O filósofo italiano Giorgio Agamben diz que a política externa
norte-americana
é o exemplo maior do Estado
contemporâneo - uma máquina que produz
a desordem
e ganha legitimidade ao administrá-la
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é, na verdade, regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade." Esta afirmação programática de Walter Benjamin resume bem o que anima o projeto intelectual de Giorgio Agamben nos últimos anos. Folha - O senhor possui atualmente um vasto campo de trabalho no interior do qual se cruzam estética, teoria da literatura, filosofia política, psicanálise, história e filosofia do direito. O senhor é também o responsável pela edição italiana da obra de Walter Benjamin. Há questões comuns que orientam sua incursão nestes múltiplos campos de interesse?
Giorgio Agamben - A lógica que guia minha pesquisa não é a lógica da substância e do território separado com fronteiras bem definidas. Ela está mais próxima do que, na ciência física, chamamos de um "campo", onde todo ponto pode a um certo momento carregar-se de uma tensão elétrica e de uma intensidade determinada. Filosofia, política, filologia, literatura, teologia, direito não representam disciplinas e territórios separados, mas são apenas nomes que damos a esta intensidade. Folha - Qual é a trajetória de pesquisa que o levou a identificar, no estado de exceção, o fenômeno jurídico maior na compreensão da normatização da vida contemporânea?
Agamben - Primeiramente, gostaria de lembrar que, atualmente, o direito é, de fato, um dos meus principais canteiros de trabalho. O outro é a teologia. Qual a razão desta escolha? Eu poderia responder -e isto não seria necessariamente uma brincadeira- que o direito e a teologia são os dois únicos domínios nos quais Foucault não trabalhou realmente, o que me dava uma certa liberdade. Folha - O senhor diz, em "Estado de Exceção", que devemos pensar a política para além do jurídico. Mas, se em nossas sociedades democráticas, como o senhor afirma, o estado de exceção é a regra, isto significaria que não há mais espaço político no interior do sistema parlamentar de representação? E, se devemos pensar a política para além do jurídico, devemos então abandonar a aspiração moderna de constituição de um Estado Justo?
Agamben - Veja, sua pergunta sobre qual seria a constituição de um Estado Justo me parece abstrata e, como tal, realmente não me interessa. Não se trata mais, como era ainda legítimo na época de Rousseau, de escrever a Constituição da Polônia ou da Córsega. Deixo esta questão para os juristas criminais que acreditam poder escrever a Constituição democrática do Iraque. Ou aos tecnocratas ingênuos que acreditaram poder escrever a Constituição européia sem se perguntar se havia, em algum lugar, um poder constituinte que os autorizava. Pois é a própria relação entre política e direito que deve ser questionada. Problema este que a tradição marxista sempre negligenciou por acreditar que o direito, em última instância, era um instrumento neutro do qual poderíamos nos servir sem problemas. Folha - O sr. diz ainda que a declaração clara do estado de exceção está sendo substituída paulatinamente pela generalização do paradigma de segurança como técnica normal de governo. Os EUA seriam, no seu ponto de vista, um caso exemplar?
Agamben - Em um de seus cursos
no Collège de France, Michel Foucault mostrou como funciona a segurança enquanto paradigma de governo. Para Quesnay, Turgot e os
ministros fisiocratas, que nesta matéria foram os primeiros, não se tratava, por exemplo, de prevenir as
grandes penúrias, mas de deixá-las
ocorrer para, em seguida, dirigi-las e
orientar os modos de atravessá-las.
A segurança como paradigma de governo não nasce para instaurar a ordem, mas para governar a desordem. É neste sentido que a segurança, juntamente com o estado de exceção, é o paradigma fundamental
da política mundial. Como disse um
funcionário da política italiana durante as investigações judiciárias
que se seguiram às mortes na manifestação antiglobalização em Gênova: "O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem". Folha - O senhor fala, ao final de "Estado de Exceção", a respeito da necessidade de abrirmos espaço a uma "violência pura" capaz de expor e de cortar o vínculo entre violência e direito. Esta idéia de "violência pura" é algo como uma idéia reguladora ou o senhor tem em mente situações revolucionárias concretas que teriam o valor de paradigma?
Agamben - É importante precisar o
que devemos entender por "pura"
quando se fala de violência. Não se
trata, em absoluto, de um caráter ou
de uma propriedade substancial
próprio a certos tipos de atos violentos, isto em detrimento de outros.
Como Benjamin disse muito claramente, a pureza de um ser ou de
uma coisa nunca reside neste próprio ser, nunca está na origem, mas
depende da relação entre este ser e
algo de externo. No nosso caso, trata-se do direito. |
Conceitos de Agamben
Estado de exceção - Criada pela Assembléia Constituinte francesa em 1791 sob o nome de "estado de sítio", a figura de um quadro legal para a suspensão da ordem jurídica em "casos extremos" aplicava-se inicialmente apenas às praças-fortes e portos militares. Em 1811, com Napoleão, o estado de sítio podia ser declarado pelo imperador a despeito da situação efetiva de uma cidade estar sitiada ou ameaçada militarmente. A partir de então, vemos um progressivo desenvolvimento de dispositivos jurídicos semelhantes na Alemanha, Suíça, Itália, Reino Unido e EUA, que serão aplicados, durante os séculos 19 e 20, em situações variadas de emergência política ou econômica. Giorgio Agamben compreende tal desenvolvimento como a manifestação de um processo de generalização dos dispositivos governamentais de exceção. Processo este que teria sido o motor invisível das democracias ocidentais (o que Agamben tenta salientar ao aproximar a lógica da exceção e o problema do lugar do soberano nas teorias clássicas da filosofia política). Por um lado, tal teoria da generalização progressiva do estado de exceção procura fornecer o quadro de análise para a tendência contemporânea em criar situações nas quais a distinção entre estado de guerra e estado de paz seja impossível. Indistinção que visaria, assim, transformar o estado de exceção em regra universal. No entanto, a partir desta teoria da centralidade de processos de suspensão da norma que não equivalem necessariamente à abolição da norma, Agamben procura fazer mais do que fornecer uma visão das tendências que atuam na estrutura político-jurídica contemporânea. Ele visa fundamentalmente criticar uma noção de razão vinculada à crença de que racionalizar é assegurar a vida por meio da posição de critérios normativos de justificação intersubjetivamente partilhados. Neste ponto, o trabalho de Agamben aparece como um desdobramento das reflexões de Michel Foucault sobre os modos de coincidência entre a norma racional e o seu outro. Biopoder - Termo cunhado por Michel Foucault para dar conta da centralidade, na consolidação do poder na modernidade, daquilo que o filósofo chama de "administração dos corpos" e de "gestão calculista da vida". Foucault insiste no fato de que tal transformação da vida humana em objeto do poder soberano implicou em sua redução à condição de pura vida biológica, vida pronta para ser administrada pelos dispositivos ordenadores do poder ou, ainda, redução àquilo que Agamben chama de "vida nua". Neste sentido, a contribuição mais importante de Agamben no interior do debate sobre as estruturas do biopoder consiste em mostrar como a vida nua vai progressivamente coincidindo com a integralidade do espaço político, no sentido de ela ser posta como a figura hegemônica da vida que pode aparecer no interior do espaço político. Isto implica necessariamente compreender qual a estrutura jurídica própria a um poder que reduz a vida à condição de mera vida biológica. É neste ponto que se articulam os livros "Homo Sacer" e "Estado de Exceção". Homo sacer - Partindo do fato de que no termo latino "sacer" convergem duas determinações aparentemente opostas de sentido ("sagrado" e "maldito" ou "matável"), Agamben procura dar conta do verdadeiro sentido da sacralidade da vida enquanto princípio inviolável e elemento político originário. As determinações opostas de "sacer" apenas indicariam aquele que está fora tanto do direito humano (por ser sagrado) quanto do direito divino (por ser matável de maneira não sacrificial). Habitante excedente de uma zona de indistinção entre a vida humana e a morte consagrada, o "homo sacer" demonstraria como a sacralidade é apenas a figura perfeita de uma vida nua cada vez mais presente. Com isto, Agamben procura dar conta do sentido biopolítico de políticas de vitimização (baseadas na dissociação entre os direitos do homem e os direitos do cidadão) e de situações contemporâneas nas quais sujeitos são, cada vez mais, jogados em zonas de anomia. |
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