Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, s�bado, 4 de janeiro de 2003 � Página Inicial

Diretoria de Eventos do Planalto

Nomea��o de Gilberto Gil para o Minist�rio da Cultura indica
inexist�ncia de pol�tica de esquerda para o setor

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Tropicália

A posse de Lu�s In�cio Lula da Silva na presid�ncia do Brasil foi um acontecimento hist�rico. Muito j� se falou sobre a for�a simb�lica da fa�anha em colocar um ex-oper�rio de esquerda no comando deste que j� foi chamado "o pa�s dos bachar�is". A maioria do povo brasileiro assumiu o desejo de trilhar um verdadeiro caminho alternativo na condu��o das pol�ticas s�cio-econ�micas do pa�s. Este desejo por alternativas mostra que a tarefa de Lula consiste em governar mostrando o que pode ser, atualmente, uma verdadeira pol�tica p�blica de esquerda.

� a partir de tal perspectiva que devemos nos perguntar sobre o sentido da pol�mica indica��o de Gilberto Gil para o Minist�rio da Cultura (MinC). Com certeza, ela n�o foi resultante de composi��o com os imperativos do mercado, at� porque o mercado � absolutamente indiferente ao nome que vai ocupar o minist�rio com o menor or�amento da Esplanada. Lula poderia colocar o PSTU no Minist�rio da Cultura e nenhum operador de mesa de c�mbio iria perder seu tempo discordando. Tamb�m n�o foi composi��o pol�tica, j� que fere todas as leis do bem senso acreditar que um partido sem senador e com apenas 5 deputados federais tenha peso suficiente para exigir um minist�rio.

Talvez nem valha a pena entrar no m�rito da extrema sensibilidade pol�tica expressa pela sua primeira declara��o como ministeri�vel, na qual Gil reclamava do sal�rio de ministro ou ainda, da segunda declara��o, na qual afirmava que levaria um gravador para compor m�sica no gabinete. Mais importante � lembrar que, mesmo se olharmos para as qualidades t�cnicas de Gilberto Gil, a soma dos n�meros continuar� dando zero. Suas duas experi�ncias administrativas n�o deixaram lembran�as. Ao ser eleito vereador em Salvador, Gil ficou famoso por faltar a 63% das sess�es plen�rias. N�o consta que ele tenha apresentado algum projeto de envergadura ligado a pol�tica p�blica cultural ou planejamento de financiamento para a cultura. Assim como nada consta em sua passagem pela Secretaria Municipal da Cultura de Salvador, a n�o ser a organiza��o de eventos musicais t�o relevantes quanto a turn� internacional do Casiopeia: um grupo de jazz fusion japon�s.

Mas poder�amos defender a nomea��o dizendo que Gil � m�sico reconhecido internacionalmente e produtor cultural de longa data, o que o qualificaria para ser Ministro. Eis algu�m que poderia democratizar o acesso � cultura atrav�s de uma pol�tica consistente de eventos. De fato, � isto que Gilberto Gil tem prometido atualmente atrav�s da defesa da lei de incentivos que data da era Collor. Neste sentido, vale a pena lembrar que o Minist�rio da Cultura n�o � uma Diretoria de Promo��o de Eventos. Pensar que pol�tica cultural se resume a organizar eventos atrav�s, principalmente, de dinheiro de grandes empresas � um equ�voco imperdo�vel para um governo de esquerda. Tudo se passa como se estiv�ssemos abrindo m�o da oportunidade hist�rica de desenvolver uma verdadeira mudan�a na pol�tica cultural.

No fundo, isto nos deixa com a impress�o que a esquerda n�o pensou, de forma aprofundada, uma pol�tica p�blica para o setor. O que talvez explicaria a inexist�ncia de um nome natural para ocupar a pasta, ao contr�rio do que aconteceu com o Minist�rio do Meio Ambiente. N�o sabemos ao certo quais seriam suas a��es concretas, a n�o ser a otimiza��o e a racionaliza��o do uso da m�quina cultural dispon�vel. O que ela acha de entidades como a Embrafilme, de museus como o Guggenheim, da pol�tica broa de milho, de leis como as que obrigam emissoras de TV a veicularem uma certa porcentagem de produ��o nacional de dif�cil acesso? Vale a pena ter uma pol�tica de cria��o de espa�os para a produ��o da m�sica erudita contempor�nea, da dan�a etc.? Se os grandes �cones culturais da era FHC foram Carla Perez e Ratinho, quais �cones a esquerda quer deixar? Quest�es desta natureza continuam em aberto.

Mas, voltando a Gilberto Gil, talvez a justificativa mais plaus�vel para coloc�-lo � frente do MinC tenha sido investimento em imagem. Duda Mendon�a deve ter soprado no ouvido do presidente que cairia bem ao governo ter algu�m simp�tico para aparecer na imprensa e levar em viagens internacionais. Algu�m que representasse bem a vitalidade popular da cultura nacional. Se esta foi realmente a raz�o, s� resta dizer que n�o haveria imagem mais equivocada e que est� na hora da intelectualidade brasileira ter uma avalia��o mais contundente a respeito da tropic�lia e de seus resultados.

Ao ser confirmado no cargo, Gil afirmou que agora a tropic�lia estava no poder. Na verdade, nos �ltimos vinte anos, a tropic�lia nunca esteve fora do poder. N�o se trata apenas de constatar a continuidade de uma rela��o faustiana entre seus expoentes maiores e os donos do poder, como Antonio Carlos Magalh�es, Roberto Marinho e o pr�prio Fernando Henrique Cardoso. O fato � que h� muito a tropic�lia virou a express�o m�xima do establishment da ind�stria cultural brasileira. O que n�o poderia deixar de ser diferente, j� que sua tentativa de instaurar uma dial�tica entre arte e mercadoria entrou em colapso a partir do momento em que ela foi operada no interior da forma-mercadoria sem modificar suas estruturas maiores. A b�n��o de Caetano Veloso em rela��o � ax� music est� longe de ser casual.

Por outro lado, nenhum movimento est� t�o comprometido com a repeti��o dos significantes-mestres que comp�em o cerne da ideologia nacional quanto a tropic�lia. De uma certa forma, a cultura brasileira � mais conservadora do que a pol�tica brasileira. Desde o paleol�tico, carregamos os mitos fundadores de um certo exotismo tropical, uma forma de gozo solar, uma sensualidade sem conflitos, um lugar onde todas as contradi��es se dissolvem no ritmo manhoso do batuque blablabl�. N�o � dif�cil encontrar estes motivos na antec�mara ideol�gica da m�sica brasileira atual. Mesmo porque, a aus�ncia de rupturas radicais, o medo do negativo e a consolida��o de um conjunto de standards e tiques formais no per�odo p�s-tropic�lia facilitaram a transforma��o da m�sica popular em ve�culo privilegiado de exposi��o de um certo conjunto de imagens fundadoras da nossa fantasmagoria social. Por tudo isto, em um momento hist�rico onde as expectativas de ruptura e de inova��o podem enfim ser realizadas, a escolha de Gilberto Gil foi uma ducha fria naqueles que sempre se preocuparam com os rumos da cultura no Brasil.

Vladimir Safatle � Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris 8
e encarregado de curso no Col�gio Internacional de Filosofia, em Paris.

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