Vladimir Safatle Valor Econômico
São Paulo, domingo, 8 de maio de 2005 � Página Inicial

Joyce no div� de Lacan

Psicanalista escreve sobre a est�tica do escritor irland�s e revela que
o estado contempor�neo das artes poderia induzir a racionalidade cl�nica.

Por Vladimir Safatle, para o Valor.

James Joyce

A hist�ria das rela��es entre est�tica e psican�lise � um turbulento cap�tulo no desdobramento das artes no s�culo XX. Sabe-se, por um lado, que Freud nunca se contentou em ver na psican�lise apenas uma cl�nica da subjetividade. Seus in�meros textos dedicados � teoria social e � cr�tica da cultura evidenciam o desejo em tamb�m elevar a reflex�o anal�tica � posi��o de teoria das produ��es culturais capaz de desvendar a origem libidinal dos v�nculos s�cio-pol�ticos e a estrutura pulsional da produ��o est�tica. Estrat�gia que muitas vezes foi vista, por cr�ticos de arte advertidos, como um reducionismo psicologizante que transferia o foco do questionamento sobre a racionalidade interna das obras para o desvelamento da psicologia do artista. De fato, por tr�s do sorriso da Monalisa, Freud n�o deixar� de ver os tra�os dos fantasmas origin�rios ligados � m�o f�lica. Atr�s de "Os Irm�os Karamazov", o psicanalista encontrar� os motivos maiores do conflito ed�pico na rela��o de Dostoievski com seu pai.

No entanto, para al�m desta an�lise sem�ntica de conte�do atrav�s dos motivos maiores da teoria da sexualidade e dos complexos, a psican�lise freudiana tamb�m forneceu � reflex�o sobre a est�tica do s�culo XX um padr�o de interpreta��o. Ao compreender o inconsciente como uma esp�cie de "outra cena" na qual poder-se-ia encontrar um texto latente onde se l� os m�biles de produ��o do texto manifesto do pensamento consciente, Freud apresentou uma no��o hermen�utica de interpreta��o fundamental para a cr�tica da arte do s�culo XX. Pois se ele conseguira usar esta din�mica hermen�utica na leitura das obras, era porque as obras eram vistas como espa�os nos quais a apar�ncia est�tica era sistematicamente desmentida pela procura dos mecanismos de produ��o em se desvelar a partir de detalhes, lapsos e sintomas. Como se um texto recalcado viesse agora � luz para desmentir as expectativas de totaliza��o funcional do texto que se p�e na superf�cie das obras. Interpretar uma obra aparecia, assim, como uma opera��o capaz de revelar a dist�ncia interna da obra em rela��o � cena da sua produ��o. Cena esta na qual poderia enfim encontrar-se a transpar�ncia da totalidade de rela��es e processos respons�veis pela determina��o do sentido das obras. E n�o � por acaso que a cr�tica psicanal�tica, ao menos a partir desta concep��o de interpreta��o como desvelamento da cena dos modos de produ��o do texto, seja t�o pr�xima da cr�tica est�tica de orienta��o marxista.

� claro que h� nesta perspectiva freudiana uma pressuposi��o cheia de conseq��ncias: Freud parte da possibilidade de que podemos tratar uma obra est�tica com os mesmos mecanismos utilizados para a interpreta��o do material de um caso cl�nico. No entanto, esta pressuposi��o, em Freud, � uma rua de m�o �nica. � a est�tica que se molda a partir da cl�nica, e nunca vice-versa. Freud nunca modificar� a estrutura de um conceito metapsicol�gico ou de um processo de subjetiva��o anal�tica porque ele teria se mostrado insuficiente para apreender as produ��es est�ticas.

O "caso" James Joyce
O que aconteceria se duplic�ssemos essa rua de m�o-�nica? De uma certa forma, esta foi uma pergunta que levou Jacques Lacan a proferir, nos anos de 1975-1976, um semin�rio dedicado a James Joyce intitulado "Le Sinthome". Lan�ado neste m�s na Fran�a pela Seuil, trata-se de um dos �ltimos semin�rios de Lacan, que morreria alguns anos depois, em 1981. Sua import�ncia no interior deste debate sobre as rela��es entre est�tica e psican�lise � grande e ainda n�o totalmente bem avaliada.

Figura conhecida por reconstruir a metapsicologia e a cl�nica freudianas ao reintroduzir a psican�lise no interior do debate mais amplo de id�ias ao operar largos empr�stimos nos campos da ling��stica, da filosofia, da antropologia e da est�tica, Lacan havia chegado nos anos 70 como um dos nomes exponenciais do pensamento franc�s. No entanto, cada veza mais ele procura repensar o que � a cl�nica anal�tica e como ela opera. � neste contexto que resolve, enfim, tratar do "caso" Joyce. Pode-se chamar de "caso" porque Lacan insistia em ver, na escrita de Joyce, algo capaz de definir uma situa��o de final de an�lise. Proposi��o paradoxal por afirmar que a experi�ncia est�tica de um autor maior da vanguarda modernista que problematizou de maneira radical a no��o de interpreta��o e a rela��o do sujeito � linguagem poderia convergir com a experi�ncia anal�tica. Como se a an�lise devesse procurar, nas formaliza��es est�ticas de vanguarda, os modos de subjetiva��o que deveriam operar na cl�nica.

A aposta lacaniana consistia, na verdade, em afirmar que o estado contempor�neo das artes poderia induzir a racionalidade cl�nica. N�o se trata simplesmente de colocar a cria��o art�stica como ideal de final de an�lise, mas de mostrar que o sucesso de uma an�lise implicaria mudan�a na maneira com que os sujeitos estruturam seus v�nculos sociais. Como, para Lacan, a linguagem era o v�nculo social determinante, ficava aberta a porta para que o poder disruptivo do modernismo na sua reconfigura��o das rela��es com a linguagem aparecesse como horizonte poss�vel daquilo que uma an�lise deveria fornecer. E se se lembrar que Joyce, segundo Lacan, "escreveu de uma maneira tal que a l�ngua inglesa n�o existe mais", deve-se aceitar que a cura estaria fundamentalmente ligada � capacidade dos sujeitos em destruir o v�nculo imediato � l�ngua com seus procedimentos gerais de simboliza��o (sem, no entanto, jog�-lo em dire��o � psicose).

� a isto que alude o estranho t�tulo do semin�rio: "Le Sinthome". Trata-se de uma antiga grafia para a palavra "sintoma". Lacan, com isto, procurava insistir na diferen�a entre duas dimens�es do sintoma. Uma diria respeito a forma��es que indicam os pontos nos quais um texto latente procura inserir-se no texto manifesto da linguagem p�blica da consci�ncia. A interpreta��o como desvelamento daria conta desta forma de sintoma. Mas haveria uma outra dimens�o, esta pr�pria ao "sinthome". Ela aparece quando o sintoma n�o � mais visto como aquilo que impede, de maneira patol�gica, o bom funcionamento da linguagem p�blica, mas como aquilo que manifesta o que s� pode aparecer como distor��o, resist�ncia e opacidade � l�ngua e � sua superf�cie. Como se o sujeito s� pudesse agora afirmar sua individualidade ao rasurar a l�ngua em suas aspira��es universalizantes. E � isto que a escrita de Joyce parece representar a Lacan: uma escrita da resist�ncia do "sinthome" � sua absor��o pela comunica��o. Como se Lacan procurasse enfim afirmar: pensar o que teima em n�o se submeter � forma � o desafio que aproxima a psican�lise e a arte contempor�nea. A partir deste caminho, talvez a hist�ria entre psican�lise e est�tica ainda seja capaz de nos surpreender.


Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de S�o Paulo, organizador da "Um Limite Tenso: Lacan Entre a Filosofia e a Psican�lise" (Unesp) e coorganizador de "O Tempo, o Objeto e o Avesso: Ensaios de Filosofia e Psican�lise" (Aut�ntica)

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