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São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002 � Página Inicial

A Face Oculta da Guerra

O cineasta grego Costa-Gavras fala de seu novo filme, "Amen", que ataca a omiss�o da igreja
e dos aliados em rela��o aos campos de concentra��o nazistas

Vladimir Safatle
especial para a Folha
Costa-Gavras

Costa-Gavras � um cineasta que n�o teme quest�es pol�micas. "Os melhores assuntos s�o aqueles que todos preferem esquecer." Prova disso � seu �ltimo filme, que n�o deve chegar ao Brasil antes de setembro. Baseado na pe�a "O Vic�rio", de Rolf Hochhuth, "Amen" conta a hist�ria real de Kurt Gerstein, um oficial da SS que trabalhava ativamente na estrutura��o dos campos de concentra��o enquanto tentava alertar a Igreja Cat�lica sobre o Holocausto. Ajudado pelo padre Riccardo Fontana, Gerstein descobrir� que a igreja prefere n�o escutar o que ele tem a dizer.

O filme, que coloca em quest�o a cumplicidade de Pio 12 em rela��o ao Shoah, provocou uma rea��o em cadeia. Seu cartaz quase foi proibido na Fran�a devido a uma a��o da Frente Nacional, o partido de Jean-Marie le Pen. Cria��o de Oliviero Toscani, ele mostrava uma su�stica fundida em uma cruz. Por outro lado, o Vaticano prometeu abrir "uma parte" de seus arquivos da �poca devido ao mal-estar causado pela pol�mica em rela��o � atua��o de Pio 12. Nesta entrevista exclusiva, Costa-Gavras fala de pol�tica, religi�o e cinema.

Como surgiu a id�ia de fazer um filme sobre o Holocausto a partir de "O Vic�rio"?

Trata-se de um projeto antigo. Desde os anos 70 eu queria fazer um filme a partir da perspectiva do "outro lado" da guerra. T�nhamos muitos filmes que assumiam o lado das v�timas, mas quase nenhum se colocava na posi��o dos alem�es. Um dado sempre me impressionou nessa hist�ria: os campos de concentra��o precisavam de algo em torno de 45 mil a 50 mil pessoas para funcionarem. Eu me perguntava como era poss�vel que tantas pessoas levantassem de manh�, durante quatro anos, para ir metodicamente a um trabalho que consistia em destruir outras pessoas. Havia um belo livro que expunha esse paradoxo e que se chamava "A Morte � Minha Profiss�o", de Robert Merle: uma biografia do comandante de Auschwitz (Rudolf Hoess). Da� veio minha primeira id�ia para um filme, mas o personagem era terr�vel.

Nem norte-americanos nem franceses quiseram bancar o projeto. Eu abandonei a id�ia at� que, tempos depois, Claude Berri me perguntou: "Por que voc� n�o faz um filme a partir de o 'Vic�rio'?". Li o livro e vi que poderia dar um bom filme. Na verdade, o que mais me chamou a aten��o foram os dois personagens principais: Kurt Gerstein, o oficial da SS, e Riccardo Fontana, o padre. O primeiro personagem � verdadeiro, o outro � fict�cio, mas baseado em uma composi��o de hist�rias de padres cat�licos que combateram o nazismo. Os dois t�m em comum a liga��o com a f� crist� e a necessidade de resisitir a todo o custo a partir de suas convic��es �ticas.

Um historiador alem�o, Peter Steinbach, escreveu a respeito de Kurt Gerstein: "Sua forma de resist�ncia pode nos transtornar, mas ela tem t�o poucas conseq��ncias que � incapaz de impedir grande coisa". O Sr. concorda?

Sou totalmente contra essa id�ia, pois ela submete toda resist�ncia a um c�lculo. Segundo essa l�gica, se uma rea��o diante da opress�o pode n�o ter resultado, ent�o � melhor n�o se mexer. Eu acho que devemos sempre resistir contra o imposs�vel e o insuport�vel. Mesmo que, na maioria dos meus filmes, aquele que resiste acabe por fracassar, ao menos ele deixa um tra�o na hist�ria e permite que o futuro seja ainda poss�vel.

� essa aus�ncia de resist�ncia que o sr. critica no Papa Pio 12?

Meu filme limita-se a mostrar uma verdade hist�rica: o papa nunca levantou a voz contra o Holocausto, mesmo sabendo de tudo. O espectador decide o que pensar a respeito. Tento n�o fazer julgamento moral, mas acredito que o chefe espiritual de dezenas de milh�es de fi�is deveria ter uma atitude mais clara em rela��o a eventos dessa natureza.

O sr. acredita que a hist�ria poderia ter sido diferente se ele tivesse denunciado o exterm�nio de judeus?

Muitos crist�os na Europa salvaram centenas de milhares de judeus, principalmente na Fran�a. Mas eles fizeram isso isoladamente. Acredito que, se o papa tivesse tomado uma posi��o e engajado a infra-estrutura da Igreja Cat�lica, a quantidade de pessoas salvas seria muito maior.

Al�m do mais, vale a pena lembrar que seu antecessor, Pio 11, havia escrito duas enc�clicas contra o racismo e preparava uma terceira. Pio 12 simplesmente n�o as editou.

Isso demonstra como ele estava muito mais preocupado em combater o stalinismo e assegurar a sobreviv�ncia da igreja do que em lutar contra o racismo nazista.

Por coincid�ncia, seu filme sai no momento em que a Igreja Cat�lica discute a beatifica��o de Pio 12.

Sim, trata-se de uma coincid�ncia, pois o que me interessa � o lado pol�tico da hist�ria, n�o a figura de Pio 12 em si mesma. O que n�o me impede de refletir sobre a quest�o. Do meu ponto de vista, beatificar algu�m significa reconhecer que ele alcan�ou um n�vel moral extremamente elevado, que ele fez atos de uma import�ncia �tica indiscut�vel.

Se a igreja acha que esse � o caso de Pio 12, ela que o beatifique. Tudo o que posso dizer � que, na condi��o de papa, ou seja, de algu�m que deveria ser a autoridade moral do Ocidente, ele n�o tinha o direito de se calar diante do Holocausto.

Mas, no seu filme, vemos que essa indiferen�a em rela��o ao Holocausto n�o era apenas um monop�lio da igreja. Os representantes dos pa�ses aliados tamb�m aparecem tentando esquivar-se do reconhecimento da exist�ncia dos campos de concentra��o.

� isso que sempre me impressionou nessa hist�ria: todos sabiam, mas cada um tinha suas raz�es para continuar passivo. Roosevelt tinha preocupa��es nacionais, j� que existia nos EUA um anti-semitismo formid�vel que poderia influenciar nas elei��es presidenciais. Churchill e De Gaulle tamb�m n�o se pronunciaram. � essa deposi��o da resist�ncia que me interessa. Os aliados sabiam dos campos, mas nunca os bombardearam.

No �ltimo Festival de Berlim, o senhor chegou a afirmar que o Vaticano � um aparelho de poder que age muitas vezes sem levar em conta pressuposi��es �ticas.

Isto porque ele muitas vezes age como poder pol�tico que segue raz�es de Estado e finezas diplom�ticas, em vez de agir como poder moral. O resultado muitas vezes � desastroso, j� que os Estados est�o habituados aos monstros. Veja o exemplo da Am�rica Latina. Pelo que sei, o Vaticano n�o tomou posi��o alguma contra o desaparecimento de presos pol�ticos no Chile e na Argentina. Em Ruanda, o chefe local da igreja era ligado ao partido respons�vel pelos massacres. N�s conhecemos a hist�ria de padres que aceitaram que suas igrejas plenas de refugiados fossem destru�das por escavadeiras. S�o hist�rias que nos fazem questionar o papel da igreja na sociedade. Por outro lado, sei que h� uma enorme quantidade de prelados que n�o partilham dessas posi��es. Penso, por exemplo, em dom H�lder C�mara, com quem jantei uma vez em uma recep��o organizada pelo [ent�o presidente franc�s Fran�ois] Mitterrand. Ele dizia: "Quando eu trago alimento para os pobres, dizem que eu sou um santo, quando eu questiono a raz�o pela qual os pobres n�o t�m alimentos, dizem que eu sou comunista".

Essa n�o � a primeira vez que a igreja aparece como alvo de cr�ticas em seus filmes. J� em "Estado de S�tio" (1973), por exemplo, ela aparecia pr�xima do poder militar uruguaio.

A raz�o � simples: Para mim, os compromissos pol�ticos da igreja muitas vezes a impedem de assumir posturas �ticas que, no meu ponto de vista, seriam necess�rias. Com "Amen", eu queria mostrar esse conflito. De um lado dois crist�os, um protestante e um cat�lico, que agem de acordo com o discernimento dado pela f�. De outro, a igreja, que vai ficando cada vez mais distante e cada vez mais presa aos jogos pol�ticos. O div�rcio era inevit�vel.

O senhor sempre foi associado a um certo tipo de cinema engajado que praticamente desapareceu de cena na �ltima d�cada. Do seu ponto de vista, h� ainda espa�o para articular cinema e pol�tica?

Creio que h� muita coisa mudando ultimamente nesse sentido. A meu ver, ap�s a queda do Muro de Berlim muitos acreditaram que os grandes conflitos pol�ticos haviam terminado. Isso teve conseq��ncias claras na produ��o cinematogr�fica, que restringiu seu campo de articula��o com a pol�tica. Mas h� algum tempo n�s percebemos que a situa��o social n�o melhorou muito e em certos casos, como na �frica, ela piorou. Al�m do mais, a globaliza��o, que para mim � uma verdadeira transforma��o da civiliza��o, acabou produzindo o ressurgimento da extrema direita e da extrema esquerda. Todos esses fatores nos permitem acreditar que, aos poucos, um novo cinema pol�tico tende a aparecer.

Vladimir Safatle realiza doutorado na
Universidade de Paris e � encarregado de cursos no
Coll�ge International de Philosophie.

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