, como se: “a imago do deteriorado e decrépito devesse se transformar no remédio contra a decadência (Verfallenen)”[41]. Este remédio contra a decadência do tonalismo sintetizado com imagens de elementos deteriorados do próprio sistema será, não apenas o motor da fase neo-clássica de Stravinsky, mas também procedimento composicional maior para a compreensão do que está em jogo no resgate contemporãneo do tonalismo.

A este respeito, devemos levar à sério a afirmação adorniana de que o compositor que segue a lógica em operação nas obras de Stravinsky compõe com “ruínas de mercadorias (Warentrümmern)”, isto no sentido de assumir formas e elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal, como se tal material já estivessem previamente criticado, como se ele trouxesse em si sua própria negação e afirmasse sua própria impossibilidade em desempenhar suas “funções naturais”. É isto que Adorno tem em mente ao dizer que Stravinsky compõe como quem “ritualiza a liquidação (Ausverkauf – “liquidação” no sentido de proposições como: “ uma loja em liquidação”)”[42]. Daí a idéia adorniana de afirmar que isto nada mais é do que uma forma musical paródica, forma que apresenta todos os seus materiais entre parênteses, como se estivéssemos diante de uma “música feita a partir da música”, ou de uma montagem de músicas mortas, música feita contra a música.

Tudo se passa como se o fazer tomasse consciência de si através da ironia e afirmasse abertamente enquanto tal. Música que, de maneira cínica: “zomba da norma com o mesmo fôlego que a afirma”[43], ou seja, forma estética capaz de suspender a norma exatamente ao segui-la. Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados do ponto de vista de situação sócio-histórica. É devido a este ponto que Adorno pode afirmar em 1962 : “Stravinsky continua sendo um objeto de escândalo porque o caráter inautêntico da objetividade tomou, neste prestidigitador, uma feição caricata. O que salvou sua música de todo provincianismo, é que ela nunca deixou de mostrar seus barbantes, como apenas os mágicos inimitáveis podem fazer”[44]. Sua consciência de que apenas uma “linguagem orgânica em decomposição” era possível à música que aspira afirmar-se como forma crítica nos leva a indicá-lo como exemplo privilegiado de alguém que procura expor o colapso da distinção entre arte e fetichismo, mas no interior de estruturas claramente fetichizadas.

È claro que sempre se pode dizer que: “esta música, longe de se confundir com a consciência reificada que nela fala, ultrapassa-a na medida em que a contempla em silêncio e a deixa falar em pessoa, sem intervir”[45]. No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma consciência reificada auto-reflexiva ou de uma falsa consciência esclarecida. Forma de uma consciência cínica que repete os gestos musicais de uma consciência reificada, mas que demonstra a todo momento, seja pela excessiva força, seja pelos cortes e pelas justaposições, tomar distância de seu próprio gestual.

Se pensarmos em compositores contemporâneos como John Adams (“o maior compositor da América”) e Thomas Adés, veremos que tais processos composicionais continuaram, mas levados ao paroxismo. Entre Adès e Adams passa o mesmo discurso de disponibilização integral dos materiais musicais de todas as tradições possíveis e de mobilização de tais materiais em uma organização musical que visa o grande público. O mesmo Adams que teve a sagacidade de afirmar: “Minha música é como uma grande lixeira. Eu não recuso nada”. É verdade. Em “Harmonielehre”,de 1984-1985, por exemplo, há espaço para harmonias de jazz, orquestrações de música de filme dos anos 50, pulsação de rock e insinuações dodecafônicas. A princípio, nada fica fora de seus processos de justaposição e colagem. O titulo já é uma paródia do Tratado de harmonia, de Schoenberg, último dos grandes tratados de harmonia da história da música e editado no momento em que o próprio Schoenberg já demonstrava que os caminhos estavam abertos para o abandono do tonalismo. Tudo se passa como se Adams se colocasse no limiar deste momento histórico, mas para fornecer sua própria versão a respeito do que se abre a partir do esgotamento das funções construtivas do sistema harmônico tonal. Abre-se uma era da disponibilização integral do material e livre uso de formas. Livre uso perfeitamente ilustrado pelo próprio Adams a respeito de uma outra de suas peças Grand pianolla music, de 1982: “Pense em Beethoven e Rachmaninoff tomando banho no mesmo box com Liberace, Wagner, The Supremes, Ives e John Philip Sousa”.

No entanto, para que sequências pianísticas de glissandos e arpeggios dignos de Liberace convivam de maneira relativamente “harmônica” com desenvolvimentos cromáticos wagnerianos é necessário uma grande dose de indiferença em relação à resistência dos materiais através da redução destes a um gênero de imagem sonora submetida a princípios gerais de estilização, ou seja, à condição de clichês. Só desta forma, Adams pode trabalhar seus materiais sonoros de forma tal que, ao final, eles parecem construir uma totalidade orgânica incapaz de ferir os ouvidos acostumados à forma-sonata e digna dos momentos áureos do tonalismo. Em um incrível passe de mágicas, a multiplicidade de materiais parece transformar-se em um grande contínuo onde tudo pode entrar e sair sem abalar o solo seguro de um desenvolvimento que esconde suas justaposições. Passe de mágicas possível porque a composição virou um “jogo de máscaras”, isto no sentido de um jogo musical sobre a própria música: palavras usadas por  Adams a fim de caracterizar seu próprio trabalho e que, não por acaso, repetem o diagnóstico adorniano sobre Stravinsky. Nada mais exemplar aqui do que o segundo movimento de Century Rolls, de 1996: uma paródia das Gymnopédies, de Satie que já está indicada no próprio título do movimento, Manny´s gym. Paródia feita da articulação entre as modulações de Satie e arranjos de piano-bar.

Adams teria certamente uma outra versão para tal ecletismo pressuposto pelo discurso da disponibilização integral do material. Em um tom claramente afirmativo, ele falaria da multiplicidade que compõe a “América” enquanto espaço livre das hierarquias e distinções que marcaram a “velha Europa”. O ecletismo de sua música seria apenas o resultado de um “retorno à experiência ordinária” que, na era da urbanidade, tudo mistura e às formas musicais enraizadas em práticas comunais de interação social. Este tom afirmativo da “entificação” da vida cotidiana seria, ainda, acompanhado pelo espiritualismo de Emerson e Thoureau. É desta forma que Adams pode afirmar: “Eu logo percebi que a música dodecafônica estava muito divorciada da experiência comunal”, sem problematizar o fato de que este divórcio era o resultado do esvaziamento da própria noção de “experiência comunal” na era da universalização da forma-mercadoria.

No entanto, não deixa de ser sintomático que esta “estetização musical de um plano de imanência” vinculado à multiplicidade pura disposta no campo de experiências comunais seja conjugada através de fortes doses de ironização dos materiais com os quais as obras são compostas. Na verdade, as obras só podem realizar suas promessas de imanência através da ironização, exatamente como era o caso das exigências de “autenticidade” que animavam o programa estético de Stravinsky. No fundo, se tratava de uma autenticidade que só podia se realizar de forma irônica. Cinismo adequado para a estetização dos modos contemporâneos de funcionamento da ideologia.

Neste sentido, a obra de Thomas Adès representa um problema suplementar. A herança minimalista de Adams ainda marca sua música com exigências de clareza na escrita; exigências derivadas do pulso regular e do máximo uso de recursos muitas vezes reduzidos. É verdade que não se trata mais de recursos minimais como os que marcam Phrygian Gates ou Light over Water (embora obras tardias como Lollapalooza, de 1995, ainda devem ser compreendidas nesta chave) mas mesmo em peças de construção complexa como Chamber Symphony, de 1992 nota-se claramente o esforço de Adams em dar visibilidade a um conjunto reduzido de idéias norteadoras da forma. Algumas obras de Adès, ao contrário, tendem a partir do que poderíamos chamar de “ambientes desetruturados” que tendem à informidade. Os primeiros compassos de Concerto conciso, de 1997-1998 são muito claros neste sentido. As estruturas que se organizam de maneira frágil e instantânea são baseadas, é claro, em clichês musicais que subsistem em contextos que não lhe são próprios. Clichês que remetem a inflexões da gramática musical convencional ou da própria tradição modernista (reduzida ela também à “imagem musical”). De fato, os únicos elementos organizadores são “fetiches em ruínas” ou formas que são destruídas da mesma maneira que uma criança destrói brinquedos e depois tenta remontá-los à força (os casos exemplares aqui são o tango de Arcadiana e o “tecno” de Asyla, movimento chamado ironicamente de Ecstasio). Esta forma consegue absorver sua própria desestruturação sem, com isto, colocar em questão a noção de que só há ordem através de materiais fetichizados. Desta maneira, ela flerta com o informe sem abandonar a sustentação de um princípio de organização a respeito do qual ela faz toda questão de enfatizar sua descrença. Mesmo o informe pode servir para sustentar uma ordem que vigora através da sua própria descrença.

 


 



[1] BENJAMIN, Walter; Rua de mão única,Brasiliense,  p. 54

[2] Cf. FOSTER, Hal; The return of real, MIT Press, 1996

[3] GREENBERG, Clement; A necessidade do formalismo in FERREIRA et COTRIM (org.) Clement Greenberg e o debate crítico, Zahar, 1997, p. 127

[4] GREENBERG, Clement; Vanguarda e kitsch, in op. cit., p. 30

[5] Ver a respeito desta última, por exemplo, RANCIÈRE, Jacques; L´inconscient esthétique

[6] PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, Paz e Terra, 2000,. p. 210

[7] FRIED, Michael; Art and objecthood in BATTCOCK, Gregory; Minimal art: a critical anthology, University of California Press, 1968, p. 125 

[8] FRIED, idem, p. 119

[9] GREEENBERG, Rumo a um mais novo Locoonte in op.cit., pp. 52-53

[10] Na verdade, Max Weber foi o primeiro a perceber que a música fornecia o padrão de racionalização que deveria vigorar no campo das artes. A respeito deste processo de constituição da legalidade própria da esfera musical ver, por exemplo,  WEBER, Fundamentos racionais e sociológicos da música, São Paulo, Edusp, 1996

[11] SCHOPENHAUER, O mundo como vontade e representação, par. 59

[12] HANSLICK, Do belo musical, p. 42

[13] Não é por outra razão que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos através dos quais Schoenberg aproxima-se e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a gêneros como a sinfonia, o quarteto de cordas e as peças líricas de piano, ou seja, gêneros típicos da música absoluta” (DAHLHAUS, Schoenberg and the new music, p. 99)

[14] Ver, por exemplo, SCHOENBERG, Style and Idea, p. 121

[15] ADORNO, PNM, p. 77

[16] SCHOENBERG, Tratado de harmonia, p. 55

[17] ADORNO, PNM, p. 50

[18] idem, p. 49

[19] Lembremos, neste sentido, do que Schoenberg diz a respeito de Erwartung : “ë impossível ao homem sentir apenas uma coisa por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo tempo. E estas milhares de coisas não se adicionam, da mesma maneira como uma maça e uma pera não se adicionam. Elas divergem. É esta multiplicidade de cores, de formas, este alogicismo próprio a nossas sensações, alogicismo inerente às associações de idéias, a não importa qual reação dos sentidos e dos nervos que quero em minha música”.

[20] FREUD, 1999 X, 172

[21] FREUD, 1999 X, p. 173

[22] ADORNO, PNM, p. 155

[23] SCHOENBERG, Style and Idea, p. 107

[24] SCHOENBERG, Style and idea, p. 107

[25] SOULEZ, Schönberg: penseur de la forme, p. 120

[26] BOULEZ, Penser la musique aujourd’hui, p 31

[27] BOULEZ, Apontamentos de aprendiz, p. 244

[28] idem, Penser la musique, p. 25

[29] BOULEZ, idem, p. 28

[30] ADORNO, Dificuldades, p. 657

[31] BOULEZ, idem, p. 29

[32] Esta racionalidade musical é capaz até mesmo de englobar a irracionalidade do acaso como elemento estruturador de seus procedimento. Ë isto que vemos no texto “Alea”. Pensando principalmente na “musica da indeterminação” própria à John Cage e em seu impulso de “perda total do sentido global da obra”, Boulez procura transformar o acaso em elemento construtivo previamente codificado. “Busca-se desesperadamente dominar um material por meio de esforço árduo, tenso, vigilante e por desespero o acaso subsiste e se introduz por mil frestas impossíveis de calafetar ... ‘E está bom assim!’. Não obstante, o último ardil do compositor não seria absorver esse acaso? Por que não domesticar esse potencial e forçá-lo a dar-se conta e a prestar contas?  Introduzir o acaso na composição ? Será loucura, ou ainda, uma tentativa vã? Pode ser loucura, mas uma loucura útil. De qualquer modo, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a ele, é uma forma de renúncia que se  subscreve sem negar todas as prerrogativas e hierarquias envolvidas na obra criada. Como conciliar então composição e acaso?” (BOULEZ, Apontamento de aprendiz, p. 47). É a respeito desta luta entre o determinado e o indeterminado no interior da forma musical, desta “organização do delírio”, para falar com Boulez, que Foucault dirá, sobre o compositor francês: “Trata-se de dar a força de romper as  regras no ato mesmo que as implementa” (FOUCAULT, Dits et écrits II, p. 1040)

. No limite, isto levará a forma bouleziana a uma situação de abertura constitutiva. Lembremos a este respeito que, a partir dos anos 70, a maior parte do trabalho composicional de Boulez será uma re-composição contínua de suas próprias peças.

[33] ADORNO, Theodor; Asthétische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 1973, p. 201

[34] RESTANY, Pierre; Os novos realistas, Perspectiva, 1979, p. 111

[35] RESTANY, idem, p. 140

[36] RESTANY, idem, p. 150

[37] Tomo a liberdade de remeter ao meu: SAFATLE, Produzir sínteses sem acreditar no todo in Discurso, n. 35

[38] ADORNO, Theodor; Beitrag zu Ideologienlehre in Gesammelte Schriften VIII, Digitale Bibliothek Band 97, p. 467

[39] LYOTARD, Jean-François; Des dispositifs pulsionels, Christian Bourgois, 1980,  p. 121

[40] REICH, Writings about music, p. 159

[41] ADORNO, Philosophie der neuen musik, p. 138

[42] ADORNO, idem, p. 166

[43] ADORNO, idem, p. 188

[44] ADORNO, Stravinsky, p. 164

[45] ADORNO, Stravinsky, p. 166

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