Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, s�bado, 16 de agosto de 2003 � Página Inicial

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Vladimir Safatle

Para Chamar de Gato um Gato

Universidade de Bras�lia

Na edi��o do dia 19 de julho deste suplemento, Rejane Xavier, ex-membro da equipe de reda��o dos programas de governo de Fernando Henrique Cardoso e ex-assessora do antigo ministro da Educa��o, saiu em defesa dos resultados do programa educacional implementado nos �ltimos oito anos. ��Trabalhou-se muito, e bem��, diz ela. Isso, sem deixar de lembrar, com toda a mod�stia devida, que ��h� bastante a ser feito��, mas ��sem necessidade de demolir o que j� foi constru�do��. Claro, n�o vamos nos deixar levar por estes Bin-Ladens da educa��o (eu) que, animados por um ��saudosismo elitista�� e antimodernizador, vociferam ��diatribes�� e ��discursos indignados�� visando apenas destruir os honestos frutos de anos e anos de trabalho persistente e corajoso. Estes esperam milagres que nunca acontecer�o, v�em coisas que ningu�m v�, enquanto a professora Rejane, bem, ela tem a sabedoria paciente para compreender que ��os resultados das medidas do �ltimo governo precisam de tempo para se fazer sentir��.

��Como voc�s v�em, eis a� mais algu�m que gosta de seguir � risca a primeira li��o do j� conhecido Manual de reda��o tucana: ��D� a impress�o que o opositor � um louco rancoroso e coloque-se como o arauto da racionalidade do Ocidente: �nico caminho poss�vel para a seguran�a e a felicidade��. Veja bem, diz a professora Rejane, o ��quadro � dif�cil e complexo��, erros certamente foram cometidos, mas devemos ter uma cr�tica ��construtiva��. Para quem n�o � versado em eufemismos, a cr�tica construtiva � aquela que n�o toca em nenhum processo estrutural, mas contenta-se em sugerir um ajuste ornamental ali e outro l�.

��De fato, em ao menos um ponto a professora Rejane tem raz�o: n�o creio que este tipo de cr�tica sirva atualmente quando o assunto � educa��o. O problema n�o est� em a��es pontuais realizadas pelo MEC de ent�o. Algumas, por sinal, foram muito boas. Nesse sentido, fiz quest�o de citar os Par�metros Curriculares Nacionais e, certamente, poderia citar outras. Mas a soma das partes nem sempre d� um todo, e boas a��es isoladas n�o conseguiram imprimir mudan�as substanciais na qualidade do ensino, j� que a dire��o geral do programa educacional tucano estava absolutamente equivocada. Ela baseou-se, no final das contas, em uma tentativa de universaliza��o do acesso ao ensino incapaz de garantir o m�nimo de qualidade. � essa dire��o que merece uma cr�tica ��radical��, pois espero que tal estrat�gia nunca mais seja tentada novamente por um governo federal. Os n�meros da professora Rejane n�o conseguem esconder este fracasso.
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Alguma escola, nenhuma escola
Em um dado momento do seu texto, a professora afirma que eu esque�o sistematicamente ��o enorme salto qualitativo (...) que levou milh�es de crian�as a passar de nenhuma para alguma escola��. Eis a� uma verdadeira p�rola que traduz muito bem o ide�rio tucano. Muito interessante esta maneira de chamar de ��salto�� a passagem do nada ao qualquer coisa; como se o simples fato de colocar crian�as na escola j� significasse um fant�stico ��salto qualitativo��. Mais interessante ainda � descobrir que o dinheiro do Fundef (o mesmo Fundef apregoado como uma verdadeira revolu��o na educa��o) foi parar em alguma escola, e n�o em uma escola da qual possamos nos orgulhar.

��Mas, para a professora Rejane, ��as vit�rias obtidas no campo da universaliza��o do ensino n�o podem ser minimizadas��. Para mim, � c�mica a sugest�o de que tal universaliza��o teria contribu�do para diminuir a desigualdade racial, isso quando o Saeb (Sistema Nacional de Avalia��o do Ensino B�sico) mostrou, por exemplo, que, no per�odo 1995/2001, a diferen�a do desempenho escolar na prova de portugu�s entre brancos e negros aumentou de 19,6 para 26,1 pontos.

��Por outro lado, � sintom�tico o m�todo utilizado pela professora para encontrar ��vit�rias�� a todo custo. Vejam s� voc�s, ao ler o mesmo SAEB, ela enxerga uma ��significativa estabilidade�� nos n�veis de profici�ncia dos alunos. Os n�meros, entretanto, mostram que a m�dia do desempenho escolar dos alunos de 3� ano caiu substancialmente, em matem�tica, de 290,01 pontos (1995) para 262,34 (2001) e, em portugu�s, de 281,94 pontos para 276,71. Na 4�s�rie, a derrocada continua: de 188,28 para 165,12 em portugu�s e de 190,62 a 176,26 em matem�tica. Isso em um sistema de avalia��o cuja escala vai at� 425 pontos. Na verdade, estamos diante de belos exemplos desta ex�tica l�ngua tucana que transforma ��queda�� em ��estabilidade�� e ��resultados med�ocres�� em ��saltos qualitativos��. Eis a� a segunda li��o do tal Manual de reda��o: ��Exercite durante todas as manh�s a primorosa arte da tor��o sem�ntica��. Pena que a realidade n�o acompanhe tais mudan�as. Na verdade, o que a realidade mostra � que 59% dos alunos na 4�s�rie continuam n�o conseguindo ler e compreender sequer um par�grafo elementar e 52% t�m profundas defici�ncias de racioc�nio matem�tico. Este � o �nico ��salto qualitativo�� que encontraremos nas salas de aula da Vila Planalto, da Candangol�ndia etc.

��Mas, como dizia Freud, h� v�rias formas de ignorar o princ�pio de realidade. Por exemplo, quando o Pisa (Programa Internacional de Avalia��o de Alunos) indica com todas as letras o baixo desempenho dos nossos alunos e demonstra que 51% dos alunos de 15 anos est�o no n�vel mais baixo de aprendizado, a professora se indigna: ��N�o � justo exigir das nossas crian�as o mesmo desempenho das europ�ias��. Sim, mas eu s� queria que elas tivessem o mesmo desempenho das crian�as da Indon�sia, da Alb�nia, da Tail�ndia, do M�xico e da Let�nia: todos pa�ses que se sa�ram melhor do que n�s na avalia��o do Pisa ampliado. Talvez a professora Rejane ache um absurdo comparar as crian�as do Brasil com as da Alb�nia: este grande ex-farol do comunismo que passou por todo o tipo de atraso, instabilidade, desgoverno e loucura administrativa nas �ltimas d�cadas. Esta mesma Alb�nia � onde h� at� bem pouco tempo a defini��o de ��mat�ria�� presente nos livros did�ticos de f�sica era uma frase do camarada L�nin � tem crian�as mais bem preparadas em ci�ncias do que as nossas! E o que dizer do fato de a Indon�sia gastar menos por aluno que o Brasil e, no entanto, ter alunos com melhores desempenhos escolares? Mas, justi�a seja feita, as ��vit�rias�� e os ��saltos qualitativos�� j� conseguiram colocar nossas crian�as na frente das crian�as peruanas.

��Ao inv�s deste triste espet�culo de tentativa de esconder cat�strofes, creio ser mais produtivo para o pa�s reconhecer a grave crise educacional herdada. Est� na hora de chamarmos de gato um gato e mostrarmos a incapacidade do projeto educacional anterior em incluir, com um m�nimo de qualidade, aqueles que estavam fora das escolas.
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Universidades e mundos paralelos
Mas o ponto alto do artigo da professora Rejane diz respeito �s universidades. Os n�meros s�o absolutamente parciais. Por exemplo, seguindo a l�gica peculiar do salto qualitativo, ela n�o compreende por que, para mim, ��o crescimento de 62% no n�mero de estudantes universit�rios, em seis anos, n�o acrescenta nenhuma qualidade � forma��o da juventude brasileira��. Talvez isso fique mais claro se lembrarmos que, no �ltimo prov�o, 41,8% dos alunos participantes tiraram nota C (ou seja, diploma absolutamente sem valor). Em cursos com grande n�mero de institui��es privadas, temos percentuais de n�vel C ainda mais assustadores: psicologia (69,7%), jornalismo (54,9%) e administra��o (49,1%). Como voc�s podem ver, um verdadeiro show de qualidade.

��Em outro momento, ela insiste em defender a pol�tica anterior para as universidades p�blicas ao lembrar que o n�mero de alunos cresceu 33% no governo FHC. S� que esquece de dizer que o n�mero de professores n�o acompanhou tal crescimento. Ao contr�rio, herdou-se um d�ficit de 7 mil professores nas universidades p�blicas. � f�cil imaginar o impacto desse descompasso nas condi��es de trabalho e na qualidade. Durante os anos tucanos, greves enormes foram feitas para sensibilizar o governo a contratar mais professores.

��J� posso ver a professora Rejane dizer que n�o � verdade, que o governo cuidou, e muito, da qualifica��o do ensino superior p�blico. Afinal, ��dos cem mil alunos de mestrado e doutorado, 83% est�o no sistema p�blico de ensino superior�� e ��o n�mero de trabalhos cient�ficos publicados pelos nossos pesquisadores nas melhores revistas internacionais cresceu 98%��. O detalhe � que o primeiro dado apenas mostra como o ensino privado (salvo honrosas exce��es que nunca devem ser esquecidas) est� longe de poder responder por uma parcela significativa da pesquisa brasileira, j� que a universidade p�blica sempre foi respons�vel pela quase totalidade dos mestrados e doutorados. Quanto ao segundo dado, s� gostaria de lembrar uma coisa. Se houve continuidade nas pesquisas brasileiras, isso se deve muito mais � tenacidade dos pesquisadores brasileiros (acostumados a trabalhar em condi��es adversas) do que a esta pol�tica governamental marcada pelo desmantelamento do CNPq, pela diminui��o do n�mero e valor das bolsas de doutorado e pelo contingenciamento de verbas de pesquisa.

��Mas se a professora ainda tem alguma d�vida sobre a crise educacional da qual seu partido foi colaborador-mor, recomendo exerc�cio simples: uma pesquisa com os professores. V� �s escolas e universidades e pergunte aos professores sobre a qualidade do ensino e as condi��es de trabalho. Talvez descubra que sua vis�o diz respeito a um mundo paralelo que tem muito pouco a ver com a realidade cotidiana das institui��es de ensino no Brasil.

Professor de filosofia na Universidade de S�o Paulo, Vladimir Safatle
reveza-se neste espa�o com Andr� Lemos, Denilson Lopes e Ligia
Cademartori.
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