+ livros
A cura pela arte
Com rigor conceitual,
"A Paixão
do Negativo" analisa o pensamento
de Lacan
LUCIA SANTAELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não é difícil concordar com a afirmação de que Jacques
Lacan é um antifilósofo. De fato, Lacan nunca aceitou a aspiração
ao acabamento que é próprio
do discurso filosófico. Entretanto os textos lacanianos estão recheados de temas e alusões à filosofia de muitos autores e escolas.
Mais do que isso: o vigor da
elaboração conceitual de Lacan
jamais virou as costas aos impasses do racionalismo moderno. Figuras centrais na sua interlocução foram Kant e, especialmente, Hegel.
Um dos textos seminais de
Lacan, "Subversão do Sujeito e
a Dialética do Desejo", incrusta
no seu título o tributo que o
psicanalista aí paga ao filósofo.
Não se trata, entretanto, de um
pagamento simples. Se existe
uma dialética do desejo, ela é
inseparável de uma subversão
do sujeito e, nesse ponto crucial, Lacan se afasta de Hegel.
Dialética e sujeito
Contudo isso não significa
que se possa meramente descartar Hegel dos caminhos da
psicanálise lacaniana, pois resta esclarecer como articular, de
uma maneira distinta de Hegel,
dialética e sujeito, esses dois
grandes motivos hegelianos.
Muitos foram aqueles que,
nas suas leituras de Lacan, se
satisfizeram com o esclarecimento dessa articulação no
postulado do sujeito dividido à
luz da lógica do significante.
Entretanto, como ocorre
com todo pensador de peso, a
obra de Lacan foi marcada pelo
crescimento da complexidade
de sua cartografia conceitual.
Isso quer dizer que questões
trabalhadas em um certo ponto
da trajetória não foram meramente abandonadas, mas reelaboradas com o auxílio de conceitos mais afinados e precisos.
São raros aqueles que acompanharam o desenvolvimento
que as questões filosóficas do
sujeito e da dialética receberam no Lacan dos anos 1960
em diante.
Vem daí um dos fatores da
enorme relevância deste "A
Paixão do Negativo", de Vladimir Safatle, ao levar à frente,
com energia intelectual rigorosa e persistência amorosa nos
propósitos, a tese de que a trajetória de Lacan "é sintoma dos
impasses da tradição crítica do
racionalismo moderno aberta
pela dialética hegeliana".
Proximidade de Adorno
Para Safatle, ao sustentar a figura do sujeito, mas longe de
um pensamento da identidade,
a estratégia lacaniana chega
muito perto da versão da dialética negativa elaborada por
Adorno.
Contrariando tanto as facilidades do relativismo e seus
procedimentos de interpretação quanto os discursos correntes sobre a morte do sujeito
ou do retorno à imanência do
ser, ao arcaico, ao inefável, ambos, Adorno e Lacan, propuseram a centralidade de experiências de confrontação entre
sujeito e objeto, do singular e da
resistência do objeto de que só
uma dialética renovada pode
dar conta.
O percurso de Safatle, seguindo "pari passu" as transformações da trajetória conceitual de Lacan, é implacável no
cuidado caprichoso com que
expõe seus argumentos.
Na primeira parte do livro,
discorre sobre o paradigma lacaniano da intersubjetividade,
indissociável da compreensão
do desejo como desejo puro e
marcado pela tensão entre a
negatividade do que se aloja na
subjetividade e a dialética do
reconhecimento. Esse paradigma foi importante na construção de um espaço no qual a negatividade do sujeito seria reconhecida mediante uma lei fálica e paterna constituída de significantes puros.
Todavia, a partir de 1961, Lacan operará certo retorno ao
sensível e ao primado do objeto, abandonando o conceito de
desejo puro em prol da rearticulação do conceito de pulsão.
Força disruptiva
O ponto mais alto do livro está na parte final, quando se arma o confronto entre Lacan e
Adorno, de que resulta a constatação de que só há cura possível no acesso a uma experiência
de descentramento e de não-identidade cujo modelo é fornecido pela força disruptiva da
arte contemporânea.
Nisso se revela o que talvez
venha a ser a astúcia suprema
da dialética, a de saber calar para deixar as ruínas falarem.
"Astúcia que a arte foi a primeira a formalizar."
É no mínimo jubiloso que um
livro de uma tal envergadura
seja lançado em nosso meio,
em um momento em que, afetada pela expansão da "geléia
geral", intensifica-se a tendência nativa à leviandade intelectual. Felizmente ainda continuam a existir espíritos aos
quais o fácil enfada.
Este livro se endereça a espíritos desse tipo, que se comprazem na "paciência do conceito". Afinal, convenhamos, não
há nada mais prático do que
boas teorias.
LUCIA SANTAELLA é coordenadora da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design
digital na Pontifícia Universidade Católica (SP).
A PAIXÃO DO NEGATIVO
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Unesp
Quanto: R$ 40 (336 págs.)
Página Inicial
|