Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, s�bado, 5 de julho de 2003 � Página Inicial

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Vladimir Safatle

Da Arte de Esconder Elefantes


Todos conhecem a f�bula hindu sobre tr�s cegos em volta de um elefante. Cada cego toca apenas uma parte do animal e tira suas conclus�es. Assim, um cego toca a tromba e afirma estar diante de uma cobra. O outro, pega no rabo e deduz que se trata, afinal, de um cip�. O terceiro abra�a a perna do animal e cr� que o objeto da querela � na verdade uma �rvore. Esta t�tica de fragmenta��o � maravilhosamente utilizada quando certos setores da m�dia querem esconder um fato grande como um elefante. Um dia, aparece a tromba, que � apresentada como uma cobra. No outro, � a vez do rabo, vendido como um cip�, e por a� vai. O resultado final � que ningu�m v� o elefante, que passa inc�lume. Mas ningu�m poder� acusar a imprensa de n�o ter apresentado os fatos.

��Isso est� ocorrendo com o debate escamoteado a respeito da heran�a deixada pelo governo passado na �rea da educa��o nacional. Durante anos, a educa��o foi vendida como prova m�xima da efici�ncia gerencial tucana, motivo de pr�mios internacionais, grandes projetos de reforma e loas da imprensa nacional. Sim, todos diziam que o pa�s estava enfim dando grandes passos na moderniza��o de seu sistema educacional. A imagem foi criada e n�o havia dado capaz de indicar o contr�rio. Quando, no decorrer destes oito anos, algum dado negativo sa�a aqui ou ali, quando descobr�amos, por exemplo, que a qualidade educacional continuava na mesma e que os alunos brasileiros continuavam sabendo menos matem�tica e ci�ncias que os alunos da Let�nia e do M�xico (�ltimo resultado do Pisa � Programa Internacional de Avalia��o de Alunos), o governo logo se levantava para questionar a metodologia e anular o debate. Isso quando simplesmente n�o dizia que era isso mesmo, mas que oito anos eram muito pouco para a grande revolu��o prometida. Diga-se de passagem, s� para contextualizar melhor a quest�o do tempo necess�rio, a hist�ria da rep�blica n�o conhece nenhum ministro da Educa��o, � parte Gustavo Capanema, que tenha ficado tanto tempo no cargo quanto o �ltimo.

��Mas a partir de um certo momento n�o dava mais para esconder o elefante. Restou ent�o dividi-lo. Assim, nos �ltimos meses, temos assistido � situa��o pitoresca que consiste em ver a imprensa divulgando, todas as semanas, mais um dado problem�tico sobre educa��o sem nunca juntar os pontos e determinar suas causas. Esta recusa sistem�tica em juntar os pontos � recusa em dizer claramente o nome do problema: o projeto educacional tucano foi catastr�fico e deve ser repensado em suas bases. A heran�a � maldita, seus resultados s�o pobres e urge que a sociedade civil tome consci�ncia disso para discutir o que ainda � poss�vel ser feito.
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Universidade: segunda prateleira � direita
O que dizer do resultado final dos tr�s grandes n�veis da educa��o nacional: o universit�rio, o m�dio e o fundamental? Sobre as universidades, tudo o que se pode dizer �: ��Universidades? Ah, ent�o, o senhor vai na segunda prateleira � direita e depois passa no caixa. Fique tranq�ilo, pois aceitamos pr�-datado.��

��A partir do diagn�stico correto de que era necess�rio aumentar drasticamente a oferta de vagas e o n�mero de inscritos nas universidades, a sabedoria de ent�o conseguiu criar uma situa��o verdadeiramente monstruosa. Em 1991, a Universidade de S�o Paulo (USP) era a maior universidade do pa�s, com 31 mil alunos e outras nove universidades p�blicas estavam entre as 20 maiores. Desde 2001, a maior universidade do pa�s � a Universidade Paulista (Unip), com 81 mil alunos, seguida da Universidade Est�cio de S�, com 60 mil alunos. Duas universidades privadas que t�m um ensino de p�ssima qualidade, tanto � assim que a Unip tem a honra de ver 51,6% de seus cursos avaliados com nota C (que significa ��mantenha dist�ncia, quatro anos da sua vida perdidos��), enquanto a Est�cio de S� ganha esta dif�cil disputa com 60% de cursos premiados com um grande C na entrada. Al�m dessas duas p�rolas, atualmente mais 14 institui��es privadas aparecem no ranking das 20 maiores, incluindo um ��centro universit�rio�� de trocadilho infame: a UniverCidade.

��N�o se trata aqui de simplesmente criticar as universidades privadas, at� porque o Brasil conhece institui��es privadas de excelente qualidade e com grande investimento em pesquisa (PUC, FGV, ESPM, por exemplo). A quest�o � outra. Trata-se de perguntar: a quem beneficia esta expans�o indiscriminada de institui��es privadas de ensino superior? Com certeza, n�o ao pa�s. O que o Brasil precisa n�o � de diplomados. O que precisamos � de conhecimento e pesquisa. Isso, nenhuma dessas universidades repletas de cursos avaliados em C e sem vis�o do que � uma verdadeira institui��o acad�mica pode garantir.

No entanto, algu�m poderia dizer: mas o governo anterior criou mecanismos de avalia��o, como o prov�o, al�m do que, ele sustentou institui��es de financiamento � pesquisa, como a Capes. Sobre a Capes, o que pode ser dito � que estamos diante de um desses �rg�os do governo federal que sobrevive bravamente a todas as intemp�ries da vida nacional. Mesmo na ditadura militar e na era Collor, a Capes continuava subsidiando a pesquisa brasileira.

O mesmo n�o podemos dizer do CNPQ, que foi praticamente liquidado na era tucana. Sobre o prov�o, vale a pena lembrar como ele foi insuficiente para garantir um m�nimo de qualidade no ensino p�blico superior. Tanto que chegamos na situa��o em que estamos: 20% da pesquisa nacional continuam sendo realizados pela USP, os ��centros universit�rios��, que t�m autonomia para abrir cursos sem investimento algum em pesquisa, proliferaram como v�rus (s� o DF viu, nos �ltimos anos, mais 42 institui��es de ensino superior) e, depois do fim do vestibular e do aparecimento do ��processo seletivo��, vemos casos de analfabetos (isso n�o � uma met�fora) serem aceitos em cursos de jornalismo. Inclusive, s�o essas institui��es que formar�o futuros professores do ensino m�dio e fundamental, alimentando um c�rculo vicioso de m� forma��o que afeta, principalmente, a educa��o p�blica.

��� muito agrad�vel lembrar da resposta dada invariavelmente pelo ex-ministro da Educa��o quando era perguntado sobre tal situa��o: ��A concorr�ncia do mercado regular� a qualidade��. Sim, claro. E eu que ingenuamente acreditava que o crit�rio e a fiscaliza��o rigorosa de qualidade eram fun��o do MEC. O mercado regula t�o mal a qualidade que algumas das universidades que mais crescem n�o s�o lembradas exatamente pela excel�ncia no ensino. Sendo o mercado o guia, fica a quest�o: se o aluno descobre, no meio do curso, que entrou em uma bomba, ele ter� seu dinheiro e tempo de volta?

��Para fechar o quadro, n�o esque�amos da heran�a deixada no ensino p�blico superior. O descaso foi tamanho que, no ano passado, as universidades p�blicas contavam com um d�ficit de 7 mil professores para funcionar normalmente. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 1991 era a segunda maior universidade do pa�s, encolheu 10%. Cursos foram fechados por falta de professores e v�rias universidades entraram em um processo de obsolesc�ncia. Enquanto isto, a ��grande reforma�� na educa��o continuava.
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Ensino fundamental: a grande ilus�o
Normalmente, os defensores mais l�cidos do antigo projeto educacional diziam: ��H� problemas nas universidades, mas os avan�os no ensino fundamental s�o ineg�veis. A evas�o e a repet�ncia diminu�ram, todos os indicadores progridem, Par�metros Curriculares Nacionais foram criados��, e por a� vai. Conv�m apenas lembrar alguns fatores.

��Primeiro, como em boa parte dos �ndices sociais do antigo governo, h� n�meros que progridem de maneira est�vel h� d�cadas e n�o podem ser derivados diretamente das pol�ticas implementadas nos �ltimos anos. Por exemplo, de 1991 a 2000, o analfabetismo passou de 19,7% da popula��o para 13,6%. Mas, na verdade, isso s� demonstra que o �ndice obedece a uma curva constante de decr�scimo. Em 1960, a taxa era de 39,7%, em 1970, 33,7%, em 1980, 25,9%, em 1991, 19,7% e em 2000, 13,6%. Ou seja, a cada dez anos, desde 1960, o analfabetismo cai algo em torno de 6%.

��Por outro lado, ningu�m discute a alta qualidade dos PCNs com seus 230 pareceristas contratados s� para elaborar o referencial curricular nacional para a educa��o infantil, mas o fato � que o problema da qualidade do ensino p�blico continua. Sem entrar no m�rito da degrada��o financeira da profiss�o de professor na escola p�blica e sem voltar, por exemplo, ao absurdo do veto presidencial � obrigatoriedade de filosofia e sociologia no ensino m�dio, um veto alimentado pelo MEC de ent�o, � necess�rio sublinhar ao menos um ponto na quest�o da qualidade.

��Sabemos bem, por exemplo, o que est� por tr�s da diminui��o da repet�ncia e da evas�o. Nos �ltimos anos, o governo federal implementou gradativamente uma pol�tica de progress�o continuada nas escolas p�blicas. Trata-se de um eufemismo para ��aprova��o autom�tica�� que s� serve para maquiar problemas e inflar n�meros de excel�ncia. Os professores simplesmente n�o podem mais reprovar um aluno que, na pior das hip�teses, vai para uma turma de ��acelera��o��. Dessa forma, alunos s�o aprovados sem ter os requisitos m�nimos para cursar a s�rie seguinte sob o pretexto paternalista vulgar de que a reprova��o causa danos ps�quicos, como perda de auto-estima etc. Um psicologismo do mais baixo cal�o. O resultado � a constata��o assustadora de que � poss�vel encontrarmos alunos na 8� s�rie incapazes de saber, por exemplo, que pr�-hist�ria vem antes da hist�ria contempor�nea. Mais ainda. Podemos encontrar alunos que s�o simplesmente incapazes de ler um texto de seis par�grafos e compreend�-lo. Nesse contexto, d� para entender o n�mero espantoso de analfabetismo funcional que encontramos atualmente, e por que 35% dos analfabetos passaram pela escola.

��A respeito de problemas como esses, valeria a pena fazer algo que at� agora ningu�m fez: para sabermos as causas exatas da qualidade atual do ensino p�blico, que tal perguntarmos aos professores do ensino p�blico? Ningu�m melhor do que eles para informar o verdadeiro impacto das pol�ticas educacionais adotadas e quais as mudan�as necess�rias. Que tal perguntarmos, por exemplo: o alunos que chegam � 8� s�rie s�o mais informados e preparados do que h� 10 anos? O que mudou? E que a culpa pela diminui��o no n�vel de conhecimento dos alunos n�o seja colocada na sociedade contempor�nea, dominada pelas imagens midi�ticas alienantes, pela desagrega��o da fam�lia, pela desarticula��o das tradi��es, pela apatia generalizada etc. Este problema � brasileiro. V�rios pa�ses, que tamb�m participam das mesmas situa��es sociais da contemporaneidade, continuaram com uma exig�ncia real de qualidade no ensino p�blico e n�o chegaram no ponto em que estamos hoje. Mas, para resolvermos isso tudo, ser� preciso encarar o elefante.

Professor de filosofia da USP e encarregado de curso no Col�gio Internacional de Filosofia, em Paris,
Vladimir Safatle reveza-se neste espa�o com Denilson Lopes, Ligia Cademartori e Andr� Lemos.
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