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São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002 � Página Inicial

Um Novo Realismo

Autor do "Pequeno Tratado de Inest�tica", que est� saindo no Brasil,
Alain Badiou diz que a arte precisa descartar o conceito gasto de vanguarda
e privilegiar a inven��o construtiva

Vladimir Safatle
especial para a Folha
Alain Badiou

Alain Badiou, 70, � hoje um dos nomes mais influentes da filosofia francesa. Professor da Escola Normal Superior, em Paris, al�m de romancista e dramaturgo, ele � conhecido por sua cr�tica feroz ao relativismo e a todo pensamento que abandone categorias como verdade e universal.

Com v�rios livros editados no Brasil [como "Deleuze" (ed. Jorge Zahar) e "Para uma Nova Teoria do Sujeito" (ed. Relume-Dumar�)], ele lan�a no in�cio de novembro, pela editora Esta��o Liberdade, o "Pequeno Tratado de Inest�tica", uma colet�nea de ensaios que tratam do limite tenso entre arte e filosofia.

Na entrevista abaixo, concedida ao Mais! por e-mail e telefone, Badiou fala de sua trajet�ria e da rela��o entre arte e pol�tica.

Sua trajet�ria � peculiar, j� que o sr. � um fil�sofo cujos primeiros livros s�o dois romances ("Almagestes", de 1964, e "Portulans", de 1967). Sua produ��o como dramaturgo conta com quase uma dezena de livros. Como a pr�tica liter�ria influenciou suas decis�es filos�ficas?

No meu caso, a voca��o de escritor foi origin�ria. Escrevi meu primeiro romance quando comecei os estudos em filosofia. Na �poca, meu mestre era Sartre, que escrevia filosofia, mas tamb�m romances, pe�as de teatro, ensaios pol�ticos. Isso me mostrou a inexist�ncia de contradi��o entre a escritura liter�ria e a escritura filos�fica. Na verdade, acredito que, para compreender essa tradi��o francesa, � necess�rio retornar ao per�odo cl�ssico. Montaigne, Pascal, Rousseau, Diderot s�o escritores e fil�sofos. Hoje, Derrida, Deleuze ou Ranci�re trazem tamb�m um cuidado absoluto � escritura. E voc� sabe como Lacan � um escritor precioso.

Claro que essa tradi��o liter�ria tem conseq��ncias filos�ficas. Trata-se da liga��o entre filosofia e vida real, entre a filosofia e outras formas de pensamento e de cria��o. Nossa id�ia de filosofia se op�e ao modelo alem�o e, posteriormente, ao modelo norte-americano do fil�sofo como especialista isolado no mundo acad�mico. Para n�s, o fil�sofo est� no interior da cidade, ele � militante, amante, artista. Ele s� se transforma em professor por raz�es de sobreviv�ncia material. Mesmo Descartes era um solit�rio independente, estranho � filosofia oficial da Sorbonne. Na verdade, ele preferia discutir com as mulheres do que com os professores.

Em seu livro, o sr. pensa um novo regime de articula��o entre filosofia e arte atrav�s do conceito de "�tica", pois as grandes tend�ncias do recurso filos�fico � arte teriam se esgotado. Por que a filosofia teria fracassado na sua tentativa de pensar a arte?

A filosofia tem dificuldade em reconhecer plenamente a independ�ncia da arte. A arte � por si mesma um pensamento, ela n�o necessita do fil�sofo, o inverso � mais correto.

Mas n�o devemos levar esse reconhecimento at� o desprezo est�tico pela filosofia, como Nietzsche. Nietzsche admira a pot�ncia vital da arte e trata o fil�sofo, identificado ao padre, como o "criminoso dos criminosos". N�s precisamos de novos conceitos capazes de evitar tanto o imperialismo conceitual (a arte � apenas um momento secund�rio na vida do esp�rito) quanto o imperialismo est�tico (a arte � o �nico pensamento sens�vel e vivo). No final do s�culo 19, n�s acredit�vamos poder substituir o fil�sofo de Plat�o pelo artista-rei. � necess�rio um caminho entre essas duas imagens.

� esse imperialismo est�tico que o faz criticar Heidegger e a hermen�utica?

A hermen�utica de Heidegger sempre me surpreendeu por sua pouca aten��o �s opera��es art�sticas do poema. Trata-se sempre de inserir a poesia em uma esp�cie de destino do pensamento, de mostrar como certos poemas (de H�lderlin, de Trakl, de Rilke) guardam o ser contra seu esquecimento metaf�sico. A singularidade dos poetas desaparece em uma profecia sobre o "tempo do afastamento" e sobre o retorno salvador.

Ao contr�rio, meu prop�sito consiste em descobrir a singularidade das opera��es da poesia em sua irredutibilidade. Creio ter feito isso ao falar do isolamento em Mallarm�, da interrup��o em Rimbaud, da encena��o do s�culo em Mandelstam.

Nessa mesma linha, examinei a rela��o po�tica original entre Pessoa e o Platonismo. Um grande poema n�o � a voz do ser nem um encaminhamento em dire��o � palavra. Ele � uma experimenta��o local do pensamento no infinito da l�ngua. Ele prop�e uma solu��o a um problema preciso cujos dados ele pr�prio construiu por meio de imagens, cad�ncias e estilo afirmativo.

O sr. diz que a arte do s�culo 20 foi animada pela "paix�o do real". Mas v�rios cr�ticos de arte avaliam a arte atrav�s de categorias como virtual, simulacro e mimetismo. Por que essa perspectiva seria inadequada para apreender a arte contempor�nea?

Essa paix�o do real n�o diz respeito apenas � arte. Ela serve para explicar os empreendimentos pol�ticos violentos que quiseram fundar uma nova ordem coletiva por meio de uma ci�ncia do real (como o marxismo, por exemplo). Tais empreendimentos alcan�aram a destrui��o, mas n�o a constru��o. Eles inventaram a��es revolucion�rias que fracassaram na constru��o de um novo Estado.

Da mesma forma, a arte foi cada vez mais destrutiva: ela atacou a representa��o, a imita��o, a pr�pria obra. As considera��es sobre o virtual, o simulacro, as atividades de instala��es, a "body art" apenas continuaram essa tend�ncia negativa.

Para mim, uma boa parte da arte contempor�nea est� atrasada em rela��o ao movimento geral do pensamento e �s novas quest�es filos�ficas e pol�ticas. Ela � ainda uma arte da primeira metade do s�culo 20, uma arte que ressuscita artificialmente um conceito gasto de vanguarda.

A �nica filosofia adequada �s exig�ncias da arte que vir� � uma filosofia afirmativa, que privilegie a inven��o construtiva e n�o a desconstru��o. Em suma, uma filosofia que proponha um novo conceito de verdade.

E o sr. identifica hoje algum projeto est�tico capaz de pensar essas novas quest�es filos�ficas e pol�ticas?

Eu n�o gostaria de distribuir valores aos artistas. Isso seria manifestar novamente o imperialismo filos�fico. Toda obra que procura dizer nosso mundo em sua extens�o e variedade me interessa.

Nesse sentido, continuo um realista, um cl�ssico contempor�neo. Mas, se a vanguarda esgotou seus recursos, n�o devemos retornar aos sistemas antigos de representa��o, seja a figura��o na pintura, a tonalidade na m�sica, a narra��o objetiva na literatura ou a teatralidade simplificada no cinema. A vis�o p�s-moderna de um ecletismo livre que mistura �pocas e culturas tamb�m me � estranha.

Procuro um novo conceito de verdade e n�o cederei �s tenta��es do relativismo cultural. Para mim, trata-se de inventar um novo realismo, uma capacidade formal de dizer, universalmente, nossa situa��o no mundo. Foi o que tentei em meu romance "Calme Bloc Ici-bas" (1998). N�o o cito por vaidade, mas para assumir uma responsabilidade.

Sobre esse novo conceito de verdade, o sr. afirmou que a modernidade filos�fica ainda n�o est� � altura de Fernando Pessoa. Como sua poesia pode orientar a filosofia nessa procura?

Veja, a for�a de sua poesia n�o vem do reconhecimento de uma autoridade sacral ou de uma revela��o do ser. A constru��o po�tica de Pessoa � essencialmente racionalista, e o poema est� a servi�o de uma medita��o centrada na quest�o da metaf�sica. Pessoa coloca a seguinte quest�o: se a metaf�sica em seu sentido estritamente filos�fico se tornou imposs�vel, como a poesia pode falar em seu pr�prio nome dessa impossibilidade e dos meios de reconstruir uma estrutura geral para o pensamento.

A partir dessa quest�o, Pessoa se entrega a opera��es po�ticas complexas, cujo sistema de heter�nimos � apenas uma recapitula��o formal.

Creio que a filosofia contempor�nea se enfraquecer� consideravelmente se insistir em ignorar tais opera��es. � surpreendente que os heideggerianos n�o levem em considera��o o pensamento do ser nos poemas de Caeiro.

O sr. � o principal te�rico da esquerda a defender uma pol�tica sem partido. N�o haveria nenhuma pol�tica poss�vel de esquerda no interior do sistema parlamentar de representa��o?

Precisamos primeiro redefinir o que � uma pol�tica "de esquerda". A quest�o hoje n�o � exatamente a exist�ncia de orienta��es pol�ticas, mas a exist�ncia da pr�pria pol�tica. Depois do fracasso dos Estados p�s-revolucion�rios, estamos diante da tarefa de desenvolver um projeto completo de emancipa��o coletiva. N�s estamos ainda no est�gio experimental desse projeto. Mas uma coisa � certa: devemos romper com o sistema de representa��o parlamentar e com a ideologia "democr�tica" ocidental.

Essa ruptura ser� facilitada por uma evid�ncia: cada vez mais esse "democratismo" apenas serve para encobrir as interven��es militares e as inger�ncias, particularmente do Ex�rcito norte-americano, mas com a cumplicidade ou com a resigna��o covarde dos europeus e japoneses. � necess�rio experimentar outras vias e romper com o monop�lio pol�tico exigido pela "democracia".

Vladimir Safatle � doutor pela
Universidade de Paris 8 e encarregado de cursos no
Coll�ge International de Philosophie.

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