Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 28 de abril de 2002 � Página Inicial

O Lado Negro da Lua

Primeiro turno da elei��o presidencial francesa revela um pa�s desconhecido que ter�
de optar entre dois representantes do conservadorismo – no pior sentido da palavra

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Le Pen e Chirac

"Eu tenho vergonha de ser franc�s." Esta foi uma das frases mais ouvidas nas ruas de Paris depois do an�ncio do resultado do primeiro turno das elei��es presidenciais francesas. Jean-Marie Le Pen, chefe do maior partido de extrema-direita e mundialmente famoso pelo seu discurso xen�fobo, racista e anti-semita, alcan�ava 16,9% dos votos, indo disputar o segundo turno com Jacques Chirac: um pol�tico t�o corrupto quanto Berlusconi ou o nosso Maluf. A esquerda tinha desaparecido nas sombras. Tratava-se da maior vota��o de um partido de extrema-direita em uma elei��o presidencial europ�ia desde a Segunda Guerra.

"Uma Fran�a amedrontada triunfa", afirmou o editorialista do Lib�ration, no dia seguinte. E talvez o mundo tenha de encar�-la por um bom tempo. Ao contr�rio do que a m�dia francesa procura veicular, o voto em Le Pen n�o � um voto de protesto, nem um simples sinal de descontentamento com a classe pol�tica. Como dizia Adorno, uma das li��es que o nazismo deixou � a de que, �s vezes, � est�pido ser inteligente. Pois os inteligentes sempre procuram argumentos finos para n�o verem aquilo que � evidente. Basta lembrar dos 15,3% que esta mesma extrema-direita francesa alcan�ou na corrida presidencial de 1995 e dos 14,4% na seguinte, de 1988. Isso demonstra como h� um eleitorado fiel da extrema-direita que n�o apareceu ontem. Ou seja, este voto � ideol�gico e reflete uma mentalidade social arraigada.

Ela pode ser encontrada, por exemplo, em Guebwiller: pequena e apraz�vel cidade de 11 mil habitantes do interior da Als�cia, cercada de vinhedos e vales cobertos de flores. Guebwiller n�o tem problemas de desemprego e n�o conhece algo como um "fluxo de imigra��o". O �ltimo �rabe que passou por l� foi expulso por Carlos Magno na batalha contra os mouros, em 800 d.C. Ningu�m dir� a voc� que � racista ou vai desfilar nas ruas com uniformes paramilitares e bra�o direito estendido. No entanto, a maioria de seus habitantes acredita que existem imigrantes demais, que a inseguran�a nas ruas � insuport�vel e que n�o h� como aceitar o multiculturalismo da "Europa", que ir� acabar com a exce��o cultural francesa. Eles votaram em Le Pen, e v�o continuar assim por um bom tempo.

Isso nos lembra como o verdadeiro fascista n�o � o militante violento com p�steres de Hitler no quarto. A base do fascismo sempre foi composta de cidad�os pacatos, que se sentem de repente amea�ados pela "inseguran�a" vinda das mudan�as iminentes no meio ambiente em que vivem. E � gra�as a eles que descobrimos uma Fran�a fechada em si mesma, amedrontada pelo outro, pela diferen�a, pelo futuro. Apesar da extrema-direita estar em alta em v�rios pa�ses da Europa (�ustria, It�lia, Su��a, Dinamarca, Noruega, Pa�ses Baixos e B�lgica), isto n�o exime a Fran�a de fazer algo de que ela sempre se esquivou: uma autocr�tica severa a respeito das deforma��es de parcelas de sua sociedade em rela��o aos ideais democr�ticos.

Outra autocr�tica deve ser feita pela esquerda francesa. � verdade que Lionel Jospin conseguiu fazer uma das piores campanhas da hist�ria. Vazia, com vergonha de se assumir como esquerda, incapaz de colocar novas pautas no cen�rio pol�tico e totalmente prisioneira do debate direitista sobre seguran�a. Quando ele decidiu operar uma guinada � esquerda, j� era tarde. Mas � imperdo�vel que grandes setores do eleitorado tenham deixado de votar por acreditar que, no final das contas, Jospin e Chirac eram a mesma coisa. Alguns chegaram a cobrir Paris com declara��es de Pierre Bourdieu sobre a necessidade de "dar uma li��o" na "falsa esquerda". Prova de que os intelectuais s�o �s vezes os �ltimos a identificar os reais perigos nas sociedades em que vivem. Adorno again: �s vezes � est�pido ser inteligente.

O pior erro em pol�tica � n�o saber identificar as diferen�as. Jospin fez o governo com maior n�mero de reformas sociais da Europa (35 horas de trabalho por semana, seguro-sa�de universal, casamento para homossexuais, lei de paridade, empregos-jovens etc.). Sua honestidade era absoluta. A capacidade de ouvir setores organizados da sociedade civil era real. Mas sequer os outros partidos integrantes da sua base de sustenta��o (verdes e comunistas) foram capazes de defender os resultados de seu governo. Totalmente dividido, 10% do eleitorado de esquerda preferiu votar em uma extrema esquerda cujo simplismo de vis�o pol�tica deixaria at� o brasileiro PSTU envergonhado. � verdade que Jospin estava longe de ser o candidato dos sonhos de um eleitorado que clama por algu�m mais combativo e disposto a procurar outros modos de rela��o com o capital. Mas, na nossa �poca, a primeira fun��o da pol�tica � evitar cat�strofes. E, por n�o compreender isso, a Fran�a ser� obrigada a escolher seu presidente entre um escroque e um fascista.

Vladimir Safatle é mestre em Filosofia pela
Universidade de São Paulo e professor-visitante
no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris.

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