Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 1� de setembro de 2002 � Página Inicial

Ru�nas em Road Movie

A est�tica do real em Mulholland Drive, de David Lynch,
� uma estrada que abre novas e geniais perspectivas para o cinema

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

David Lynch

"N�o fa�a parecer real, at� que se torne real". Este � o conselho que o diretor de cinema d� � garota que vai fazer seu primeiro teste para tornar-se atriz. A garota � Betty Elms: uma das duas protagonistas de Mulholland Drive, o mais audacioso filme de David Lynch. Este � um conselho mais precioso do que aparenta. Ele nos dir� porque s� um tempo como o nosso poderia produzir um filme como Mulholland Drive. Um dia algu�m ir� escrever um livro sobre a psicologia dos funcion�rios da empresas de distribui��o cinematogr�fica. Ent�o, talvez possamos descobrir porque eles teimam em dar nomes est�pidos para filmes que n�o entendem. Cidade dos Sonhos � um exemplo cl�ssico deste sintoma patol�gico. Mulholland Drive � extremamente pertinente � natureza do filme e remete a um dos elementos centrais dos filmes de Lynch: a estrada. Ela n�o est� presente apenas em A Estrada Perdida, de 1997. Cora��o Selvagem e Uma Hist�ria Real, s� para ficar entre os mais evidentes, s�o filmes estruturados como um road movie.

O fato � que Mulholland Drive tamb�m � algo como um road movie, e n�o � por acaso que placas de tr�nsito, indica��es de ruas e outros sinais de deslocamento aparecem de maneira t�o recorrente no filme. Basta lembrarmos que um road movie �, na verdade, a hist�ria de um processo de forma��o. N�s seguiremos algu�m que ir� fazer uma viagem e chegar� ao seu destino, mas nesse trajeto ele ir� se deparar com um acontecimento que destruir� seu antigo e limitado horizonte de compreens�o. Dessa destrui��o, ele sair� transformado em outra pessoa. Depois dessa viagem, ele nunca mais ser� o mesmo. Neste sentido, Mulholland Drive � o road movie perfeito ou, talvez, o �nico road movie sobre a impossibilidade de um road movie.

Costuma-se dizer que Mulholland Drive n�o tem uma hist�ria. Se analisarmos bem, o filme tem uma hist�ria que chega a ser relativamente simples. Betty Elms chega a Hollywood vinda de uma pequena cidade do Canad�. Ela quer ser algu�m: "Uma atriz ou uma estrela", � o que ela diz. Seu corpo rec�m-egresso da adolesc�ncia denuncia a vontade de chegar a portar aquilo que faz de uma mulher um objeto de desejo. Durante dois ter�os do filme ela n�o cansar� de repetir que tudo est� correndo como em seus sonhos. Tudo se passa como uma viagem que apenas repete as imagens perfeitas do folheto de turismo.

Mas Betty encontra uma mulher que parece sa�da dos filmes de Rita Hayworth. Ela n�o sabe de onde veio, seu nome � falso, sua mem�ria foi apagada em um acidente de carro. Tudo o que ela tem � uma bolsa cheia de d�lares e uma chave azul. Nada mais previs�vel: uma quer ser algu�m, a outra n�o sabe quem � mas tem beleza cinematogr�fica, trejeitos de estrela e dinheiro, ou seja, tudo o que faz algu�m ser. Na verdade, uma quer ser aquilo que a outra j� � sem saber.

Mulholland Drive funciona assim como um road movie de m�o dupla: uma mulher quer construir uma hist�ria do presente para o futuro, a outra quer reconstituir sua hist�ria do presente para o passado. Entre as duas h� um filme que deve ser feito, mas ningu�m se entende sobre quem deve ocupar o lugar da atriz principal. Por enquanto, o lugar da mulher est� vazio. A atriz foi dada como morta. Mas o filme deve continuar e algu�m deve vir ocupar o lugar que ficou vazio, mesmo que para isso devamos preench�-lo com personagens que est�o apodrecendo.

"N�o fa�a parecer real, at� que se torne real". Este � o conselho que o diretor de cinema deu � garota que foi fazer seu primeiro teste para tornar-se uma atriz. E, realmente, durante dois ter�os do filme, nada parece real em Mulholland Drive. Todos os personagens parecem falsos ou caricatos. Cada um nos d� a impress�o de ter sa�do de um filme que j� vimos: o diretor de cinema usa roupa preta e �culos de intelectual como todo diretor de cinema, os policiais s�o est�pidos como todos os policiais, os managers da ind�stria cinematogr�fica s�o mafiosos como todos os managers. Os personagens s�o carregados demais e �s vezes parecem lutar contra qualquer coisa de sobre-humano para poderem repetir suas falas e desempenhar seus pap�is. Tudo parece ter sido reaproveitado, como em uma liquida��o de antigos clich�s da hist�ria do cinema que j� n�o funcionam direito.

Mas h� uma impress�o ainda mais forte que atravessa Mulholland Drive. � dif�cil n�o nos sentirmos diante de um filme que, de uma certa forma, j� deveria ter acabado. Nesse sentido, a cena paradigm�tica � o primeiro teste de Betty Elms na sua trajet�ria para ser algu�m. O produtor do filme � um velho arruinado, o gal� com o qual ela dever� atuar � um sessent�o com bronzeado estilo Miami Vice, o diretor do filme � algu�m que est� repetindo a mesma coisa h� anos. Betty Elms parece ter chegado tarde demais, seu filme ficou velho. Da mesma forma que nossos filmes ficaram velhos demais. Os quadros de sociabiliza��o se mostram incapazes de suportar uma produ��o de identidade sem produzir um resto que n�o se enquadra em cena alguma.

Este � um dos pontos de genialidade do filme e que diz respeito ao processo geral de cria��o de David Lynch. Na m�o de outro cineasta, este argumento de uma garota ing�nua que vai para Hollywood a fim de vencer na vida e encontra uma mulher misteriosa e com amn�sia viraria uma hist�ria trivial. Mas Lynch sabe que esta hist�ria n�o pode mais ser contada – ela est� gasta demais – e trata-se de mostrar isso a todo momento. A forma da estrutura narrativa nega o conte�do da hist�ria que ela deveria suportar. � desse conflito que vem a impress�o irredut�vel de estranhamento pr�prio a Mulholland Drive. Vivemos em um mundo onde investimos libidinalmente em ru�nas. Nesse sentido, Lynch nos oferece uma via de sublima��o ao se servir de um dos dispositivos maiores da arte contempor�nea, cujo eixo de desenvolvimento est� exatamente em for�ar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de t�o visto, parecia n�o poder significar mais nada. O que era muito familiar deve se transformar em estranho. Um procedimento que Lynch j� havia levado ao extremo em Twin Peaks com sua hist�ria da pequena cidade pacata e il�dica que, aos poucos, vai se dissolvendo em uma rede de conflitos obscuros e interfer�ncias sobrenaturais. Ao saber instaurar conflito na utiliza��o de formas gastas da hist�ria do cinema e de uma gram�tica vazia, Lynch � capaz de filmar com ru�nas.

SIL�NCIO E SEXO
Mas se Mulholland Drive � um road movie, ent�o para onde ele ir� levar Betty Elms? Para o mesmo lugar que Lynch levou Fred Madison, o protagonista de A Estrada Perdida. Para um encontro traum�tico com um destino que s� pode se realizar como queda. Assim, na �ltima cena de A Estrada Perdida, Lynch deixou Madison gritando em um carro em alta velocidade no meio de uma persegui��o. Em Mulholland Drive, ningu�m dir� a Betty Elms: "This is the girl". Ela nunca ocupar� o lugar deixado vazio. A �ltima palavra do filme ser� simplesmente: "Sil�ncio".

Sil�ncio � o nome de um teatro de ilus�es que aparece na �ltima ter�a parte do filme. � l� que ter� lugar o verdadeiro acontecimento da viagem de Betty Elms. � l� que ela vai realizar esta mudan�a de identidade que � o destino de todo road movie.

Na verdade, tudo aconteceu um pouco antes. Betty est� deitada na cama, pronta para dormir. A outra mulher, Rita at� ent�o, est� l�, encostada na porta, a fragilidade feminina envolta em uma toalha. "Por que voc� n�o vem dormir aqui?", diz Betty. Segundos depois as duas estar�o transando. "Esta � a primeira vez que voc� faz isto?", pergunta Betty. "Eu n�o me lembro", diz Rita. Mas n�s sabemos que � a primeira vez que Betty faz isto. E depois disso feito ela n�o poder� mais voltar atr�s. Rita ter� um sonho: "No hay banda, no hay orquestra", � o que ela dir� enquanto dorme. Ao acordar, ela levar� Betty a Sil�ncio.

Essa n�o � a primeira vez que sexo aparece como lugar de verdade nos filmes de Lynch. Em Veludo Azul, hav�amos seguido Jeffrey at� a casa de Dorothy Vallens, uma misteriosa cantora de cabar� que n�o deixa de nos remeter � mesma constela��o sem�ntica de fragilidade e sedu��o de Rita. L�, escondido dentro de um arm�rio, ele descobre o ritual masoquista e incestuoso que liga Dorothy a Frank: um bandido violento e impotente. Ao se deparar com esta opacidade que marca tudo o que � da ordem do sexual, Jeffrey poder� completar seu destino. Em A Estrada Perdida, Fred Madison � casado com uma mulher novamente parecida com Rita. Ela se chama Ren�e. Tudo o que sabemos � que Fred matou Ren�e, isto depois de uma cena onde ele aparece suando e at�nito depois de ter transado com sua mulher. No final do filme, algo desta cena se repete quando Pete, que est� no lugar de Fred, conseguir enfim transar com Alice, que est� no lugar de Ren�e. "Voc� nunca vai me ter" � o que ela diz ao final.

Mas por um instante Betty teve Rita e o resultado foi que as duas chegaram a um teatro chamado Sil�ncio. L� est� um ilusionista que repete as mesmas palavras "No hay banda. Il n'y a pas d'orchestre. It's just illusion." Quando ela ouve estas palavras, Betty treme como se estivesse possessa. Nada estranho para algu�m que passou o filme inteiro repetindo que tudo parecia um sonho perfeito. Mas Lynch n�o parece muito interessado em simplesmente fazer uma forma de cr�tica ao fetichismo ao mostrar que corremos atr�s de imagens que, no fundo, s�o ilus�es. Seu jogo � outro e muito mais radical.

Esse jogo se desvela quando uma cantora latina entra no lugar do ilusionista. Ela ir� cantar a capela, uma velha can��o de amor. Mesmo tendo sido advertidas de que tudo seria ilus�o, de que tudo certamente se tratava de um playback, Betty e Rita choram compulsivamente. E mesmo no interior de um universo de simula��es e imagens gastas, algo acontece. Em meio a uma artificialidade que n�o teme dizer seu nome, uma experi�ncia da ordem do real enfim tem lugar. Esta experi�ncia n�o � a revela��o de algo perdido ou de uma espontaneidade origin�ria massacrada pelo nosso mundo industrial. Ela � o estranhamento daqueles que se v�em investindo libidinalmente em ru�nas, daqueles que se v�em cantando palavras vazias, daqueles que se descobrem transando uma imagem perfeita. It's just illusion, sim, eu sei, mas n�o posso me impedir de chorar. E esta � talvez a grande li��o que David Lynch tem a nos dar: toda arte aut�ntica conhece a expressividade do inexpressivo e sabe que s� haver� experi�ncia do real quando perdermos o medo de entrarmos em um teatro de ilus�es.

Mas Betty n�o realizou seu destino. � verdade que ela teve uma experi�ncia que a transformou definitivamente. Agora, ela � Diane. Mas Diane � uma atriz fracassada e deprimida, ela nunca ouviu "This is the girl". Diane � ningu�m, seu road movie n�o chegou a lugar algum. Tudo o que ela pensa em fazer � assassinar aquela imagem que nunca ser� sua e que sempre ocupar� o lugar no qual ela gostaria de estar. Para Diane, a experi�ncia do real foi uma experi�ncia de destrui��o. Mas, para Lynch, ela foi uma sublima��o. Porque o desejo de Diane continuou preso ao mesmo sistema de imagens que o aprisionou e o constituiu. Enquanto David Lynch nos mostrou que o �nico destino poss�vel para n�s consiste em aprendermos a construir estradas com ru�nas.

Vladimir Safatle é mestre em Filosofia pela Universidade de S�o Paulo
e professor-visitante no Col�gio Internacional de Filosofia, em Paris.

Página Inicial

Hosted by www.Geocities.ws

1