Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, s�bado, 4 de setembro de 2004 � Página Inicial

O Momento Brasileiro da Dial�tica

Novo livro de Paulo Arantes reconcilia reflex�o filos�fica e "teoria cr�tica" brasileira

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Flavio Neves Rodrigues
Paulo Arantes

Paulo Arantes normalmente aparece no cen�rio intelectual brasileiro como o primeiro a ter abandonado a via segura da filosofia universit�ria paulista para engajar-se em amplo projeto de cr�tica das forma��es econ�mico-culturais do capitalismo contempor�neo. Trajet�ria que n�o deixa de ter a ironia de uma "nega��o da nega��o".

Como reza o hist�rico da filosofia universit�ria uspiana (descrito pelo pr�prio em Um departamento franc�s de ultramar, Paz e Terra), ela teria nascido a partir da nega��o daquilo que a precedera, ou seja, de uma vida intelectual desfibrada, que desconhecia o rigor acad�mico do trabalho paciente e minucioso ao preferir o ritmo largo de interven��es nas quais misturavam-se vi�s liter�rio, bricolagens filos�ficas e an�lises sociol�gicas sobre a condi��o brasileira. Marcas de um pa�s � procura de esquemas para pensar a si pr�prio.

Dentro desse contexto, nada mais estranho ao figurino da filosofia uspiana do que uma certa id�ia de "teoria cr�tica do capitalismo". No entanto, � a ela que Paulo Arantes teria se voltado depois de abandonar uma carreira s�lida como um de nossos maiores especialistas em filosofia hegeliana e tradi��o dial�tica (vide os livros Hegel: a ordem do tempo, Hucitec, e Ressentimento da dial�tica, Paz e Terra).

Essa vers�o da hist�ria � alimentada pelo pr�prio interessado, que por vezes deixa insinuar que "la philosophie est une chose finie". Seus textos recentes, cada vez mais marcados pelo ritmo das interven��es no debate pol�tico-cultural, seriam a conclus�o mais patente da premissa.

Mas para aqueles que acompanham a obra de Paulo Arantes h� algum tempo, � imposs�vel n�o sentir que ele talvez esconda com uma certa ironia premeditada a melhor parte do seu jogo. Exemplo paradigm�tico aqui � seu mais recente livro Zero � esquerda (Conrad editores, 306 p�ginas); colet�nea de 17 artigos e entrevistas publicadas entre 1997 e 2003. O livro pode parecer a um leitor apressado apenas o saldo da interfer�ncia de um intelectual atento ao debate nacional dos �ltimos anos. Tanto que Zero � esquerda come�a com "Apag�o", an�lise dos "efeitos letais da intelig�ncia paulista no poder" na "Era Cardosista do Esclarecimento", e termina com "Beijando a cruz", segundo cap�tulo de uma hist�ria nacional de descompassos agora capitaneada pela ala sindical da intelig�ncia paulista.

Entre os dois extremos, an�lises cuidadosas de algumas das quest�es centrais para a compreens�o do capitalismo contempor�neo como: o cultural turn respons�vel pelo "processo de glamouriza��o da arte de amplo espectro mercadol�gico orquestrado pelos herdeiros dos movimentos radicais dos anos 1960"; o destino da categoria de "na��o"; os impasses da esquerda "oficial"; o novo capitalismo corporativo das marcas; o destino do potencial ut�pico e, principalmente, a psicopatologia cotidiana das elites locais.

Se assim for, a impress�o inicial de abandono filos�fico em prol da aproxima��o com uma certa "teoria cr�tica" nacional – que tem pais fundadores como Ant�nio Candido, Celso Furtado, Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira, entre outros – parece consolidar-se. No entanto, os textos de Paulo Arantes s�o como uma figura de Gestalt na qual uma percep��o atenta faz o fundo transformar-se em figura e vice-versa. A arquitetura filos�fica, impercept�vel em certos casos, pode subitamente mostrar-se como objeto maior. Basta levarmos a s�rio a suspeita leg�tima de que, entre o Paulo Arantes I (o te�rico da dial�tica hegeliana e seus desdobramentos) e o Paulo Arantes II (o cr�tico das forma��es terminais do capitalismo contempor�neo), a costura � muito mais forte do que as fissuras (fato que j� havia sido percebido por Bento Prado Jr.).

Ou seja, em Paulo Arantes encontramos n�o a ruptura, mas a reconcilia��o entre a reflex�o filos�fica e uma agenda cr�tica renovada capaz de abarcar as quest�es maiores do funcionamento do capitalismo contempor�neo e de suas esferas de valores. Nesse sentido, a an�lise da experi�ncia intelectual de Paulo Arantes abre caminhos ricos em desdobramentos para a orienta��o do pensamento nacional.

EXPOR A FRATURA BRASILEIRA DO MUNDO
Vale a pena, por exemplo, ler atentamente um dos textos principais desta colet�nea, "A fratura brasileira do mundo". Nele, Paulo Arantes parte de uma considera��o sociol�gica atual e amplamente aceita: a id�ia de uma "brasilianiza��o da sociedade" que estaria em marcha nos pa�ses centrais do capitalismo. Ironia suprema: "na hora hist�rica em que o pa�s do futuro parece n�o ter mais futuro algum, somos apontados, para mal ou para bem, como o futuro do mundo". Pois a no��o de brasilianiza��o aponta para a consolida��o de estruturas sociais duais que indicam a coexist�ncia e determina��o rec�proca do Centro e da Periferia no mesmo espa�o social; algo que qualquer habitante de uma metr�pole brasileira conhece muito bem. Clivagem que aparece como resultado maior de d�cadas de toyotismo e de implementa��o da ret�rica da "flexibiliza��o do trabalho" com o conseq�ente desmonte do sistema de seguridade social.

Mas Paulo Arantes sabe que, para que a brasilianiza��o da sociedade n�o passe por um simples desmonte de processos de moderniza��o, faz-se necess�rio que ela esteja acompanhada por um astuto esquema ideol�gico de legitima��o. Novamente, nada que um ouvinte atento � "conversa��o brilhante" dos c�rculos letrados da elite nacional n�o conhe�a. Esses mesmos c�rculos acostumados a sustentar o jarg�o civilizat�rio no interior da experi�ncia perif�rica da coexist�ncia sist�mica entre capitalismo e escravid�o.

Assim, o autor passa em revista o ide�rio contempor�neo da flexibiliza��o, da cr�tica desconstrucionista da raz�o falo-logoc�ntrica em defesa dos 'fluxos h�bridos' que conciliam contr�rios, do fim da sociedade de classes em prol da cren�a no advento de uma sociedade em rede movida pelo entra-e-sai meritocr�tico nas redes de aflu�ncia, entre outros. Mas ao configurar esse ide�rio que sustenta o advento de um certo "Novo Homem Flex�vel", Paulo Arantes n�o deixa de se sentir em casa. Pois a capacidade em conjugar opostos, aceitar paradoxos e transitar em uma realidade social "de risco" � uma velha conhecida de todo estudioso da mentalidade das elites diante das idiossincrasias nacionais.

Antonio Candido j� havia dado o nome correto do fen�meno: dial�tica da malandragem. Ou seja, posi��o de quem sabe que o descompasso entre id�ia e efetividade n�o � nenhuma trag�dia mas que, com um toque de raciocina��o letrada, pode transformar-se na com�dia da "l�gica nacional do amaciamento dos conflitos" e das passagens incessantes no contr�rio. Transforma��o do descompasso em pura e simples ironiza��o geral das condutas desprovida de qualquer sentimento de culpa pelo fracasso em realizar o projeto de ajuste entre vida mental e os processos sociais. Desta forma, no limiar do �ltimo est�gio do capitalismo global nos deparamos com a entroniza��o deste cinismo bem brasileiro dos que aprenderam a conjugar contr�rios por medo do trabalho do negativo.

IRONIA, DIAL�TICA E CINISMO
� neste ponto que tradi��o filos�fica e an�lise do capitalismo engatam-se. Pois aqui reencontramos em a��o o arcabou�o montado com maestria por Paulo Arantes para sua leitura materialista do advento da dial�tica em solo alem�o no s�culo 19 (ver "Ressentimento da dial�tica"). Um pouco como se tal arcabou�o tivesse sido montado, na verdade, para dar conta das idiossincrasias da realidade nacional. Segredo de polichinelo j� que, a um certo momento do livro, o autor reconhece: "quando descobri que o Brasil que estava estudando era uma sociedade nacional perif�rica, e que as sociedades nacionais perif�ricas, a partir do s�culo 19, tendiam a se assemelhar, como Portugal, Alemanha, R�ssia, Irlanda, It�lia, �ustria etc., isto foi uma mina de ouro".

Foi ao levar em conta a situa��o perif�rica da Alemanha do s�culo 19, marcada pelo "atraso" de um desenvolvimento desigual e combinado no interior do qual as id�ias parecem estar sempre em descompasso em rela��o a seus destinat�rios e � efetividade, que Paulo Arantes p�de fornecer a certid�o de nascimento da dial�tica hegeliana e de seu duplo: a ironia.

Discutir esta relativa proximidade descortinada magistralmente por Arantes entre dial�tica e ironia nos obrigaria a escrever um outro artigo. Mas fica aqui o v�nculo entre ironia e realidade perif�rica j� que a primeira � a posi��o que resta a quem n�o pode levar nada a s�rio por sentir a todo momento a dist�ncia entre a realidade social e os esquemas de racionaliza��o disponibilizados pelo ide�rio da modernidade.

Esta estetiza��o da clivagem – chamada ironia – foi o que levou Paulo Arantes a perceber na escrita de Machado de Assis (e agora seguindo as pistas de Roberto Schwarz) algo a mais do que uma mera pe�a avan�ada de estil�stica liter�ria. Pois a ironia de Machado n�o seria outra coisa que a descri��o do que ocorre quando "id�ias que nasceram autenticamente em uma etapa mais avan�ada do desenvolvimento social entram em uma na��o socialmente atrasada". Ela poderia dar em dial�tica se nosso "d�ficit de negatividade" n�o fosse t�o grande. No entanto, o resultado foi o puro e simples cinismo: uma figura bloqueada da dial�tica, se quisermos.

Mas, neste cinismo que tudo dissolve e que, atrav�s da raciocina��o brilhante, amacia os contr�rios, haveria ao menos algo de verdadeiro. A verdade de que o formalismo da civiliza��o liberal capitalista forjou valores que podem conviver com determina��es muitas vezes contradit�rias. A ideologia � uma quest�o de "abstra��o" ou, para falar com Lacan, um conjunto de significantes puros que, por n�o se referirem diretamente a nada, podem adequar-se ironicamente a qualquer determina��o emp�rica. Da� porque n�o faz sentido algum para Paulo Arantes pensar a a��o atrav�s do estabelecimento de crit�rios normativos reguladores de pr�ticas sociais ou, para falar claramente, de tentar enquadrar o pol�tico no interior de um ordenamento jur�dico com aspira��es �ticas.

Seu olhar dial�tico o imunizou contra qualquer tenta��o normativa, assim como contra toda falsa concilia��o em uma realidade mutilada. Desta forma, seu pensamento aparece, para aqueles que o acompanham, como o esfor�o incessante de procura pelo ato que poder� nos levar para fora desta dial�tica bloqueada. Seus ex-alunos agradecem.

Vladimir Safatle � professor de filosofia da
Universidade de S�o Paulo.
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