Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, sábado, 14 de maio de 2005 • Página Inicial

Crítica da Virtude

O que podemos aprender depois da "crise da psicanálise"

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Kacio
Freud

Durante os anos noventa, pareceu consensual a noção de que a psicanálise entrara em "crise". Ultrapassada pelo avanço espetacular de novas gerações de anti-depressivos, ansiolíticos, neurolépticos e afins, a prática psicanalítica com sua insistência na des-medicalização foi vista por muitos como uma prática terapêutica longa, cara, com resultados duvidosos e sem fundamentação epistemológica. Muitas vezes psicanalistas foram vistos como irresponsáveis por não compreenderem que patologias como ansiedade e depressão seriam resultados de déficits orgânicos e nada teriam a ver com noções "fluídas" como, por exemplo, "posição subjetiva frente ao desejo". Sua insistência em continuar operando com grandes estruturas nosográficas como histeria, neurose, perversão, melancolia parecia resultado de um autismo que os impedia de compreender os grandes avanços dos DSM e CID na catalogação científica e fundamentada das ditas afecções mentais com suas "síndromes" e "transtornos".

Assim, enquanto víamos a reabilitação de práticas como eletrochoque, alguns países entraram em uma cruzada contra o "liberalismo" da formação de psicanalistas. Pacientes que se diziam vítimas de charlatões foram à televisão contar como perderam tempo precioso de sua vida pulando de um psicanalista a outro sem nenhum resultado efetivo. A resposta veio através de leis que tentavam regulamentar a prática analítica impedindo que pessoas sem diploma em medicina ou psicologia abrissem consultório. Uma lei desta natureza ainda está tramitando no congresso brasileiro e, quem sabe, talvez um dia seja aprovada em um grande pacote no qual estariam incluídos: a proibição ao casamento homossexual, o enterro das discussões sobre o aborto e outras pérolas do conservadorismo capitaneado pela "bancada evangélica", pelos discípulos do papa e por outros defensores do retorno do teológico-político.

De fato, todos conhecemos o cortejo do que se seguiu ao anúncio da crise da psicanálise, até porque se tratou de uma crise enunciada em letras garrafais pela mídia mundial. No entanto, e este é um ponto altamente significativo, o interesse pela psicanálise não diminuiu. Os congressos sobre psicanálise continuam cheios, os meios universitários continuam recorrendo de forma constante à psicanálise em discussões sobre clínica e crítica da cultura e o psicanalista continua sendo aquele que procuramos quando sofremos de algo que preferíamos esquecer.

Uma primeira razão talvez seja que o diagnóstico da crise da psicanálise é tão velho quanto a própria psicanálise. Boa parte das críticas que vimos aparecer contra a psicanálise (pansexualismo, recusa a compreender a medicalização como base dos processos de cura, desconhecimento dos processos orgânicos, uso sugestivo da palavra etc.) já era bem conhecida de Freud. Em alguns casos, elas serviram de base para que gerações posteriores de psicanalistas repensassem standards da prática analítica e reconstruíssem o alcance de certos conceitos metapsicológicos. Este é, inclusive, um ponto importante no debate. Normalmente, os detratores da psicanálise procuram dar a visão de uma prática estanque desenvolvida por Freud em meio à crise do Império Austro-Húngaro e que continuou, desde então, da mesma forma. Nomes como Jacques Lacan, Donald Winnicott, Bion, com suas reformulações vigorosas da clínica da metapsicologia freudiana são simplesmente ignorados.

Psiquiatria e política da vitimização
Mas há um ponto, nesta discussão sobre a crise da psicanálise, que merece ser objeto de uma reflexão de larga escala. Gostaria de insistir que o debate em torno da psicanálise teve, em larga medida, motivações ideológicas que em muito pouco contribuíram para uma discussão epistemológica sobre o fundamento de certas práticas clínicas.

Um exemplo clássico aqui é a pressuposição que servia de base para a crítica à "ineficácia" da psicanálise: a "eficácia" da psiquiatria de cunho radicalmente organicista. Primeiro, sempre vale a pena lembrar que ninguém, desde Descartes, negou que os estados mentais são suportados por estruturas materiais. O que se nega é, principalmente, um certo materialismo "sináptico" que procura reduzir todo o estado mental a um estado neuronal, como se as descrições de estados mentais não passassem de algo como meras "metáforas" de estados neuronais.

Este materialismo produziu o que poderíamos chamar de uma "política da vitimização" na qual os sujeitos aparecem como vítimas de seu próprio corpo e dos disfuncionamentos presentes em seu corpo. A causa dos sintomas não está mais nos modos de interação e de investimento libidinal entre sujeitos e estruturas sociais em seus vários níveis (família, sociedade, mercado etc.). A idéia de que "depressão" não seja o nome de um déficit orgânico, mas que seja o nome do resultado de processos de socialização, de individuação e de expectativas não realizadas de reconhecimento não é sequer mais posta. Voltamos assim a um certo atomismo que analisa sujeitos abstraindo-os dos modos como a lógica de implicação social é disponibilizada. Em última instância, a idéia é: não são os vínculos sociais que devem ser problematizados, é o corpo que deve ser recondicionado. Lógica que Michel Foucault tematizou à exaustão através de suas discussões sobre o biopoder (e deveríamos compreender os medicamentos como instrumento central das práticas contemporâneas do biopoder). O resultado não poderia ser outro: vemos atualmente um consumo assustador de medicamentos que já começa desde a infância. A título de exemplo, só na França, em 2003, foram consumidos algo em torno de 16 milhões de antidepressivos. A magnitude deste número não está reduzida apenas ao caso francês. Em breve teremos sujeitos-próteses que só conseguem dormir, comer, transar e estarem dispostos para o trabalho através de medicamentos.

Neste sentido, a guinada organicista da psiquiatria pode ser vista como um capítulo importante da entificação de uma política de controle social baseada na vitimização de sujeitos e, é sempre bom lembrar, subvencionada por investimentos brutais de grandes corporações farmacêuticas que direcionam pesquisas a partir de seus interesses de mercado e de grandes seguradoras de saúde. Lembremos que as reformulações nosográficas a partir do DSM-III foram impulsionadas pelo estado do conhecimento e da capacidade de síntese de medicamentos. A partir de 1952, após a descoberta da clorpromazina, vieram os antidepressivos tricíclicos, inibidores de monoaminaoxidase, lítio, ou seja, medicamentos que tinham efeitos-síndrome específicos (quer dizer, que atuavam apenas em determinados grupos de sintomas) e que, com isto, impunham a necessidade de critérios de diagnósticos menos gerais. Em última instância, é algo como se tivéssemos o medicamento antes da doença.

Em um contexto como este, não deixa de ser compreensível o desconforto com a psicanálise, uma teoria que se recusa a deixar de operar no ponto de contato entre estruturas de subjetividade e modos de interação social. Recusa resultante da certeza de que um campo é sempre exposição sintomática do outro e de que, se a cura sempre obedece à particularidade do caso, ela não pode deixar de levar o sujeito a reconfigurar seus vínculos com a linguagem e com as instituições sociais. Processo que deve, inclusive, assumir a possibilidade de revisão de certos dispositivos da clínica a partir do estado da vida social.

Não se trata aqui de entificar a psicanálise, já que conhecemos bem os seus problemas e desafios. No entanto, em muitos casos, ela foi criticada por suas virtudes, e não por seus problemas. Virtude de problematizar a própria noção de cura procurando levar a ação dos sujeitos para além de toda e qualquer prática de adaptação social, virtude de indicar que o tempo da experiência não se submete ao tempo do trabalho, que o sexual está longe de ser o campo no qual os sujeitos podem estar assegurados de suas escolhas, que a negação não é apenas disfuncionamento, mas modo de manifestação da singularidade, entre outros. Depois da discussão sobre a crise da psicanálise, precisamos de uma verdadeira discussão sobre as práticas de controle social que tentam se impor naturalizando padrões de conduta e de normalidade através de um discurso organicista. Isto ainda fica como tarefa.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da
Universidade de São Paulo.
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