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Estética do real:

Pulsão e sublimação na reflexão lacaniana sobre as artes

 

Por amor  à felicidade, renuncia-se à felicidade.

Assim sobrevive o desejo na arte.

Adorno

 

Psicanálise e arte : história de um fracasso?

 

Os modos de relação entre psicanálise e arte são, ainda hoje, problemáticos. Se nos restringirmos, por exemplo, ao recurso freudiano à estética, é difícil não seguir Badiou em sua afirmação : “A relação entre psicanálise e arte é sempre um serviço oferecido apenas à psicanálise. Um serviço gratuito da arte” (BADIOU, 1998, p. 18).

Uma análise do lugar ocupado pelas considerações sobre a estética na economia do texto freudiano nos demonstra o tipo de serviço gratuito que a arte pode oforecer a psicanálise. Se Freud chega a afirmar que os escritores são aliados preciosos é porque, para ele, há dois campos de exposição fenomenal de conceitos metapsicológicos : a clínica e a análise das produções culturais (estética e teoria social). Este dois campos se colocam como campos de legitimação  do saber analítico; no entanto, apenas a clínica funciona claramente como um campo indutor de produção de conceitos metapsicológicos[1]. Freud nunca modificará a estrutura de um conceito metapsicológico ou de um processo de subjetivação analítica porque ele teria se mostrado insuficiente para apreender as produções estéticas. A despeito disto, o mesmo sistema de interpretação mobilisado na apreensão analítica do material clínico estará guiando a apreensão do material estético. Neste sentido, Freud não reconhece nenhuma resistência específica do material estético ao esquema interpretativo da psicanálise. Este material será submetido a uma procura arqueológica de sentido que visa desvelar a racionalidade causal do fenômeno estético ao reconstruir uma espécie de texto latente que estaria obliterado pelo trabalho do artista. Um texto no qual se pode ler motivos psicanálisticos maiores, como o complexo de Édipo e a teoria da sexualidade infantil[2]. Assim, através do sorriso dos quadros de Leonardo, Freud descobrirá os traços dos fantasmas orginários ligados a figura da mãe fálica. Atrás dos Irmãos Karamazov,  o psicanalista verá a revelação do conflito edípico com sua ameaça de castração vinda do pai.

É verdade que Freud afirma claramente  que o analista pode apenas depor as armas diante do problema do criador literário. Mas a proposição indica aquilo que ela quer indicar, ou seja, não é possível à análise compreender porque certos sujeitos são mais aptos que outros para sublimar seus conflitos pulsionais produzindo obras de arte reconhecidas socialmente. Freud chega a aproximar o criador literário e o sonhador diurno a fim de pensar a escritura como formalização de fantasmas (Phantasie). Isto o permite, por exemplo, sempre encontrar na ante-câmara da escritura : “Sua majestade, o Eu, herói de todos os  sonhos diurno (Tagträume) e de todos os romances” (FREUD, 1999 VII, p. 220)[3] (o que dificulta a análise das escrituras do descentramento como, por exemplo, a vanguarda modernista). Mas ele também nada dirá a respeito do estabelecimento de um sistema de análise dos modos de sublimação pulsional. Saber passar da particularidade do fantasma à universalidade da obra, eis aquí o “segredo mais íntimo” (FREUD, 1999 VII, p. 223) do criador literário diante do qual o trabalho psicanalítico encontra seu termo.

No entanto, o reconhecimento de um limite à análise dos processos criativos não significa o reconhecimento de limites à interpretação psicanalíticas das obras. O entrelaçamento entre estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de visibilidade integral das obras. Neste sentido, não é casual que a maioria das análises freudianas de obras de arte obedeçam normalmente a uma análise semântica de conteúdo que não dá lugar, ou que secundariza, a análise das estruturas formais em sua dinâmica interna, assim como as considerações sócio-históricas sobre as obras.

“Eu percebi constantemente”, dirá Freud, “que o conteúdo (Inhalt) de uma obra de arte me apreende mais que suas qualidades formais e técnicas” (FREUD, 1999 X, 172).  Este comentário inocente é, na verdade, a exposição de todo um programa estético. Trata-se de revelar o pensamento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo Freud, é a “intenção do artista” [Absicht des Künstlers], ou seja, seus desejos inconscientes e suas monções pulsionais) através do ato de: “descobrir (herausfinden) o sentido e o conteúdo do que é representado (Dargestellten) na obra de arte “ (FREUD, 1999 X, p. 173).

A psicanálise teria pois a tarefa de desvelar a verdade da forma estética, pois a obra não coincide com sua letra, sua essência está em um Outra cena na qual se desvela seus esquemas de produção e que exigiria uma leitura de profundidade. Como dirá Adorno, este programa é na verdade uma crítica estética de orientação hermenêutica: “Como ela [a psicanálise freudiana] considera as obras de arte essencialmente como projeções do inconsciente destes que a produziram, ela esquece as categorias formais procedendo a uma hermenêutica dos materiais (Hermeneutik der Stoffe)” (ADORNO, 1973b. p. 19). Podemos falar em uma hermenêutica porque estamos diante de um regime estético que submete a racionalidade das obras a uma noção de interpretação pensada sobretudo como decifragem de signos, o que pressupõe uma compreensão semântica da aparência estética. Tal decifragem coloca as categorias ligadas aos complexos psíquicos como o campo estrutural privilegiado de significação possível do material.

No que concerne Lacan, sua posição é mais complexa pois articulada em uma dupla via. Ao falar sobre Marguerite Duras, Lacan diz: “A única vantagem que um psicanalista tem o direito de exigir a partir de sua posição é a de lembrar-se, juntamente com Freud, que na sua matéria o artista sempre o precede e que ele não deve bancar o psicólogo quando o artista abre-lhe o caminho” (LACAN, 2001, pp. 192-193). Novamente, a proposição diz o que ela quer dizer. A recusa lacaniana concerne o desenvolvimeto de uma psicologia do artista, o que não lhe impede de estranhamente recorrer à biografia de James Joyce para encontrar, na sua relação com a carência paterna através do suplemento à Verwerfung do Nome-do-Pau, a raiz dos problemas presentes na estilística da sua escritura[4]. Mas esta recusa em entrar completamente no domínio da psicologia do artista não significa necessariamente reconhecimento da resistência do material estético aos procedimentos interpretativos da psicanálise. Há, em Lacan, dois regimes de recurso psicanalítico a arte e devemos saber distinguí-los.

O primeiro modo nos envia a uma interpretação do material estético como desvelamento da gramática do desejo. O comentário lacaniano sobre A carta roubada, é, neste sentido, paradigmático; mas devemos lembrar também as análise de Hamlet, de O balcão, de Genet e de O despertar da primavera, de Wedekind. Nestes casos, o material estético é  tratado como espaço de organização de uma gramática do desejo pensada principalmente através dos dois operadores maiores da clínica lacaniana: o Falo e o Nome-do-Pai. Assim, a arte aparece novamente como campo legitimador da metapsicologia.

            Quando lê o conto de Poe,  Lacan diz procurar: “ilustrar a verdade do momento do pensamento freudiano que estudamos” (LACAN, 1966, p. 12). O psicanalista mostra então a distinção entre os campos do Imaginário e do Simbólico através do comentário sobre as duas cenas que dão corpo ao conto. Ele segue o trajeto da letra para mostrar como o automatismo de repetição significante determina o sujeito até deixá-lo em uma posição feminina. Mas Lacan nunca analisará a a estrutura estilística da escritura de Poe, nunca questionará o lugar da obra no interior da cadeia composta pelas outras obras do escritor e nunca problematizará os procedimento de negociação entre a obra e a singularidade do seu momento sócio-histórico.

É verdade que Lacan não quer cometer : “este frotti-frotta literário através do qual se denota o psicanalista em mal de invenção” (LACAN, 2001, p. 12). Mas isto não nos impede de constatar que, ao se servir da literatura para mostrar a amplitude dos conceitos metapsicológicos, Lacan deixa em aberto a questão de saber qual a contribuição de tal operação para a compreensão da obra como acontecimento singular. Neste sentido, podemos mesmo perguntar se não estamos novamente diante de uma hermenêutica dos materais que constrói efeitos de sentido e oblitera, uma vez mais, a reflexão sobre os modos de resistência do material estético aos procedimentos de interpretação. A obra comparece como mera ilustração da conceitografia analítica.  

            Mas devemos lembrar que há em Lacan um outro regime de recurso psicanalítico a arte. Tal regime não visa expor um método de interpretação da gramática do desejo, mas ele estrutura-se em torno do problema do estatuto próprio ao objeto estético em sua irredutibilidade. Assim, a respeito dos seus inumeráveis recursos a pintura, Lacan dirá: “É no nível do princípio radical da função desta bela arte que procuro me colocar” (LACAN, 1973, p. 101). Ao procurar um “princípio radical da função da arte”, Lacan procura, na verdade, coordenadas que lhe permitam compreender a especificidade da formalização estética e de seus modos de subjetivação. Tais reflexões podem nos fornecer um verdadeiro programa de definição de fenômenos estéticos a partir das considerações lacanianas.

            Na verdade, devemos estar atentos ao fato da formalização estética poder aparecer para Lacan como modo de apreensão de objetos que resistem aos procedimentos gerais de simbolização reflexiva com sua pressuposição de ampliação hermenêutica do horizonte de compreensão da consciência. Daí afirmações como :  “aquilo a que nos dá acesso o artista, é o lugar do que não se deixa ver : resta ainda nomeá-lo” (LACAN, 2001, p. 183). Como veremos, as reflexões sobre a visibilidade da imagem estética, sobre a sublimação e sobre a letra nos permitem compreender como que, para Lacan, a arte poderia nomear o que não se deixa ver, isto ao mesmo tempo em que guarda sua opacidade. Saímos assim da procura freudiana em fundamentar um horizonte de visibilidade integral das obras através do desvelamento da sua estrutura pulsional de produção. Em Lacan, a arte pode aparecer como modo de formalização da irredutibilidade do não-conceitual, como pensamento da opacidade.

            Esta especificidade presumida da formalização estética, especificidade que como nos dizia Merleau-Ponty em um texto importante para a formação do pensamento lacaniano sobre as artes, é : “abertura às coisas sem conceito” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 43), tem uma raiz clara. Ao insistir na gênese das obras de arte a partir da sublimação das monções pulsionais, a reflexão psicanalítica sobre as artes é obrigada a recuperar a centralidade da categoria da expressão na compreensão da racionalidade dos fenômenos estéticos. A defesa freudiana de que o pensamento da forma estética estaria vinculada a uma espécie de intencionalidade inconsciente do artista é apenas um desdobramento problemático de tal centralidade. No entanto, Lacan é responsável por uma reforma do conceito de pulsão, em particular através da reconstrução da noção de objeto da pulsão. Tal reforma traz necessariamente consequências para a configuração da expressão e de suas possibilidades construtivas. Como veremos, a partir de então, a expressão, pensada através de um esquema peculiar de sublimação pulsional, só poderá se realizar ao levar o sujeito a colocar-se como  “consciência de ser em um objeto” (LACAN, 2001, p. 195), mas em um objeto no qual ele não reconhece mais sua imagem, formadas por identificações e antecipações imaginárias. Um objeto que mostra o que resta do sujeito quando a fortaleza do eu se dissolve. Na verdade, esta figura da arte permitiria ao sujeito reconhecer, na sua relação a si, algo da ordem da opacidade do que se determina como ob-stante (Gegenstande), como não saturado no universo simbólico. Veremos o que isto pode significar.

            Mas antes de iniciar tal trajeto, lembremos de nos perguntar sobre a função das reflexões sobre as artes no interior do projeto lacaniano. Colocar esta questão serve para indicar que não se trata mais aqui de pensar a reflexão psicanalítica sobre as artes como campo de legitimação das construções metapsicológicas, mas de afirmá-la como campo indutor de modos de subjetivação na clínica. Isto levará Lacan a repensar os modos de subjetivação disponíveis à clínica a partir de uma certa configuração da reflexão estética sobre a arte. Para melhor compreender este ponto devemos inicialmente perguntar o que deve acontecer ao objeto estético para que ele possa colocar-se como objetivação de um sujeito que não deve mais reconhecer-se na imagem do eu. Ou seja, devemos nos perguntar sobre o que deve acontecer ao objeto estético para que ele possa colocar-se como objeto da pulsão. Uma análise prévia do conceito lacaniano de pulsão é pois necessária.

 

A morte como pulsão

 

"Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte " (LACAN, 1966, p. 848). Esta é a afirmação central para a compreensão da figura lacaniana da pulsão e é ela que nos fornece o eixo do entrelaçamento lacaniano entre estética e pulsional com sua peculiaridade.

Lembremos primeiramente que Lacan tende a operar na clínica com uma modalidade muito particular de monismo pulsional e não é por acaso que a pulsão aparece no singular. Lacan não teme em reduzir o caráter unificador da pulsão de vida a uma mera ilusão narcísica[5]. No entanto, afirmar que Eros é uma ilusão narcísica o obrigou a pensar os processos de cura a partir da pulsão de morte e do seu regime privilegiado de manifestação : a compulsão de repetição (Wiederholungszwang).

Esta mudança de orientação nos explica porque a pulsão de morte lacaniana não é exatamente idêntica ao seu homólogo freudiano. Para Freud, a pulsão de morte indica um : "impulso (Drang) inerente ao organismo vivo em direção ao restabelecimento de um estado anterior "(FREUD, 1999 XIII, p. 38) inanimado. Expressão da inércia na vida orgânica, este tendência ao restabelecimento manifesta-se principalmente através da figura da compulsão de repetição compreendida como movimento de retorno em direção à morte orgânica, como forçagem repetitiva da morte que insiste para além do princípio do prazer.

O lugar da pulsão de morte na clínica freudiana é complexa. Lembremos apenas que, em um texto da fase final como Análise finita e análise infinita, Freud se pergunta se há limites para o domínio (Bändigung) das pulsões – o que podemos entender como uma questão referente à possibilidade de dominar, principalmente, a compulsão de repetição própria à pulsào de morte. A resposta é programática : é a correção a posteriori do processo de recalcamento originário que pode colocar um fim à força efetiva do fator quantitativo da pulsão. Mas Freud é o primeiro a reconhecer a infinitude da força pulsional ao sublinhar o caráter inesgotável de seu domínio : “Pode-se duvidar que os dragões do tempo originário estejam verdadeiramente mortos até o último” (FREUD, 1999, p. 73).. Como se a simbolização analítica não pudesse dissolver esta forçagem repetitiva da pulsão de morte.

No entanto, a negatividade da pulsão de morte não será incorporada pela clínica freudiana como motor dos processos de cura. A compulsão de repetição aparecerá como limite à clínica e aos mecanismos de rememoração, verbalização e de simbolização reflexiva próprios aos modos freudianos de subjetivaçao. Freud só pode pensar a manifestação da negatividade da pulsão de morte no interior da clínica sob a forma da reação terapëutica negativa, da destruiçào do outro na transferência e de outras manifestações de fantasmas masoquistas ou sádicos que devem ser liquidados a fim de levar o sujeito ao final de análise. Ou seja, o programa freudiano de : “dominar (bändigen) a compulsão de repetição e de transformá-la em um motivo para rememorar (Motiv fürs Erinnern)” (FREUD, 1999 X, p. 134) graças a liquidação de uma repetição normalmente confundida com a transferência continuará válido até o final, mesmo se Freud encontra limites para a sua eficácia.

Por sua vez, Lacan conserva a idéia da pulsão como retorno em direção à morte, mas é o próprio conceito de “morte” que se transforma. Ao invés da morte como retorno à origem inorgânica, morte pensada a partir do modelo objetivo de uma matéria indiferente inanimada, Lacan procura a possibilidade de satisfazer a pulsão através de uma “morte simbólica” ou “segunda morte”[6]. Na verdade, ele quer salvar a força do negativo como função ontológica do que há de real no sujeito sem, com isto, ser obrigado a entrar no cortejo próprio ao desejo bruto de morte.

Freud falava de uma auto-destruição da pessoa própria a satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a morte procurada pela pulsão é realmente a “auto-destruição da pessoa”, mas à condição de entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um universo simbólico estruturado. Esta morte é pois o operador fenomenológico que nomeia a suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de identidades. Ela marca a dissolução do poder organizador do Simbólico que, no limite, nos leva à ruptura do eu como formação imaginária. Neste ponto, Lacan está muito próximo de Deleuze, outro que procurou compreender a pulsão de morte para além da repetição compulsiva do instinto bruto de destruição. Pois é de Deleuze a afirmação, absolutamente central para aceitarmos a estratégia lacaniana, de que a morte procurada pela pulsão é : “o estado de diferenças livres quando elas não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu; quando elas excluem minha própria coerência, assim como de outra identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘ morro’” (DELEUZE, 2000, p. 149). Desta forma, o negativo da morte pode aparecer como figura do não-idêntico.

O vocabulário da não-identidade não está aqui de maneira gratúita. Pois, na verdade, tudo se passa como se Lacan seguisse Adorno (um outro paralelo frutífero), para quem : “Os homens só são humanos quando eles não agem e não se colocam mais como pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas assemelha-se ao delineamente de um ser inteligível, a um Si que seria desprovido de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte contemporânea sugere algo disto" (ADORNO, 1973, p. 267).

A arte contemporânea sugere algo disto na medida em que ela se sustenta na tensão destes que sabem que, se por um lado, a racionalidade da forma estética é impensável sem a expressão subjetiva, por outro, é imperioso desembaraçar-se do “elemento ideológico” (ADORNO, 2002, p. 191) ligado ao caráter afirmativo da expressão (Ausdruck). Por isto, em vários momentos, Adorno falará da necessidade de pensar uma expressão não diretamente derivada da intenção. Tais colocações são índices de uma mutação na categoria de “expressão” muito próxima daquela pressuposta por Lacan. Para alguém como Adorno, que moldou a categoria do impulso subjetivo (Impuls) a partir do conceito psicanalitico de pulsão, a expressão não pode mais estar subordinada a gramática dos afetos ou da imanência expressiva da positividade da intencionalidade. Uma expressão pensada nesta chave pulsional coloca-se no interior das obras como negação das identidades fixas submetidas a uma organização funcional, como incidência do negativo na obra. Em alguns casos, tal negação aparece como tendência ao informe, como vemos nas análises adornianas de Alban Berg. Sobre Berg, Adorno não cessa de lembrar que: “quem analisa esta música, sobretudo vê ela desagregar-se como se não contivesse nada de sólido” e chega, várias vezes, a falar na pulsão de morte como  tendência originária das obras, isto devido ao desejo insaciável de amorfo e de informe que as habita. “A complicidade com a morte, uma atitude de amável urbanidade em relação a sua própria dissolução caracteriza as obras de Berg”[7]. Assim, vale para Berg o que Adorno havia dito anteriormente a respeito de John Cage: “estes compositores procuram transformar a fraqueza psicológica do eu em força estética”. Lacan diria, talvez, que eles procuram transformar a experiência de morte simbólica em núcleo de um entrelaçamento possível entre estética e pulsional.

Devemos convocar Adorno porque há uma verdadeira complementaridade com Lacan neste ponto. Todos os dois conservam a categoria de sujeito mas reconhecem o problema da possibilidade de auto-objetivação do sujeito no interior da realidade alienada da sociedade moderna. Por outro lado, todos os dois vào procurar na formalização estética um horizonte possível de resolução de tal dificuldade.

Para Lacan, a significação tanto da realidade quanto de sua estrutura simbólica é suportada pelo fantasma e pela produção narcísica de identidade. Tal relação narcísica própria ao “eu do homem moderno” produz um discurso instrumental cujas objetivações nos conduzem a : “alienação mais profunda do sujeito da civilização científica” (LACAN, 1966, p. 281). O modelo de uma crítica da racionalidade instrumental leva Lacan a mostrar como este discurso alienado produz uma comunicação submetida : “à enorme objetivação constituída pela ciência e que permitirá ao sujeito esquecer sua subjetividade” (LACAN, 1966, p. 282).

Adorno também reconhece a estrutura narcísica (ele fala de “falsa projeção”) própria a competência cognitiva do eu do homem moderno. Neste sentido, ele chega a afirmar, em Elementos de anti-seministo, que toda percepção é projeção, servindo-se aí da teoria freudiana de submissão da percepção a procura por um objeto fantasmático. A consideração ‘genética’ sobre o eu fornece um suplemento ao diagnóstico histórico segundo o qual o sujeito de nossa época estaria diante de uma realidade mutilada pelo pensamento identificador da lógica de equivalentes própria ao fetichismo da mercadoria.

Assim, para os dois, que não querem simplesmente eliminar a categoria do sujeito, mas livrá-la do pensamento da identidade, só há cura possível através do acesso a uma experiência de descentramento e de não-identidade cujo modelo é fornecido preferencialmente pela força disruptiva da arte contemporânea. Uma experiência que permite a Lacan encontrar um modo de objetivação da emergência da pulsão como negação que impõe limites à identidade de um pensamento conceito resvalado à condição instrumental.

Neste sentido, quando Lacan afirma, por um lado, que : “A pulsão de morte é o Real enquanto aquilo que só pode ser pensado como impossível” (LACAN, 1975-1976, sessão do 12/03/76) e, de outro lado, que : “o subjetivo é algo que nós encontramos no Real " (LACAN, 1971), vemos desenhar-se um eixo maior de sua estratégia clínica. Trata-se de colocar a subjetivação da negação própria à pulsão de morte no centro da reflexão analítica sobre os protocolos de cura. Esta operaçào de subjetivação encontra, nos usos estéticos do informe e da despersonalização, um procedimento privilegiado de formalização.

De fato, a operação de subjetivação da pulsão pede uma explicação sumplementar. Lacan nos afirma que se trata aqui de uma : “subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso” (LACAN, 1973, p. 167). Ele explica claramente tal noção de subjetivação sem sujeito quando diz que : “Faz-se necessário distinguir o retorno em circuito da pulsão e o que aparece – mas que também pode não aparecer – em um terceiro tempo, a saber, a aparição de ein neues Subjekt que deve ser compreendido assim : não que já haveria um, a saber, o sujeito da pulsão, mas que é algo novo ver aparecer um sujeito” (LACAN, 1973, p. 162). Quer dizer, na pulsão, não há um sujeito que seja destino originário das monções. Lacan não fala do sujeito da pulsão tal como ele fala, por exemplo, do sujeito do desejo ou do sujeito do fantasma. No entanto, há uma subjetivação que permite a constituição de um sujeito capaz de se reportar à pulsão e é tal subjetivação que é visada pela sublimação. A defesa de uma subjetivação sem sujeito não significa necessariamente abandono da categoria de sujeito.

A fim de compreender a natureza desta relação, nós devemos sublinhar que, apesar do fato de existir um caráter “pré-subjetivo” (LACAN, 1973, p. 169) do objeto da pulsão, não se trata de compreender a relação à pulsão como um retorno a um gênero de imanência pré-reflexiva marcada pelo selo do retorno à inervação arcáica do corpo. Se a pulsão demonstra que há algo de “não-subjetivo no sujeito” (nicht Subjektive am Subjekt) (ADORNO, 1973b, p. 172), este não-subjetivo não é um campo pré-reflexivo de imanência. O fato da pulsão ser virtualmente pulsão de morte nos indica que se trata da relação do sujeito com o que há de irredutivelmente negativo e opaco, no interior do si mesmo, aos procedimentos reflexivos de produção de sentido. A corporeidade pode aparecer como raiz do caráter pré-subjetivo do objeto da pulsão, mas o corpo não comparece aqui como campo de imanência. O corpo aparece como espaço do negativo[8]. 

 

Para introduzir o conceito lacaniano de sublimação

 

            Antes de entrarmos na análise do conceito de sublimação faz-se necessário sublinhar sua centralidade na metapsicologia lacaniana, já que ele indica um destino possível para as categorias e posições caracterizadas por Lacan como sendo “impossíveis”[9]. Na verdade, tudo o que é figura do não-idêntico na clínica entra na categoria de impossível. O termo “impossível” nomeia assim esta série de experiências que opõem resistências insuperáveis aos processos de simbolização reflexiva e que não podem encontrar lugar no interior do Universo Simbólico que estrutura a vida social. Podemos indicar cinco: a relação sexual (“Não há relação sexual”), a posição feminina (“A mulher não existe”), o Real (“O Real é o impossível”), o corpo para-além da imagem especular (que aparece nos textos lacanianos sempre através das metáforas da informidade da carne) e o gozo não-fálico (que aparece sempre no condicional :  “O Outro-gozo, se ele existisse”).

A sublimação nos permite desdobrar um protocolo comum de resolução de tais impossibilidades. Lembremos primeiramente que a sublimação articula os temas do gozo (a sublimação é satisfação da pulsão), da posição feminina (“é sempre por identificação à mulher que a sublimação produz a aparência de uma criação" [LACAN, 1966-1967, sessào do 01/07/67]), do corpo (pois, se a sublimação é um gozo, nào podemos esquecer que : “só há gozo do corpo” [LACAN, 1966-1967, sessão do 30/05/67]) e do Real (a sublimação permite a apresentação do que há de Real no objeto). Neste sentido, se o impossível é definido exatamente como : “o que não cessa de não se escrever”, podemos dizer que a sublimação é um movimento que transforma o impossível a escrever em uma espécie de escritura do impossível.

Se retornarmos a Freud, encontraremos a sublimação definida como um dos quatro destinos da pulsão. Ela será sobretudo uma maneira de satisfazer as pulsões sexuais polimórficas através do desvio (Ablenkung) do alvo e do objeto sexual em direção a novos alvos socialmente reconhecidos e ligados, principalmente, às atividades artísticas. Ao lado da idéia do desvio do alvo e objeto sexual, Freud fala também da sublimação como inibição quanto ao alvo (zielgehemmt). Nos dois casos, a sublimação estética indicaria o movimento através do qual a energia sexual seria desexualizada e colocada a serviço do eu; o que permitiria a transformação da libido em realização social.

Devemos sublinhar dois aspectos da sublimação em Freud. Primeiro, ao introduzir a idéia da satisfação da pulsão através de alvos socialmente valorizados, Freud insere o problema da sublimação em uma lógica do reconhecimento através da qual o sujeito seria capaz de elevar as barreiras: “entre cada eu individual e os outros” produzindo assim um meio de reconhecimento e uma promessa de gozo daquilo que todo sujeito perde no processo de socialização do desejo. “O criador literário nos permite gozar de nossas próprias fantasias” (FREUD, 1999 X, p. 223), dirá claramente Freud.  A sublimação aparece assim como promessa harmônica de felicidade, como “ilusão de uma vida melhor” (ADORNO, 1973b, p. 24). Este hedonismo estético libera as obras de toda negatividade transformando-as em imagem positiva de reconciliação entre as exigências pulsionais e os imperativos intersubjetivos da vida social. O espaço conflitual é totalmente transferido para os conflitos pulsionais que geram as obras. Vários leitores de Freud notaram que tal função social da arte como disponibilização de um gozo estético capaz de realizar uma promessa de reconciliação (WAJCMAN, 1998) estava ligada a configurações historicamente determinadas do pensamento da arte que não dão conta do impulso crítico contra a aparência estética e contra suas aspirações de totalidade harmônica produzido em vários momentos da arte do século XX.

Segundo, e aqui está boa parte da complexidade do conceito, Freud pensa a trajetória da sublimação como um desvio do alvo sexual sem recalcamento. Mas o que isto pode significar : desviar sem recalcar?.

Para Lacan, afirmar que a pulsão pode encontrar satisfação em um alvo e em um objeto que não seja diretamente sexual não significa que ela deva ser necessariamente desexualizada. Sempre haverá, em Lacan, uma relação fundamental entre estética, ética e erótica. A desexualização não é base explicativa para os processos de desvio e Lacan não esquecerá de lembrar, por exemplo, que: “O objeto sexual, acentuado como tal, pode aparecer na sublimação” (LACAN, 1986, p. 191). Na verdade, a possibilidade de desvio sem recalcamento indica simplesmente que a pulsão não se confunde com : “a substância da relação sexual” (LACAN, 1959-1960, sessào do 01/07/59)  pensada como função biológica de reprodução submetida ao primado da organização genital. Ou seja, o objeto da pulsão não está ligado a adequação à empiria do objeto genital próprio à função biológica de reprodução. Ao contrário, ele é intimamente ligado ao reconhecimento de que o objeto : “é o que há de mais variável (variabelste) na pulsão, ele não lhe está originalmente ligado” (FREUD, 1999 X, p. 215).

A estratégia lacaniana consiste em ver, nesta variabilidade estrutural do objeto (que não é simples indiferença em relação ao objeto), a afirmação de que o alvo da pulsão é, de uma certa maneira, o próprio movimento de inadequação em relação aos objetos empíricos: “Seu alvo não é outro que este retorno em circuito” (LACAN, 1973, p. 163). Se o objeto é o que há de mais variável na pulsão e se ele pode: “ser mudado a vontade ao longo dos destinos que a pulsão conhece” (FREUD, 1999 X, p. 215), é porque o alvo da pulsão é a negação do objeto. Isto é posto de maneira explícita por Lacan quando ele afirma que : “a pulsão apreendendo seu objeto apreende de alguma maneira que nào é exatamente por aí que ela se satisfaz (...) nenhum objeto, nenhuma Not, necessidade, pode satisfazer a pulsão” (LACAN, 1973, p. 151), já que não há objeto empírico adequado à pulsão. É verdade que, como bem nos lembra Laplanche : “a clínica analítica nos mostra que o tipo de objeto que cada um procura, longe de ser variável, geralmente é extremamente fixo e determinado. Quando analisamos as escolhas amorosas deste ou daquele indivíduo, não é a variabilidade que nos choca mas, ao contrário, um certo número de traços extremamente específicos” (LAPLANCHE, 1998, p. 24). No entanto, esta fixação do objeto na pulsão, fixação que não é desfeita no final de análise, não pode ser confundida com a fixação do objeto no fantasma. A fixação do objeto na pulsão não é resultado da repetição fantasmática de experiências primeiras de satisfação, como normalmente acontece nas “escolhas amorosas deste ou daquele indivíduo”.  A fixação do objeto na pulsão é de uma outra ordem.

Para compreendê-la, devemos lembrar como Lacan,  ao analisar o texto freudiano Pulsão e destinos da pulsão, insiste no movimento pulsional de retorno em circuito na inversão significante chamada por Freud de inversão no contrário (Verkherung  ins Gegenteil) a fim de dar conta de um dos destinos da pulsão e analisar as inversões do sadismo em masoquismo e do voyerismo em exibicionismo. O termo freudiano de Verkehrung tem ressonâncias dialéticas, já que ele nos leva necessariamente a Umschlagen hegeliana com seus processos de passagens no oposto. Neste sentido, se Lacan pode afirmar que: “o que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o ir-e-vir a partir do qual ela se estrutura” (LACAN, 1973, p. 162), é porque ele procura pensar a constituição do objeto da pulsão a partir desta estrutura de inversões. Se o movimento da pulsão consiste em dar a volta no objeto, se queremos gozar dando a volta no objeto, então nada impede à pulsão de se satisfazer e de se fixar a um objeto que já seja um retorno em circuito, que já seja uma torsão, no sentido de um objeto que já seja uma torsão na sua identidade.

Assim, se o alvo da pulsão é a negação do objeto, então a pulsão pode se satisfazer no gozo de um objeto que traga em si sua própria negação. Pois a negação própria à pulsão de morte pode constituir um objeto a partir da destruição dos protocolos de auto-identidade. Ou seja, a sublimação lacaniana só é compreensível se lembrarmos que ela é satisfação pulsional com : “um objeto que mostra a perda, a destruição, a desaparição dos objetos” (JOHNS, 1964, p. 27), como nos dizia Jasper Johns. Assim, a procura lacaniana por modos de auto-objetivação do sujeito em sua não-identidade só pode se realizar através da compreensão da arte como formalização de objetos que mostrem a destruição dos protocolos de identidade e representação. E a fixação libidinal que anima tal reconhecimento entre sujeito e objeto é aquilo que Lacan chama de sublimação.

Desta forma, podemos compreender porque Lacan afirma que : “a pulsão de morte é uma sublimação criacionista” (LACAN, 1986, p. 251), ou ainda que : “a pulsão de morte apresenta-se no pensamento analítico como uma sublimação” (LACAN, 1986, p. 240). A sublimação está necessariamente vinculada à negação do objeto própria à pulsão de morte. Mas lembremos que, para Lacan, o objeto empírico é a princípio polo imaginário de projeção narcísica. Neste sentido, a pulsão de morte pode aparecer para Lacan como motor de des-alienação no Imaginário. No entanto, para que tal negação não seja simples desejo bruto de destruição, ela deve nos levar a um “outro modo de imaginarização” (LACAN, 1962-1963, p. 28/11/62) (que, neste contexto, é um neologismo infeliz que poderia ser facilmente substituído por ‘objetivação’), não especular e capaz de produzir uma “Erscheinung” (LACAN, 1986, p. 130) que é advento da singularidade do objeto para além de sua submissão à fantasmática do Imaginário. A sublimação, para Lacan, é exatamente a constituição deste outro modo de objetivação através do qual pode advir um objeto que é a destruição de si, torsão de seus protocolos de identidade, ou ainda, uma imagem que é a destruição da imagem[10]. Um advento aludido por Lacan quando afirma que : “existem momentos de aparição (Erscheinung) do objeto que nos jogam em uma outra dimensão (...) na dimensão do estranho, de algo que não se deixa apreender de maneira alguma. Diante deste novo, o sujeito literalmente vacila e tudo é colocado em questão a respeito desta relação dita primordial entre o sujeito e todo efeito de conhecimento” (LACAN, 1962-1963, sessão do 12/12/62). É só diante deste objeto não-idêntico produzido pela sublimação que o sujeito pode se reconhecer.

 

A historicidade do conceito lacaniano de sublimação

 

“Não há avaliação correta possível da sublimação na arte se não lembrarmos que toda produção artística, especialmente as Belas Artes, é historicamente datada” (LACAN, 1986, p. 128). Antes de prosseguir a discussão a respeito da categoria lacaniana de sublimação, faz-se necessário levar em conta esta afirmação. Podemos ver aqui o reconhecimento de uma coordenada histórica que incide sobre a reflexão psicanalítica da sublimação. A problematização de tais coordenadas nos permite identificar o regime estético das artes ao qual a sublimação lacaniana se vincula. Pois devemos colocar aqui a questão : o que deve ser a arte para que uma sublimação como poder de constituição de objetos a partir de negações internas, como produção de imagens de destruição da imagem possa ser vista como sublimação?

Responder tal questão exige uma reconfiguraçào prévia do que foi posto até agora. Vimos que a reflexão lacaniana sobre as artes não pode abandonar a categoria de expressão na compreensão da racionalidade dos fenômenos estéticos. Neste sentido, ela anda na contramão dos programas estéticos baseados, por exemplo, na hipostase da construção integral e da organização funcional das obras (como, por exemplo, o serialismo integral na música). No entanto, a categoria de expressão é reconstruída a partir das considerações sobre a pulsão. Uma pulsão que é virtualmente pulsão de morte e que, por isto, deve aparecer no interior das obras como negação das identidades fixas submetidas a uma organização funcional. Procedimentos estéticos de despersonalização e de emergência da informidade ganham relevância no interior de tal reflexão sobre as artes.

Por outro lado, a expressão estética realiza-se nas obras através da sublimação. Mas, ao invés da compreensào tradicional da sublimação como desvio do alvo e do objeto sexual da pulsào em direção a objetos socialmente valorizados. Lacan vai relativizar o problema da desexualização a fim de insistir na estrutura particular do objeto na sublimação. Ele lembra que, na sublimação, o objeto deixa de ser um polo imaginário de projeções narcísicas para ser exposição daquilo que é não-idêntico ao sujeito. Vale aqui o que Adorno afirmava a respeito do sublime estético como identificação : “que não consiste em deixar a obra semelhante (gleichmachte) ao sujeito, mas o sujeito semelhante a ela” (ADORNO, 1973b, p. 33). No interior do quadro conceitual lacaniano, isto significa que o objeto deve aparecer como destruição dos protocolos de identificação fantasmática. Como vemos, tais reflexões sobre a estética convergem na necessidade de pensar o objeto estético como formalização de uma experiência de não-identidade que permita o advento, no sujeito. de uma expressão que não é mais expressão de um eu, mas expressão de um sujeito profundamente descentrado.

Esta experiência de descentramento é exatamente o que Lacan tenta apreender através da categoria de Real. O Real lacaniano não é um horizonte acessível à consciência imediata ou um estados de coisas que se submeteria a um pensamento da adequação. O Real não está ligado a um problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou colonizadas por imagens fantasmáticas. Isto nos explica porque a emergência do Real é normalmente compreendido por Lacan enquanto “acontecimento traumático”, já que o trauma é aqui compreendido como encontro com um acontecimento não suportado pela estrutura simbólica responsável pelas determinações de identidade. Neste sentido, não há nada mais traumático do que a aparição do objeto enquanto aquilo que resiste à predicação do pensamento e ao regime de idetificação do imaginário. Nada mais traumático do que uma arte capaz de : “absorver na sua necessidade imanente o não-idêntico ao conceito” (ADORNO, 1973b, p. 155). E foi pensando nisto que alguns críticos de arte de inspiração lacaniana chegaram a cunhar o termo de “realismo traumático” (FOSTER, 1995, p;. 132)  para dar conta de tal programa.  

Mas devemos nos perguntar se a hipostase de tal expreiência de descentramento não é, na verdade, um programa estético de retorno à imanência do arcaico ou do orginário (seguindo aí uma tendência modernista tradicional de pensar a crítica da reificação e da razào instrumental através de aspirações de retorno). Lembremos, neste sentido, da importância inegável das reflexões estéticas heideggerianas sobre a Coisa para Lacan ou, principalmente, do impacto de temas batailleanos sobre o heterogêneo e sobre o gozo mortífero e transgressivo como força estética no pensamento lacaniano sobre o Real como  impossível ou como trauma.

Este é um assunto cuja complexidade exige a redação de outro artigo. No entanto, vale a pena insistir que tal perspectiva pressupõe que a noção lacaniana de inconsciente teria parte com o arcaico ou com a imanência dos afetos, o que não é o caso. Mas, de fato, esta estratégia lacaniana de pensar uma certa estética do real como formalização de experiências de descentramento é primeiramente resposta a um certo diagnóstico histórico. A estética lacaniana do real é o resultado de um tempo que não vê mais na arte uma promessa de felicidade, como dizia Stendhal, ou seja, uma determinação concreta e adequada da Coisa. Ao contrário, o tempo da estética lacaniana é o momento histórico no qual a arte aparece maneira sensível de sustentar o que não pode encontrar determinação para se afirmar positivamente em uma realidade totalmente fetichizada. A arte como rasura do poder reconciliador da simbolização e da linguagem. Daí a necessidade de uma definição da arte como esta apresentada por Lacan: “Toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do vazio [da Coisa]" (LACAN, 1986, p. 153). Um vazio que indica a negatividade do individual ao regime de determinação dos entes, e não uma certa estetização da teologia negativa através da insistências nos temas da ausência e da incompletude, como vimos muitas vezes em certas leituras estéticas inspiradas por Lacan, isto principalmente no campo literário através de aproximações pouco recomendadas, por exemplo, co m Maurice Blanchot.

Na verdade, o vazio lacaniano é melhor compreendido se lembrarmos do diagnóstico histórico que afirma: “diante do que advém a realidade (Realität), a essência afirmativa da arte, esta essência inelutável, transformou-se em algo insuportável” (ADORNO, 1973b, p. 10). No entanto, a crítica à essência afirmativa da arte não se dá através de expectativas de retorno a horizontes arcaicos ou orginários. Isto fica claro se analisarmos os protocolos usados por Lacan para estruturar os processos de sublimaçào. Nós veremos que eles estão muito mais próximos de questões postas por correntes estéticas como o minimalismo, o nouveau réalisme e a pop-art.

 

Três protolocos de sublimação : subtração

 

Compreender a maneira lacaniana de pensar os modos de objetivação da não-identidade exige, primeiramente, lembrar que há ao menos três operadores lacanianos distintos de articulação da sublimação na sua relação à arte: a Coisa (no seminário VII), o semblant (no seminário XI) e a letra (em Lituraterre). Cada um incide sobre um problema específico : o estatuto da presença e da ausência no objeto estético (a Coisa)[11], a relação da arte à irredutibilidade da aparência (semblant) e a resistência do material na formalização estética (a letra). Tais questões são convergentes na produção lacaniana de um pensamento estético e elas nos fornecem três protocolos distintos de sublimação : através da subtração das qualidades do objeto imaginário (o exemplo privilegiado aqui é a mulher no amor cortês), através da posição da aparência como pura aparência (a pintura como jogo de semblants) e através da literalização da resistência do material (a escritura do Joyce de Finnegans Wake).

            Primeiro, a subtração. Para compreendermos tal operação, devemos lembrar que, na economia do pensamento lacaniano, o amor cortês é sobretudo amor por um objeto despersonalizado e desprovido de todo traço de individualidade. Se ele aparece como primeiro exemplo desta maneira de definir a sublimação como o ato de elevar um objeto empírico à “dignidade” da Coisa, então devemos lembrar que Lacan insistirá, a respeito das figuras da Dama presentes na literatura cortesã : “todas elas têm as mesmas características” (LACAN, 1968-1969, sessão do 12/03/69), “todos os poetas parecem dirigirem-se à mesma pessoa” (LACAN, 1986, p. 179). Isto nos lembra que o trabalho de constituição da mulher no amor cortês é um trabalho de subtração do objeto, de anulação de toda determinação qualitativa capaz de servir de suporte de individuaçào. Elevar o objeto à diginidade da Coisa significa, primeiramente, subtrair toda sua determinação atributiva e qualitativa. Tal trabalho nos explica porque, neste caso: “o objeto feminino é introduzido pela porta muito singular da privação, da inacessibilidade” (LACAN, 1986, p. 178). Uma inacessibilidade que nos reenvia, por exemplo, ao comentário lacaniano a respeito de Lol V. Stein, a personagem principal do romance de Marguerite Duras, O deslumbramento de Lol V. Stein. Quanto esta espécie de Dama moderna que é Lol aos olhos de Lacan é desnudada por seu amante no momento de fazer amor pela primeira vez, revela-se: “o que se dizia de você quando você era pequena, que você nunca estava totalmente presente” (LACAN, 2001, p. 193).

            Sendo assim, a imagem da mulher no amor cortês seria imagem do que resta quando um objeto é esvaziado de todo traço imaginário de individuação. Resta uma imagem infinitamente reprodutível, impessoal, inexpressiva, indiferente ao ponto de ser fria e cruel; imagem desensibilizada. O paradoxo aqui consiste em dizer que apenas uma imagem desensibilizada pode elevar o objeto à dignidade da Coisa. Pois como Lacan não reconhece nenhum nível de experiência sensível imediata, é o Imaginário que dá forma e significado ao diverso da experiência. Para que a coisidade que marca a singularidade do objeto possa aparecer, faz-se necessário primeiramente desensibilizar a imagem e liberar o objeto das amarras do Imaginário.

Se colocarmos certas coordenadas históricas a respeito do procedimento lacaniano de sublimação enquanto produção de uma imagem desensibilizada, veremos que ele nos leva aos dispositivos de criação próprios ao minimalismo em sua crítica à representação. Lembremos, por exemplo, dos quadros absolutamente negros de Ad Reinhardt nos quais Richard Wollheim enxergou um trabalho de destruição da imagem e de formalização da pulsão repetitiva de destruição. “Com estes quadros”, dirá ele, “o trabalho de destruição foi cruelmente completado e toda imagem foi desmantelada de uma maneira tal que nenhum pentimenti restou” (WOLLHEIM, 1995, p. 398). O que restou após este trabalho de destruição foi a presença material de um vazio de representação, algo que não é : “nem pintura, nem escultura, mas objeto” (JUDD, 1975, p. 23).

            No entanto, entre os quadros negros de Ad Reinhardt e a mulher no amor cortês há uma diferença. Pois, na imagem da mulher, há algo a mais do que a pura imagem de subtração do Imaginário. Há esta idealização (ligada a uma certa sobrevalorização - uberschätzung) da mulher, imagem de beleza perfeita e congelada que parece guardar algo do fetichismo. Na verdade, há a permanência daquilo que Adorno chama de elemento mimético, no sentido dos traços de semelhança imaginária do objeto artístico à realidade fetichizada[12].  Isto nos leva a uma discussão complementar a respeito da possibilidade da arte contemporânea sustentar o programa do absoluto da subtração integral da fascinação fetichista.

 

Três protocolos de sublimação : o deslocamento no interior da aparência

 

Quatro anos depois das dicussões a respeito da mulher no amor cortês como paradigma de sublimação, Lacan retorna ao problema da visibilidade da imagem estética. Neste momento, Lacan traz três outros paradigmas para pensar a imagem estética : a anamorfose, o mimetismo e o trompe l’oeil. O psicanalista não tem medo em dizer que o mimetismo e o trompe l’oeil são equivalentes da função exercida pela pintura. Isto indica inicialmente o reconhecimento da irredutibilidade da aparência (pensada aqui como espaço de apresentação submetido à lógica do Imaginário) como momento da formalização estética. Neste sentido, Lacan toca uma questão maior da estética do século XX. Críticos de arte como Craig Owens chegaram a organizar o pensamento estético do século XX  a partir do problema da aparência : “A teoria modernista”, dirá ele, “pressupõe que a mímesis, a adequação da imagem à referência pode ser superada e que o objeto de arte pode ser substituido (metaforicamente) por suas referências [ou por seus esquemas de produção] (...) O pós-modernismo não supera a referência mas trabalha para problematizar a atividade da referência” (OWENS, 1980, p. 235).

            De fato, ao insistir na irredutibilidade do momento da aparência na arte, Lacan parece seguir a segunda vertente, mas não devemos esquecer que, no seu caso, não se trata de deixar a arte ser absorvida pela dimensão do simulacro e dos jogos infinitos de aparência que se reenviam. Como Lacan sublinha bem: “o que procuramos na ilusão é algo através do qual a própria ilusão se transcende, se destrói, mostrando que está lá apenas como significante” (LACAN, 1986, p. 163). Esta idéia de ‘auto-destruição da ilusão’ própria à aparência estética é fundamental e nos remete à noção da sublimação como imagem de destruição da imagem.

Para compreender melhor a peculiaridade da posição de Lacan, retornemos àquilo que o interessa no trompe l’oeil como função essencial da arte : “O que nos seduz e nos satisfaz no trompe l’oeil? (…) O momento no qual, devido a um simples deslocamento de nosso olhar, podemos perceber que a representação não se move e que há lá apenas um trompe l’oeil. Pois ele aparece então como outra coisa do que ele se oferecia, ou melhor, ele se oferece agora como sendo esta outra coisa” (LACAN, 1973, p. 103). Insistamos na idéia de apreensão estética como deslocamento no interior da aparência. O sujeito continua diante da mesma imagem fantasmática que fascinou seu olhar, ele continua vinculado aos mesmos materiais fetichizados, mas há uma mudança fundamental de valor que destrói a imagem enquanto dispositivo de presença. Aquilo que se dava como promessa de presença positiva mostra-se então como “aparência que diz que ela é o que fornece a aparência” (LACAN, 1973, p. 103).

No entanto, há ao menos duas maneiras de reconhecer a irredutibilidade da aparência na arte. Uma nos leva à compreensão da arte como espaço de desdobramento de semblants e simulacros. Trata-se  da arte própria a um tempo que pode falar com Deleuze : “tudo se transformou em simulacro. Pois não devemos compreender o simulacro como sendo uma simples imitaçào, mas o ato através do qual a idéia mesma de um modelo ou de uma posição privilegiada encontra-se constestada, invertida” (DELEUZE, 2000, p. 95). Em uma situação histórica na qual o domínio da apresentação parece não mais nos enviar a sistemas estruturados de produção de sentido, a temática do simulacro, com sua desorientação das dicotomias entre aparência e essência, ganha corpo.

Na outra vertente, a posição da aparência permite a revelação da negatividade da essência. Não se trata aqui de dizer que o semblant dissolve a oposição entre aparência e essência, mas que ele permite uma passagem em direção à uma essência que não é mais pensada a partir de determinações positivas de substância. Como na dialética hegeliana da essência e da aparência, esta passagem se produz quando se desvela que: “a nulidade da aparência não é outra coisa que a natureza negativa da essência” (HENRICH, 1967, p. 117). Ou seja, a essência aparece quando a aparência é compreendida como: “o negativo posto como negativo (das Negative gesetzt als Negatives)” (HEGEL, 1974, p. 19). Esta vertente que insiste na aparência estética como formalização da inadequação está mais próxima das reflexões lacanianas sobre objetos que sejam a objetivação da não-identidade. Desta forma, podemos estabelecer distinções entre a estética lacaniana da sublimação e todo e qualquer programa estético articulado a partir da centralidade do simulacro.

  Adorno nos fornece um dispositivo possível para pensarmos esta experiência da natureza negativa da essência e da aparência como formalização da inadequação que nos auxilia na compreensão das questões postas pela sublimação lacaniana. Trata-se do problema adorniano da irredutibilidade do fetichismo na arte. Ao refletir sobre o destino do fetichismo na arte, Adorno distancia-se da crença de que a crítica da aparência deva se dar através do desvelamento das estruturas de produção que definem a configuração da significação da obra, o que equivaleria a uma anulaçào da aparência através da passagem a uma essência pensada como espaço positivo de doação de sentido. Neste ponto, devemos tirar as consequências de afirmações centrais como: “A arte só consegue opor-se através da identificação (Identifikation) com aquilo contra o qual ela se insurge”, já que, na modernidade capitalista, a integralidade das esferas da vida estariam pressuionadas por um fantasma social que encontra sua forma na abstração fetichista própria à forma mercadoria. Adorno é extremamente claro nesta estratégia. Basta lembrarmos ainda que : “as obras de arte modernas abandonam-se mimeticamente à reificação, a seu princípio de morte” (ADORNO, 1973b, p. 201). Uma afirmação aparentemente estranha, já que a tendência hegemônica tende a definir a arte moderna, ao contrário, pela recusa de toda afinidade mimética com a sociedade reificada, isto através, por exemplo, da crítica à representação e à figuração.

No entanto, vale aqui o que diz Adorno na Dialética negativa : “Não se pode excluir da dialética do subsistente (Dialektik des Bestehenden) o que a consciência experimenta como estranho enquanto coisificado (dinghalf fremd)”, pois “o que é estranho enquanto coisificado é conservado” (ADORNO, 1973, p. 192). O coisificado deve ser conservado pois : “este para quem o coisificado é o mal radical, tende a hostilidade em relação ao outro, ao estranho (Fremde), cujo nome não ressoa por acaso na alienação (Entfremdung)” (ADORNO, 1973, p. 191). Ou seja, a negação abstrata do coisificado produz o bloqueio do desvelamento da não-identidade; sua negação determinada pressupõe, ao contrário, uma certa dialética mimética da aproximação. Desta forma, a verdadeira crítica, como vemos em toda obra de arte fiel ao seu conteúdo de verdade, não deve tentar dissolver a fixação fetichista através, por exemplo, da pressuposição utópica de um horizonte de leitura marcados pelos : “tempos carregados de sentido (die sinnerfülleten Zeiten) que o jovem Lukács desejava o retorno”. O verdadeiro desafio da crítica consiste em encontrar a não-identidade através da confrontação com materiais fetichizados, Da mesma maneira que, para Lacan : “Não outra entrada para o sujeito no real do que o fantasma”(LACAN, 2001, p. 326).

Isto implica em uma mudança de valores na dimensão da aparência. É ela que permitirá a Adorno afirmar : “Se os fetiches mágicos são uma das raízes históricas da arte, um elemento fetichista – distinto da fetichismo da mercadoria – continua misturado às obras” (ADORNO, 1973b, p. 315). Este outro fetichismo é o investimento libidinal do que se transformou em ruínas. Este objeto cujo valor vinha da sua submissào dócil à lógica do fantasma (ou ao regime de abstração da forma-mercadoria), deve ser apresentado em sua opacidade de matéria bruta e sensível, resto que resiste à identidade fantasmática. Nós podemos falar de um material anteriormente fetichizado, mas que se transforma em um resto que nos lembra as ruínas da gramática do fetiche. Desta forma, o objeto que me era o mais familiar pode desvelar seu estranhamento (Unheimlich). Assim como a Dama idealizada lacaniana que se revela brutalmente portadora da crueza do vazio, a arte para Adorno deve saber revelar o estranhamento lá onde só esperávamos a repetição alienante do fantasma. Pois devemos tirar as consequências estéticas do fato de que : "No coisificado, estes dois elementos estão reunidos : o não-idêntico do objeto e o assujeitament dos homens às condições dominantes de reprodução" (ADORNO, 1973, p. 192). Desta forma, Adorno e Lacan acabam aproximando-se de uma intuição fundamental de Deleuze : “Quanto mais nossa vida cotidiana aparece de maneira standard, estereotipada, submetida a uma reprodução acelerada de objetos de consumo, mais a arte deve vincular-se tal reprodução e arrancar-lhe esta pequena diferença que joga simultaneamente entre outros níveis de repetição, e mesmo fazer ressoar os dois extremos das séries habituais de conumo com as séries instintuais de destruição e morte, reproduzir esteticamente as ilusões e mistificações que fazem a essência real desta civilização para que enfím a Diferença se exprima com uma força repetitiva de cólera capaz de introduzir a mais estranha seleção” (DELEUZE, 2000, p. 353). Só através desta pequena diferença que desloca a aparência no interior da aparência que uma imagem que é destruição da imagem pode advir. 

 

Três protocolos de sublimação : a literalização

 

Tal reflexão sobre a manifestação da negatividade da essência através da posição da aparência como aparência nos leva ao terceiro protocolo lacaniano de sublimação :a literalização. Através dele, Lacan pode organizar os problemas estéticos vinculados à resistência do material através da  letra.

            A primeira questão aqui é : por que a letra? Por que Lacan sentiu a necessidade de colocar, para além do significante, um outro dispositivo de inscrição simbólica através do recurso à letra? A resposta deve ser procurada na afirmação : “o Um sustenta-se na essência do significante” (LACAN, 1975, p. 12). No último Lacan, a essência do significante consiste em articular-se com o Imaginário a fim de produzir um sistema estruturado fechado e totalizante. Um conjunto consistente de elementos múltiplos que tem relações entre si tal como partes de um sistema. Se pensarmos em um escritura de significantes na arte, chegaremos necessariamente a uma escritura serial cujas operações posicionais definem a integralidade das possibilidade de sentido do manterial e perpetuam as exigências da forma. O Telos da organização total do material.

            Neste sentido, o que pode ser uma escritura da letra ? Uma das primeiras definições lacanianas da letra é: “o suporte material que o discurso concreto empresta à línguagem” (LACAN, 1966, p. 495). Ou seja, ela é o nome do material utilizado pela línguagem para produzir relações próprias à instância sistêmica do significante. Em Lacan, ela não é o elemento de uma arqui-escritura transcendental irredutível à palavra e composta por traços puros. Uma arqui-escritura pensanda como composição da différance : acontecimento originário anterior e irredutível a tudo subjetividade. Para Lacan, falar da letra sem afetá-la : “de uma primazia em relação ao significante” (LACAN, 2001, p. 14) significa simplesmente indicar a resistência daquilo que, do manterial da língua, não se deixa sistematizar integralmente. Uma escritura da letra é necessariamente uma escritura da resistência do material. Ela se coloca como resura do poder reflexivo da simbolização a fim de indicar a presença do real do objeto no ato de formalização.

Este limite à simbolização é resistência aos procedimentos hermenêuticos de interpretação, daí a afirmação que: “o escrito, isto não serve à compreensão” (LACAN, 1975, p. 15). Mas ele também é literalização do que inicialmente apareceu como o ponto vazio da Coisa. Esta rasura é modo de presença, maneira de formalizar a negaçao que vem da nào-identidade do material.

Pensar a  formalização estética colmo rasura, como desarticulação da capacidade de organização da linguagem é um procedimento maior em Lacan. Se o sistema significante é espaço do Um e do pensamento como identificação, só há formalização do singular como distorção e forçagem da superfície da língua. Daí, por exemplo, o jogo clássica de palavras de Lacan entre litura, literal e litoral. De uma certa maneira, esta estética da inadequação que termina na insistência na desarticulação da capacidade de organizaçào da linguagem como protocolo de formalização daquilo que é não-idêntico ao conceito não deixa de resgatar certos aspectos da metafísica do sublime que alimentou reflexões estéticas no século XIX; mas isto é assunto para um outro artigo.  

Para finalizar, podemos dizer que, atualmente, uma obra de arte parece ser sempre obra da perda na crença da força comunicacional da língua. Perda que se inscreve nos dispositivos de sua produção. Neste sentido, a escritura da letra só pode se realizar como escritura de ruínas, “acomodação de restos” (LACAN, 2001, p. 11). É o destino de toda formalização estética fiel ao seu conteúdo de verdade aos olhos de Lacan, ou seja, formalização desta matéria opaca que resta quando as máscaras do fantasma vacilam. É ela que guarda o lugar no qual o sujeito pode ainda se reconhecer.

Hegel tinha o hábito de ver nos Persas o primeiro povo histórico: “porque a Pérsia é o primeiro império que desapareceu (Persien ist das erste Reich, das vergangen ist)" deixando atrás de si a mobilidade (Beweglichen) e a inquietudo do que só pode se exprimir como ruínas. Desde o primeiro povo histórico, o princípio de subjetividade nunca cessou de reconhecer a certeza de sua existência nas ruínas. E é em direção a elas que Lacan pede que o sujeito volte os olhos, mais uma vez, a fim de afirmar sua irredutibilidade.

 

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___; Le séminaire XXIII - Le sinthome, 1975-1976, mimeo

LAPLANCHE, J., Problématiques : la sublimation, Paris : PUF, 1998

OWENS, C.: The allegorical impulse: toward a theory of postmodernism in October, New York :12/13, 1980

RANCIÈRE, J., L’inconscient esthétique, Paris : Galilée, 2001

WOLLHEIM, R.: Minimal art in BATTCOCK, G., Minimal art: a critical anthology, Berkeley: California Press, 1995



[1] Uma exceção possível é o conceito de supereu, cuja incidência inicial deriva da antropogênese social fornecida por Totem e tabu (agradeço a Léa Silveira pela lembrança). De qualquer forma, meu argumento continua válido integralmente para a relação entre clínica e estética em Freud.  

[2] Lembremos que não se trata simplesmente de estabelecer uma espécie de “etiologia sexual dos fenômenos estéticos”. A estratégia freudiana foi bem descrita por Rancière: “Trata-se de intervir sobre a idéia do pensamento inconsciente que regula as produções do regime estético da arte, de colocar ordem na maneira através da qual a arte e o pensamento da arte articulam as relações entre saber e não-saber, do logos e do patos, do real e do fantasmático” (RANCIÈRE, 2001. p. 51)  

[3] Neste sentido, a crítica adorniana em relaçào a Freud nos parece extremamente pertinente. Segundo ele : “a teoria freudiana da arte é muito mais idealista do que acredita. Ao contentar-se em transferir as obras de arte para a imanência psíquica, ela expulsa como antitético o não-eu (Nichtich)” (ADORNO, 1973b, p. 25)

[4] « Ulisses é o testemunho de que Joyce continua enraizado ao pai ao mesmo tempo que o nega, e aí está seu sintoma" (LACAN, 1975-1976, sessão du 13/01/76)

[5] Segundo a idéia freudiana de que destino de Eros seria o de : « formar a partir da substância viva unidades (Einheiten) cada vez maiores e assim conservar a vida na sua permanência levando-a a desenvolvimentos mais complexos » (FREUD,  1999 XIII, p. 233 ). A respeito desta idéia, Lacan dirá que : « é muito singular ver reemergir sob a pluma de Freud o amor como potência unificadora pura e simples, como atração sem limites oposta à Tanatos – isto quando nós temos correlativamente, e de uma maneira discordante, a noção tão diferente e fecunda da ambivalência amor-ódio" (LACAN, 2001b, p. 113)

[6] Segunda morte bem exemplificada na afirmação : « O homem aspira a se aniquilar para se inscrever nos termos do ser. A contradição escondida é que o homem aspira a se destruir através do movimento mesmo através do qual ele se eterniza » (LACAN, 2001b, p. 122)

[7] ADORNO, Berg, p. 21. Anne Boissière percebeu como o problema do informe é um dos elementos que vinculam  Mahler e Berg : “Formada no mais alto nível, a música de Mahler é, em certos momentos, tendência dialética em direção ao informe. Se há aí um tema – este da dialética entre organização e desorganização, entre forma e informe – simplesmente esboçado em Mahler, vemos ele ganhar uma improtância de primeira ordem no livro sobre Berg através da idéia de ‘pulsão de morte’ de sua música; uma música que, mesmo formada ao extremo, ‘está sempre pronta a dissolver-se no amorfo’ (BOISSIÈRE, 2001, p. 89)

[8] Neste ponto, remeto ao meu SAFATLE, Uma clínica do sensível : sobre a relação entre destituição subjetiva e primado do objeto

[9] O « impossível » é, na verdade, um regime de negação no interior da clínica. Mesmo sendo  « impossíveis », as categorias que serão arroladas acima não estão excluídas do campo subjetivo de experiência e da direção da cura. Elas só são impossíveis a partir da perspectiva do saber reflexivo da consciência. O que nos explica porque tais categorias podem ser formalizadas, mas não simbolizadas. 

[10] Por exemplo, ao falar da imagem da beleza sublime de Antígona, Lacan coloca a necessidade de pensar uma regime da imagem através do qual : « somos purgados, purificados de tudo o que é desta ordem mesma. Esta ordem, nos podemos desde já recenhecê-la – é a série do imaginário. E nós somos purgados dela por intermédio de uma imagem entre outras » (LACAN, 1986, p. 290), Esta imposição estética de uma imagem que é a destruição do Imaginário pode nos reenviar, por exemplo, diretamente ao minimalismo. Lembremos do que diz Didi-Huberman a respeito do programa dos specifics objects, de Donald Judd : “Tratava-se de inventar formas que soubessem renunciar às imagens, e de uma maneira perfeitamente clara, fazer obstáculo a todo processo de crença diante do objeto” (DIDI-HUBERMAN, 1992, p. 35)  

[11] Sobre o conceito lacaniano de « Coisa », devemos lembrar que ele aparece primeiramente através do comentário de uma passagem do Projeto para uma psicologia científica, de Freud. Nela Freud procura mostrar, através da estrutura sintática do julgamento, como o pensamento procura negar tudo o que não se conforme ao princípio alucinatório de repetição fantasmática próprio ao prazer. Lacan insiste que tal negação produz um « resto » que fica unido como Coisa. Ou seja, esta Coisa é o que resiste a se inscrever nas representações simbólicas submetidas ao fantasma. Ela é o primeiro nome da singularidade que só aparece como resistência às predicações postas pelo pensamento fantasmático do eu. A Coisa é o que só pode ser caracterizado negativamente como o que não é objeto de uma predicação. Por outro lado, Lacan aproxima tal reflexão da discussão heideggeriana a respeito da coisidade (Dingheit) como o ser da proximidade de uma coisa desprovida de representação. Coisa que nos mostra : “que a ausência não é um nada; ela é a presença – que precisa ser primeiramente apropriada – da plenitude escondida do que foi  e, que assim unida, é” (HEIDEGGER, 1958, p. 220)  

[12] Adorno dirá que: "A arte é o refúgio do comportamento mimético " (ADORNO, 1973b, p. 85). Pois: “A arte é obrigada [a confrontar-se com o fetiche] devido à realidade social. Ao mesmo tempo em que ela se opõe à sociedade, ela não é no entanto capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade" (ADORNO, 1973b, p. 190)

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