Construir
estradas com ruínas : A
estética do real de David Lynch Resumo: Trata-se de uma
leitura da sequência A estrada perdida e Mullholand Drive, de
David Lynch, que visa levar em conta o lugar ocupado elo conceito de
“experiência do Real” na organização dinâmica das duas narrativas. Palavras-chaves : David Lynch,
real, sexo, des-identidade, road-movie Mène-moi vers la vie
Au-delà
de la grille basse Qui me
sépare de moi même Qui
divise tout sauf mes cendres Sauf la
terreur que j’ai de moi. Paul Éluard“Você nunca me terá”. Ela
diz esta frase depois de transar com ele na frente de um carro estacionado com
faróis ligados. Depois, ela entra em uma barraca de beira de estrada para
desaparecer de uma vez por todas. Ele muda de persona e a segue até a barraca.
Mas, lá, só encontra um homem com maquiagem de quem acabou de sair de filmes de
terror série B. Um homem com câmera em punho que grita : “Afinal qual é o seu
nome ?”. Esta não é uma pergunta tão fácil quanto poderia parecer. Como
veremos, sua dificuldade vem da frase que ainda ressoa na cabeça deste
personagem que não pode responder pelo seu nome : “Você nunca me terá”. Ela
talvez nos dirá porque só um tempo como o nosso poderia produzir um filme como A estrada perdida. Diz-se normalmente que Lynch transformou-se em um
cineasta obscuro, destes que amam narrativas que se dissolvem em um emaranhado
de labirintos e falsas pistas. Mas podemos dizer também que ele é alguém que
deixa muito claras suas intenções. Por exemplo, em um certo sentido, a história
de A estrada perdida é banal. Ela é dividida em duas. Na primeira, o
saxofonista Fred Madison assassina sua mulher misteriosa, Renée. Entre os dois,
pairava uma atmosfera de silêncio catastrófico e traição feminina. Fred não
lembra do assassinato. Ele só tomou conhecimento através de um video feito por
alguém que entrou em sua casa e o filmou no momento em que estava de joelhos,
no quarto, ao lado do corpo estraçalhado da mulher. Na segunda parte, o
mecânico Pete Dayton começa a ter um
caso com Alice : amante de Mr. Eddy/ Dick Laurent, gangster-produtor de filmes
pornográficos. Laurent descobre o caso e Alice convence o mecânico a fazer um
assalto e fugir com ela em direção ao deserto. Lá, no meio do deserto, ela
desaparece depois de transar com Pete. O material narrativo é banal, mas a composição não. Toda
a peculiaridade de A estrada perdida está neste tensão entre elementos
apodrecidos da linguagem cinematográfica e processos de composição capazes de
provocar estranhamento diante daquilo que era muito visto[1].
São eles que vão tecendo a costura entre as duas histórias no interior do
filme, são ele que vão duplicando detalhes e personagens (Fred Madison/Peter
Dayton; Renée/Alice) criando uma espécie de banda de Moebius vertiginosa na
qual o verso transforma-se necessariamente no reverso. Mas a complexidade das duplicações de Lynch é relativa
pois submete-se a um modelo geral de organização. Neste sentido, o título, A estrada
perdida, não poderia ser mais didático e indicativo. Ele remete
necessariamente a um road-movie, mas sem esquecer de lembrar que se
trata de um road-movie fracassado : história de alguém que se perdeu no
meio do caminho. Aqui, já estamos
diante de um dos elementos centrais dos filmes de Lynch : a estrada. Ela não
está presente apenas em A estrada
perdida, de 1997. Coração selvagem e
Um história real¸ só para ficar entre
os mais evidentes, são filmes estruturados como um road-movie. Mullholand drive, que foi apresentado como a continuação de nosso filme, também é
algo como um road-movie, e não é por
acaso que placas de trânsito, indicações de ruas e outros sinais de
deslocamento aparecem de maneira tão recorrente no filme[2].
Mas aqui vale a
pergunta : o que é exatamente um road-movie
? Podemos dizer que ele é,
antes de qualquer coisa, o sucedâneo contemporâneo dos antigos romances de
formação. Nós seguiremos alguém que irá fazer uma viagem e chegará ao seu
destino, mas neste trajeto ele irá se deparar com um acontecimento que destruirá seu antigo e limitado horizonte de
compreensão. Desta destruição, ele sairá transformado em outra pessoa. Depois
desta viagem, ele encontrará o verdadeiro ponto de chegada e nunca mais
será o mesmo, ele mudará de identidade. Dito isto, A estrada perdida é o road-movie
perfeito ou, talvez, o único road-movie
sobre a impossibilidade de um road-movie. Sendo A
estrada perdida um road-movie faremos pois três perguntas centrais :
Qual o ponto de chegada ? Qual o acontecimento ? Qual impetus move
o trajeto ? Elas vão nos permitir encontrar os pontos fixos que estruturam a
narrativa do filme. Comecemos pela
primeira pergunta. Dick Laurent is dead
“Dick
Laurent is dead”. Quando Fred Madison ouvir esta frase no interfone de sua casa, o filme
começará. Quem a pronunciou, ninguém sabe. Durante quase todo o filme este será
um enunciado sem enunciador, uma voz sem corpo. Mas esta frase será uma espécie
de fórmula capaz de organizar o sentido da ação cinematográfica, tal como o
imperativo “The slepper must awake”
repetido ad infinitum em Duna. Quem é Dick
Laurent ? Isto nos só saberemos na segunda parte do filme : um gangster,
empresário da indústria pornográfica e que nutre uma relação “paternal” com
Pete, aquele que ocupará o lugar de Fred Madison. Figura, ao mesmo tempo, paternal e obscena :
esta conjunção não pode nos deixar indiferentes. Ela aparece em vários filmes
de Lynch. Suas figuras de autoridade sempre estão no exato ponto onde a
enunciação da Lei e assunção do gozo se
cruzam. Neste sentido, nada mais emblemático do que a cena na qual Dick
Laurent, dirigindo seu carro na velocidade definida pela Lei, é ultrapassado
por um motorista apressadinho. A punição virá sem perdão : o motorista será
jogado fora da estrada, arrancado de seu carro, colocado de joelhos com uma
arma apontada para sua cabeça enquanto Laurent espanca-o gritando que ele é um
irresponsável por correr daquele jeito, que ele deveria aprender a respeitar a
Lei já que 30% dos acidentes de estrada acontecem em situações como aquela. A
enunciação da Lei aparece com forma suprema de realização de um gozo sádico. Matar Dick
Laurent é pois uma forma de procurar suspender esta Lei que esconde um gozo
obsceno em suas entrelinhas. Desejo de revelação que encontramos em outros
filmes de Lynch. O que é a história do seriado de televisão Twin Peaks, por
exemplo, a não ser o processo aparentemente infinito de dissolução da imagem de
ordem e virtude de uma pequena cidade nas Montanhas em um emaranhado de modos
inconfessáveis de gozo ? Como se o verdadeiro desejo de Lynch fosse desvelar a
máquina desejante que se esconde por trás das formações da Lei. Um pouco como
Joseph K., o herói kafkiano de O processo, que, ao entrar no tribunal e
enfim conseguir folhear as páginas do livro da Lei, só encontra desenhos
pornográficos. “Dick
Laurent is dead”. Quando esta frase for repetida, quando o mesmo Fred Madison enunciá-la
em seu interfone e “falar a si mesmo”, o filme terá terminado. O trajeto estará
completo : a mensagem parece encontrar um enunciador[3].
Fred parece ter feito aquilo que ele estava destinado a fazer, ocupado o
lugar que, desde o início, era seu; mesmo que ele não o soubesse. Mas talvez
“completo” não seja a palavra exata, pois alguma inadequação radical continua
impelindo o personagem a continuar em sua estrada perdida. Mesmo depois de Dick
Laurent morto, Fred Madison não realizou plenamente seu destino. Assim, se o
tema clássico de um road-movie consiste em mostrar o trajeto através do
qual um sujeito deve atravessar para “tornar-se o que se é”, para usar uma
expressão de Nietzsche, assumindo a enunciação de seu verdadeiro caminho, A
estrada perdida nos conta a história deste trajeto bloqueado que vai de si
a si mesmo, desta impossibilidade da voz autônoma que ressoa como um destino
assumir o corpo escolhido para encarná-lo. Como já disse, história de um
processo de formação, ou do fracasso dele. As mulheres de David Lynch Sendo assim, devemos nos perguntar pelas causas deste
fracasso, o que nos coloca a cata do acontecimento fundamental que faz com que
Fred Madison perca o mapa que poderia guiá-lo no seu caminho. É verdade que o
filme parece, de uma certa forma, começar tarde demais. Desde o início, o clima
é pesado, os diálogos e olhares que circulam entre Fred e Renée, sua mulher,
são secos e difíceis; tem-se a impressão de que algo de aterrador já aconteceu.
O acontecimento parece já ter tido lugar. Mas se olharmos para os outros filmes de Lynch,
encontraremos uma indicação preciosa que poderá nos guiar : todos os
acontecimentos acontecem pelas mãos de mulheres. Em Veludo Azul, o
trajeto de Jeffrey em direção à uma experiência capaz de romper com as certezas
menores de seu mundo estável de cidade pacata do interior norte-americano será
impulsionado pelo encontro com Dorothy Vallens, uma misteriosa cantora de
cabaré que não deixa de nos remeter a mesma constelação semântica de
fragilidade e sedução de Renée/Alice. Seu caminho vai levá-lo ao quarto de
Dorothy onde, escondido dentro de um armário, ele descobre o ritual masoquista
e incestuoso que a liga a Frank: um bandido violento e impotente. Ao se deparar
com esta negatividade que marca tudo o que é da ordem do sexual, Jeffrey poderá
completar seu destino. Sexo aparece aqui como lugar de verdade. Como ele
aparecerá mais tarde em Mullholand drive, já que será apenas depois que
a jovial e deslumbrada Betty transar com Rita (mais um destes personagens
femininos marcados pelo mistério, na linhagem Dorothy Vallens – Renée/Alice )
que seu mundo de sonhos dará lugar a um Teatro de Ilusões que, para ela, terá o
valor de um Teatro de horror : única forma de uma experiência da ordem do real
poderá se fazer sentir. Em
A estrada perdida, o procedimento não é diferente. Lembremos primeiro
que a razão pela qual Dick Laurent deve morrer é simples : ele está entre Pete
e Alice (mais tarde ele aparecerá transando com Renée). Ele priva Pete do gozo
de Alice e matá-lo é a única forma alcançá-la. Mas esta questão ligada à
privação do gozo parece perpassar alguns momentos centrais de A estrada
perdida. Assim, na primeira parte do filme, vemos um Fred Madison atônito e suado tentando transar com
Renée. As imagens são em câmara lenta para sublinhar o corpo como carne.
Infelizmente, o resultado final será alguns tapinhas nas costas e um consolador
: “It’s ok, it’s ok”. O chão se abre entre Fred e o gozo de seu objeto de desejo.
Uma fenda tão grande quanto aquela que o separa definitivamente de si mesmo. Mas este não parece ser o problema de Pete. Ao contrário,
como dirá o policial escalado para vigiá-lo: “Onde ele consegue arrumar tantas
bucetas ?”. Sim, ao contrário de Fred, Pete sabe como fazer. Ele sabe tão bem
que acaba por se apaixonar por aquela que é a mulher reduzida a sua mera
condição instrumental : a atriz de filme pornográfico. Mulher reduzida à
condição de suporte imaginário de fetiches. Só que esta mulher reduzida à sua
própria imagem, sempre disponível em qualquer locadora e prêt-à-jouir será
exatamente aquela que dirá : “Você nunca
me terá”. Pete apaixonou-se por uma imagem que esvai-se no deserto, assim como
Fred não sabe o que fazer com a carne de mulher que ele tem nas mãos. Todas as
duas os levaram para uma estrada perdida. Neste sentido, matar Dick Laurent nunca poderia levar
Fred/Pete a alcançar aquilo que daria um pouco de estabilidade à sua procura.
Pois este objeto é essencialmente vaporoso, trompe l’oeil feito de
imagens e projeções. A estrada perdida conta assim a história da
descoberta de quão opaco são os objetos aos quais o desejo teima em se
vincular. Descoberta que nos leva a um encontro traumático com a
impossibilidade de terminar o trajeto da viagem. Um encontro traumático com um
destino que só pode se realizar como queda. Filmar
com ruínas : a estética do real nos anos 90 Esta história de objetos fugidios e de atrizes pornôs
escorregadias não seria tào emblemática se ela não estivesse ligada a algumas
questões centrais do cinema dos anos 90. O cinema dos anos 90 viu um
movimento geral que poderíamos chamar de “retorno ao real”. Contrariamente a
estética hiper-plástica e publicitária do anos 80 (neste sentido, nada mais
ilustrativo do que Mauvais sang, de Léo Carax e Diva, de
Jean-Jacques Beinex), os anos 90 teriam sido marcados por uma promessa de
retorno ao real conjugada de muitas maneiras. Lars von Trier e seus amigos, por
exemplo, expuseram uma das facetas deste retorno através do manifesto Dogma com
seus imperativos de captar as imagens em sua crueza “originária”. Um projeto
estético necessariamente acompanhado por conteúdos “transgressores” que visavam
desvelar a perversão que se escondia por trás da lei paterna (Festen, de
Thomas Vitemberg), ou ainda, revelar a estupidez e o cinismo como último
recurso contra as frustrações da vida social (Os idiotas, Lars von
Trier). Os irmãos Dardenne (palma de ouro/2001 com Rosetta) levaram uma
atriz amadora a repetir o cotidiano des-estetizado e insuportável de uma garota
belga pobre a procura de emprego. Nós podemos dizer que, a partir de A estrada perdida, o
projeto estético de David Lynch mostra-se absolutamente engajado nas
coordenadas de um “cinema do real”, mas seu engajamento obedece a uma lógica
totalmente peculiar, algo muito distinto do jargão da espontaneidade de
Trier. Notemos como, em A estrada perdida, todos os
personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos dá a impressão de ter
saído de um filme que já vimos: o “Homem misterioso” usa pancake, maquiagem de
olhos e roupa preta como qualquer
vampiro barato de filme de baixo orçamento, os policiais são estúpidos como
todos os policiais, o amante/ cafetão de Renée, Andy, tem pele bronzeada e bigode
fino como todo amante latino, isto ao menos segundo as leis de Hollywood. Os
personagens são carregados demais e as vezes parecem apenas repetir falas e
desempenhar papeis que todos sabem gastos. Tudo parece ter sido reaproveitado,
como em uma liquidação de antigos clichês da história do cinema que já não
funcionam direito. Desta forma, Lynch filma com ruínas da
gramática do imaginário cinematográfico. Este é um dos pontos de genialidade do filme e que diz
respeito ao processo geral de criação de David Lynch. Trata-se de abrir espaço
para uma experiência do real através da repetição mimética de uma realidade
fetichizada. Na mão de outro cineasta, estas histórias de um mecânico que se
apaixona pela amante do velho gangster, ou do marido atormentado que assassina
a própria mulher sem lembrar-se de nada viraria uma história trivial. Mas Lynch
sabe que estas histórias não podem mais ser contadas - elas estão gastas demais
- e trata-se de mostra isto a todo momentoo. A forma da estrutura narrativa nega
o conteúdo da história que ela deveria suportar. É deste conflito que vem a
impressão irredutível de estranhamento própria a A estrada perdida. Vivemos em um mundo onde investimos
libidinalmente ruínas. Neste sentido, Lynch nos oferece uma via de sublimação
ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de
desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir
instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais
nada. O que era muito familiar deve
transformar-se em estranho. Estratégia que abre espaço à experiência do real
através do embaralhamento das noções de identidade e semelhança que estruturam
nosso universo estável de referências, Um procedimento que Lynch levará
posteriormente ao extremo em Mullholnad drive. Encontrar
o real : de A estrada perdida à Mullholand drive Como já disse, Mullholand drive foi apresentado como uma espécie de
continuação de A estrada perdida. Não que se trate da resolução da
narrativa. Os dois enredos são totalmente distintos. Mas, de uma certa forma, Mullholand
drive avança um pouco mais neste caminho já aberto pelo seu antecessor. Da mesma maneira
que em A estrada perdida, costuma-se dizer que Mulholland Drive
não tem uma história. Novamente, se analisarmos bem, veremos que o filme tem
uma história que chega a ser relativamente simples. Betty Elms chega a
Hollywood vinda de uma pequena cidade do Canadá. Ela quer ser alguém: "Uma
atriz ou uma estrela", é o que ela diz. Seu corpo recém-egresso da
adolescência denuncia a vontade de chegar a portar aquilo que faz de uma mulher
um objeto de desejo. Durante dois terços do filme ela não cansará de repetir
que tudo está correndo como em seus sonhos. Tudo se passa como uma viagem que
apenas repete as imagens perfeitas do folheto de turismo. Mas Betty
encontra uma mulher que parece saída dos filmes de Rita Hayworth. Ela não sabe
de onde veio, seu nome é falso, sua memória foi apagada em um acidente de
carro. Tudo o que ela tem é uma bolsa cheia de dólares e uma chave azul. Nada
mais previsível: uma quer ser alguém, a outra não sabe quem é mas tem beleza
cinematográfica, trejeitos de estrela e dinheiro, ou seja, tudo o que faz
alguém ser. Na verdade, uma quer ser aquilo que a outra já é sem saber. Mulholland Drive funciona assim
como um road movie de mão dupla: uma mulher quer construir uma história
do presente para o futuro, a outra quer reconstituir sua história do presente
para o passado. Entre as duas há um filme que deve ser feito, mas ninguém se
entende sobre quem deve ocupar o lugar da atriz principal. Por enquanto, o
lugar da mulher está vazio. A atriz foi dada como morta. Mas o filme deve
continuar e alguém deve vir ocupar o lugar que ficou vazio, mesmo que para isso
devamos preenchê-lo com personagens que estão apodrecendo. "Não faça
parecer real, até que se torne real". Este é o conselho que o diretor de
cinema deu à garota que foi fazer seu primeiro teste para tornar-se uma atriz.
E, realmente, durante dois terços do filme, nada parece real em Mulholland
Drive. Novamente, todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um
nos dá a impressão de ter saído de um filme que já vimos: o diretor de cinema
usa roupa preta e óculos de intelectual como todo diretor de cinema, os
policiais estúpidos como todos os policiais retornam, os managers da
indústria cinematográfica são mafiosos como todos os managers. Os
personagens são carregados demais e às vezes parecem lutar contra qualquer
coisa de sobre-humano para poderem repetir suas falas e desempenhar seus
papéis. Mas há uma
impressão ainda mais forte que atravessa Mulholland Drive. É difícil não
nos sentirmos diante de um filme que, de uma certa forma, já deveria ter
acabado. Nesse sentido, a cena paradigmática é o primeiro teste de Betty Elms
na sua trajetória para ser alguém. O produtor do filme é um velho arruinado, o
galã com o qual ela deverá atuar é um sessentão com bronzeado estilo Miami
Vice, o diretor do filme é alguém que está repetindo a mesma coisa há anos.
Betty Elms parece ter chegado tarde demais, seu filme ficou velho. Da mesma
forma que nossos filmes ficaram velhos demais. Os quadros de sociabilização se
mostram incapazes de suportar uma produção de identidade sem produzir um resto
que não se enquadra em cena alguma. No entanto, se Mulholland Drive é um road movie,
então para onde ele irá levar Betty Elms? Para o mesmo lugar que Lynch levou
Fred Madison/Pete Dayton. Para um encontro traumático com um destino que só
pode se realizar como queda. Se voltarmos ao momento-chave no qual Pete transa
com esta imagem de mulher ideal que ele vê desaparecer (para ficar em seu lugar
apenas um homem misterioso que aponta uma câmera em sua direção, como um olhar
que retorna a si mesmo depois da dissolução do objeto), então veremos que Mullholand
drive traz uma cena estruturalmente idêntica. Trata-se deste momento no
qual Betty Elms está deitada na cama, pronta para dormir, enquanto Rita (que
não é uma atriz pornô, mas é a representação perfeita de outro estereótipo : a Gilda
do cinema noir) está là, encostada na porta, nua e envolta apenas por uma
toalha. "Por que você não vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos
depois as duas estarão transado. "Esta é a primeira vez que você faz
isto?", pergunta Betty. "Eu não me lembro", diz Rita. Mas nós
sabemos que é a primeira vez que Betty faz isto. E depois disto feito ela não
poderá mais voltar atrás. Rita terá um sonho: "No hay banda, No hay
orquestra", é o que ela dirá enquanto dorme. Ao acordar, ela levará Betty
a um Teatro de Ilusões chamado Silêncio. Tal como em A estrada perdida, sexo
aparece novamente aqui como lugar de verdade. No Teatro, um
ilusionista está no palco repetindo as mesmas palavras : "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion". Quando ela ouve
tais palavras, Betty treme como se estivesse possessa ou dentro de um terremoto
que indica como todo seu universo está desmoronando. Mas Lynch não parece muito
interessado em simplesmente fazer uma forma de crítica ao fetichismo ao mostrar
que corremos atrás de imagens que, no fundo, são ilusões. Seu jogo é outro e
muito mais radical. Ele se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do
ilusionista. Ela irá cantar a capella uma
velha cançào de amor. Mesmo tendo sido advertida que tudo seria ilusão, que
tudo certamente se tratava de um play-back, Betty e Rita choram
compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simulações e imagens
gastas algo acontece. Em meio a uma
artificialidade que não teme em dizer seu nome uma experiência da ordem do real
enfim tem lugar. Esta experiência não é a revelação de algo perdido ou de uma
espontaneidade originária massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela é o
estranhamento daqueles se vêem investindo libidinalmente ruinas, daqueles que
se vêem cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma
imagem perfeita. "It's just a illusion", sim, eu sei, mas não posso
me impedir de chorar. E esta é talvez a grande lição que David Lynch tem a nos
dar: toda arte autêntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que só
haverá experiência do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de
ilusões. Mas Betty não realizou seu destino, da mesma forma que
Fred Madison. Eles são ninguém, seus road-movies
não chegaram a lugar algum. Tudo o que Fred pensa em fazer é assassinar
aquela imagem que nunca será sua (Renée) ou aquele Outro que parece ter o que
ele gostaria (Dick Laurent). Para ele, a experiência do real foi uma
experiência de destruição. Mas para Lynch, ela foi uma sublimação. Porque o
desejo de Fred Madison continuou preso
ao mesmo sistema de imagens em decomposição que o aprisionou e o
constituiu; enquanto que David Lynch nos mostrou que o único destino possível
para nós consiste em aprendermos a construir estradas com ruinas. Vladimir Safatle, Professor de
filosofia da USP e encarregado de cursos no Collège International de
Philosophie – Paris.
[1] Uma indicação de tais processos nos é fornecida pelo próprio Lynch
em uma entrevista : “Se o diálogo luta contra a ambiência, então está perfeito
“ (Entrevista com David Lynch, Cahiers du cinéma, n. 509, janeiro de 1997).
Princípio de inadequação que será elevado a condição geral de composição [2] Sobre Mullholand drive como road-movie, tomo a liberdade de remeter a um artigo meu , “Road-movie em ruinas” (Correio Braziliense, 01/10/2002), também disponível em www/geocites.com/vladimirsafatle. [3] Como nos lembra Zizek : “Nós temos uma situação circular – primeiro a mensagem que é ouvida mas não compreendida pelo herói, depois o próprio herói pronunciando a mensagem. Em breve, todo o filme é baseado na impossibilidade do herói encontrar a si mesmo , como na famosa cena de armadilha do tempo em filmes de ficção científica onde o herói, viajando de volta ao passado, encontra a si mesmo “ (ZIZEK, The ticklish sujet, Londres, Verso, 1999, p. 299) |