+ memória
VLADIMIR SAFATLE Em 2002, o filósofo francês Paul Ricoeur -que morreu aos 92 anos, no último dia 20- concedeu uma entrevista exclusiva à Folha, por ocasião do lançamento [na França] de seu livro "A Memória, a História e o Esquecimento". Tal entrevista nunca foi publicada. Leia a seguir alguns trechos. Folha - Gostaria de começar com uma questão a respeito da sua trajetória intelectual e de seu primeiro livro, "A Filosofia da Vontade", que apareceu em um momento filosófico dominado pela fenomenologia. Quais foram as coordenadas que o levaram a escolher o problema da vontade como tema filosófico?
Paul Ricoeur - Creio que há duas razões, se é que podemos reconstruir
nossa própria história, já que somos
narradores de nós mesmos tão inseguros quanto os outros também o
são. Antes de mais nada, havia a situação da fenomenologia. A meus
olhos, ela estava marcada pelo lugar
ocupado por Sartre e Merleau-Ponty. Ora, minha referência era
Merleau-Ponty, pois eu não me interessava muito por Sartre e pela sua
oposição entre o ser e o nada. Nesse
quadro, depois da "Fenomenologia
da Percepção", eu me perguntei: o
que resta a fazer? A resposta, por
subtração, era a região prática. Folha - Depois dessa obra o senhor voltou-se à psicanálise. O que exatamente o interpelava em Freud?
Ricoeur - Aqui também minha resposta será dupla. Primeiro, pensemos a psicanálise em relação à fenomenologia. Sabemos que a fenomenologia coloca seu foco principal na
questão da consciência. Logo, o inconsciente aparecia como um "desafio" epistemológico. Ora, eu levei
muito a sério a noção de inconsciente enquanto algo irredutível ao que
Sartre havia compreendido como
má-fé. Minha questão era: há lugar
para o inconsciente na fenomenologia? A resposta era "não". Nesse sentido, era necessário deixar o "desafio" aberto pois, com o inconsciente,
a fenomenologia encontrava seus limites. E lembremos que reconhecer
seus limites é ainda fazer ciência. Folha - Hoje se fala muito em uma "crise da psicanálise". Um assunto que também concerne os trabalhos do senhor, já que eles são alvo do antifreudismo norte-americano.
Ricoeur - Se você está pensando nas
críticas do [filósofo americano]
Adolf Grünbaum contra mim, digo
que elas erram totalmente de alvo. Folha - Em vários livros, o sr. trabalhou o problema da intersubjetividade. Porém nunca há, de sua parte, o abandono da idéia de "sujeito" e da análise de suas funções intencionais. Como é possível conservar essa espécie de ontologia da primeira pessoa sem entrar na metafísica do sujeito?
Ricoeur - Depende do que você
chama de "metafísica do sujeito". Se
você está pensando em Heidegger e
sua crítica à pretensão do sujeito em
ser o fundamento de todas as coisas,
é bom lembrar que esse é um extremismo filosófico que ninguém nunca sustentou. A colocação de Heidegger é mais da ordem de uma
construção-limite. Não quero entrar
em polêmica com Heidegger, mas o
que é interessante nele é seu próprio
pensamento, e não a maneira como
ele coloca todo mundo sob a etiqueta comum de "metafísica", que teria
reinado de Platão até o momento em
que Heidegger em pessoa aparece. Folha - Quer dizer que não há, ao pé da letra, "filosofia do sujeito"?
Ricoeur - Não nesse sentido. Podemos economizar muitos problemas
se formos mais atentos à filosofia do
direito. Pois o problema da alteridade e da pluralidade sempre esteve
presente no direito e na filosofia política, graças às noções de dano feito
ao outro e de justiça devida. Seria necessário seguir uma outra via: a de
Hobbes, Locke, Leibniz, em suma,
toda a tradição do direito natural.
Quer dizer, no meu ponto de vista,
não é exatamente Descartes que preserva a intersubjetividade, já que ela
estava no coração dos filósofos do
direito natural. E aqui penso principalmente em Pufendorf [1632-94]. Vladimir Safatle é professor de filosofia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizador de "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp). Veja a entrevista completa, neste mesmo "site" |