Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, s�bado, 25 de junho de 2005 � Página Inicial

Filosofia Engajada

A figura de Sartre e sua atua��o pol�tica reaparecem de maneira forte
nas comemora��es do seu centen�rio

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Kleber Sales
Sartre

Cem anos ap�s seu nascimento, eis que Sartre reaparece como foco de discuss�o. Aparecimento este que n�o deixa de ter tra�os surpreendentes, ainda mais se levarmos em conta o grande ocaso a respeito do qual seu nome foi v�tima durante os �ltimos vinte e cinco anos.

Ap�s sua morte, Sartre parecia definitivamente relegado a um outro tempo. Sua literatura e seus romances de tese n�o pareciam ter muito lugar na cena liter�ria contempor�nea. Sua postura de intelectual engajado, "intelectual p�blico" chamado a interferir nos debates pol�ticos da �poca devido � for�a mobilizadora de sua palavra, parecia francamente em decl�nio. � verdade que, ap�s Sartre (e n�o poder�amos esquecer aqui de Herbert Marcuse), tivemos ainda Michel Foucault. Mas j� ao lado de Foucault encontramos certas figuras menores, sem estofo acad�mico real, e especializadas no que o pr�prio Foucault chamou um dia de "jornalismo transcendental": coment�rio cotidiano dos fatos do dia atrav�s de alguma categoria filos�fica requentada, de prefer�ncia categorias morais como o "mal radical" e seus cong�neres.

Isto, na verdade, demonstrava apenas uma nova divis�o do trabalho que tenta se colocar como hegem�nica hoje em dia. A partir desta vis�o, caberia aos intelectuais respons�veis falar sobre moral nas �ltimas p�ginas dos jornais (ou sobre "responsabilidade social" das empresas), deplorar com amargura as guerras e conflitos, pregar a toler�ncia, dar explica��es hist�ricas que fazem com que as causas dos impasses contempor�neos remontem ao neol�tico, louvar o multiculturalismo como forma m�xima de aceita��o da diferen�a, e por a� vai. Como se v�, o figurino � inofensivo e talvez ele nos explique por que, ap�s Foucault, a figura do intelectual com for�a de atua��o pol�tica no espa�o p�blico, em larga medida, desapareceu.

De qualquer forma, talvez seja exatamente tal desaparecimento que justifique o ressurgimento de Sartre. Para uma grande gera��o de brasileiros, ele representou a articula��o entre pensamento e a��o. Jun��o arriscada, j� que, como dizia Hegel, o conceito � como a coruja de Minerva: s� toma v�o na irrup��o do crep�sculo. Isto obrigou Sartre a aquilo que um dia ele pr�prio chamou de: "capacidade de pensar contra si mesmo". Ou seja, capacidade de reconhecer este ponto no qual o acontecimento ultrapassa nossas representa��es naturais, impondo uma reinterpreta��o do pensar e dos modos de engajamento. Este reconhecimento da fragilidade estrutural do julgamento sobre o presente � talvez um dos grandes legados da experi�ncia intelectual sartreana, principalmente se compreendermos esta experi�ncia em toda a sua extens�o, em todas as suas reviravoltas e ziguezagues.

Podemos dizer isto porque, em Sartre, n�o se tratou simplesmente de transformar o reconhecimento de tal fragilidade do pensar em justificativa para a ina��o diante da complexidade de toda a situa��o na qual o sujeito se engaja. Por outro lado, ele tamb�m n�o significou abra�ar um decisionismo voluntarista. A compreens�o da experi�ncia intelectual de Sartre na posteridade nos demonstra um movimento no qual os engajamentos s�o assumidos mas sempre pass�veis de autocr�tica e revis�o. O caso de sua rela��o com o PC franc�s, rela��o esta marcada por idas e vindas, � um exemplo aqui. Todo o ato moral e todo o ato pol�tico s�o fal�veis e esta falibilidade estrutural do ato � o que abre espa�o para que o engajamento n�o seja simplesmente cegueira, mas aposta e risco. Uma aposta que saiba calcular resultados e um risco que saiba rever suas conseq��ncias. Basta conhecer o "partido dos intelectuais" e sua dificuldade de operar com autocr�ticas para compreendermos como esta posi��o de Sartre guarda sua peculiaridade.

Aqui, vale inclusive um coment�rio. A contemporaneidade colocou em circula��o uma certa leitura a respeito do ocaso dos intelectuais (principalmente os de esquerda) devido a uma certa incapacidade cong�nita em identificar as "cat�strofes" que eles pr�prios teriam legitimado. De fato, a lista seria grande: Foucault e a defesa da Revolu��o Isl�mica no Ir�, Brecht e a defesa dos julgamentos de Moscou, Sartre e a guerra da Cor�ia, isto sem esquecer de Althusser que, ainda na d�cada de 80, via a URSS como um lugar maravilhoso para se viver. Por tr�s destas cr�ticas aos intelectuais, h� a id�ia de que aquilo que poder�amos chamar de "busca pelo real", seja atrav�s da confronta��o com a luta de classe, seja atrav�s da revolu��o pol�tica, da "libera��o" das puls�es, da cr�tica totalizante da ideologia, do retorno pr�-reflexivo �s coisas ou de alguma outra figura da ruptura radical, s� poderia provocar equ�vocos.

No entanto, devemos lembrar que o pensar n�o pode deixar de assumir riscos, j� que "risco" � outro nome para a recusa em simplesmente legitimar o que se coloca como existente. Cat�strofes ocorreram dos dois lados: lembremos, por exemplo, de Popper e sua sociedade aberta como o sonho de megaespeculadores do porte de George Soros, ou da doxa p�s-moderna e seus sonhos de libera��o da multiplicidade n�o-estruturada como legitima��o da desterritorializa��o do Capital, isto sem esquecer das mobiliza��es contempor�neas de intelectuais de direita em favor da "guerra justa" contra os inimigos da modernidade, guerra esta que est� apenas come�ando. Isto apenas nos demonstra como pensar � necessariamente engajar-se em um projeto cujo verdadeiro sentido s� pode se dar na posteridade. Fato que a experi�ncia intelectual de Sartre (mesmo que a contrapelo) pode nos mostrar.

Neste sentido, s� podemos esperar que o mercado editorial brasileiro aproveite este momento para relan�ar e traduzir n�o apenas as obras liter�rias e teatrais de Sartre, mas principalmente sua obra filos�fica. Textos fundamentais como: "A transcend�ncia do ego", "Esbo�o de uma teoria das emo��es", "A imagina��o" e as colet�neas lan�adas sob o nome de Situa��es ainda est�o sem tradu��o ou circulam apenas em tradu��es restritas. Trata-se de uma falha que impede o p�blico leitor brasileiro de compreender mais claramente como se articulam projeto filos�fico e pr�tica de engajamento no interior da experi�ncia intelectual sartreana, ou ainda (e isto me parece o mais interessante) como os impasses do programa filos�fico v�o reverberar na constitui��o das modalidades e regimes de engajamento. Neste sentido, um livro importante a ser traduzido seria, por exemplo, Parcours deux 1951-1961, com textos de Merleau-Ponty a respeito de sua ruptura com Sartre que o levaria a escrever Sartre e o ultrabolchevismo. Nele, encontramos uma bela exposi��o desta articula��o entre pensar filos�fico e praxis em Sartre. Ao final, ela acaba por nos mostrar algo que Heidegger, o mesmo Heidegger com que Sartre teve uma rela��o t�o turbulenta, j� mostrara: a inanidade completa da distin��o entre pensar e a��o. Pois, como diria Heidegger, o pensar age enquanto pensa. Ele age nesta dimens�o mais relevante da a��o, pois o pensar configura o sentido do campo no qual a a��o ir� se colocar. E este configurar � o trabalho mais pesado. Um trabalho que Sartre nunca se recusou a levar a cabo.

Vladimir Safatle � fil�sofo e professor da USP
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