Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 3 de fevereiro de 2002 � Página Inicial

A Novidade Radical

Com Triple Quartet, Steve Reich mostra a maturidade musical do minimalismo

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Steve Reich

Muito falado e pouco ouvido. Este parece continuar a ser o caso de Steve Reich. Quando o techno apareceu e precisava ainda de uma carta de recomendações, alguns DJs mais informados elegeram Stockhausen e Steve Reich como avôs espirituais do movimento. O primeiro devido às pesquisas com música eletroacústica. O segundo graças a sua forma peculiar de construir música por meio de processos de repetição.

"Resolvi virar DJ quando tomei um ácido e ouvi Steve Reich", dizia Plastikman, um dos arautos da então chamada Intelligent Techno. O nome de Reich apareceu em revistas de grande circulação, alguns DJs, como Spooky, chegaram a fazer CDs de remixes com suas músicas, mas nada disso bastou para popularizar sua música. Reich está longe de ter a aceitação de um Philip Glass: outro nome fundamental do minimalismo norte-americano, juntamente com John Adams e Terry Riley. Talvez porque haja algo na sua música que ainda incomoda e pede novas estratégias de audição.

De qualquer forma, Steve Reich acaba de lançar um novo disco e esta é uma boa oportunidade para redescobri-lo. Editado pela Nonesuch no final do ano passado, Triple Quartet é o seu primeiro novo trabalho depois de 1996. Ele demonstra a maturidade de uma pesquisa musical sistemática e obsessiva na utilização dos pressupostos do minimalismo. Pesquisa capaz de produzir peças como o homônimo Triple Quartet: quarteto de cordas de rara expressividade construído através de uma quantidade extremamente limitada de recursos da escrita musical.

REPETIR PARA DISSOLVER
Foi a partir dos anos 60 que a linguagem musical de Reich começou a ser constituída. Ela nasceu de uma decisão estética simples que consistia em reduzir radicalmente todos os níveis da escrita musical. Reich conjugava uma gramática na qual não havia espaço para considerações elaboradas sobre melodia, harmonia, intensidade e outros elementos tradicionais da linguagem musical. A música transformava-se assim apenas na repetição incessante de um fragmento de voz ou de uma pequena série melódica.

A especificidade desta repetição é que ela era construída a partir de procedimentos, denominados por Reich, de phasing. Phase é a conseqüência da sobreposição do mesmo fragmento musical, mas com uma pequena defasagem no tempo. Qualquer um pode fazer isso em casa atualmente. Basta pegar dois gravadores, colocar a mesma música nos dois e deixar uma reprodução atrasar. O resultado será um fenômeno muito próximo ao que vemos no antigo cânone medieval, no qual cantores diferentes cantam a mesma frase em tempos distintos. Mas no caso de Reich, a repetição era articulada de tal maneira (às vezes com a sobreposição de até oito vozes diferentes) que o resultado final era uma espécie de autodissolução do material musical. Depois de um certo tempo, o fragmento de voz ou a série melódica ficava irreconhecível, soterrado na massa de vozes repetidas em fase. Peças como It's Gonna Rain, Come Out e Piano Phase obedeciam a esta mesma lógica. Neste novo CD, encontramos Electric Guitar Phase, que também vai na mesma direção: um riff de guitarra repetido em fase durante 15 minutos e que acaba por produzir efeitos de contraponto inusitados até ficar totalmente irreconhecível.

Reich conceitualizou o resultado deste procedimento musical em um texto hoje clássico chamado Music as a Gradual Process. Tal como Robert Morris e Sol LeWitt nas artes plásticas, Reich pregava uma estética por meio da qual o sujeito descolaria sua atenção do conteúdo da obra a fim de perceber o processo de constituição. Ou seja, no seu caso, o ouvinte vai gradativamente deixando de prestar atenção no fragmento repetido para começar a perceber o processo gradual de modificação do mesmo fragmento. Ele aprende assim a assistir à dissolução do material musical.

O músico norte-americano acabou, com isso, descobrindo uma modalidade totalmente nova de repetição na música. Pois até então a música conhecera apenas duas modalidades diferentes de repetição.

A primeira é a repetição que encontramos na música tonal tradicional, como, por exemplo, na forma-sonata. A estrutura de uma sonata é formada necessariamente por processos de repetição de frases melódicas e articulações harmônicas. Neste sentido, para ouvirmos uma sonata precisamos de memória a fim de identificarmos as várias incidências de uma mesma frase com suas modificações e modulações. O sentido da música depende fundamentalmente da rememoração do material musical. Quer dizer, esta repetição tradicional é rememoração. O problema é que a ligação da música à memória está hoje em vias de desaparecer. Até porque, como nos lembra Adorno, as pessoas hoje têm dificuldade em ouvir a totalidade de uma obra musical. Ao invés de procurar reconstruir a organicidade funcional da obra, elas tendem a prestar atenção em partes isoladas: um certo motivo da melodia, um momento de virtuose técnica do violinista etc. Temos assim uma "audição atomizada" da música.

É interessante perceber como Reich sabe se servir desta característica da forma contemporânea de ouvir música e transformar, assim, perdas em ganhos. Basta ouvirmos, por exemplo, Tokyo/Vermont Counterpoint, a última faixa de seu novo CD. Trata-se de uma nova versão de uma antiga peça para flautas e flautins. No lugar dos instrumentos de sopro, Reich decidiu utilizar marimbas MIDI que tiveram seu timbre alterado para ficarem mais staccato. Reich inicia a música com uma pequena seqüência ritmo-melódica. Aos poucos, outras seqüências vão sendo acrescentadas, formando um tecido rico de contrapontos com até quatro vozes totalmente distintas. Não existe aqui constituição de uma totalidade, apenas a injeção de camadas de música umas sobre as outras. A audição, assim, não precisa de memória narrativa, já que cada instante já é, de uma certa forma, totalidade.

Mas se a música de Reich não é necessariamente ligada à idéia de repetição como rememoração, ela também não tem muita coisa a ver com esta segunda modalidade de repetição em música, e que é própria à circularidade da música modal (música de rituais, canto gregoriano etc.). Trata-se de uma repetição que visa criar uma experiência de transe que nos transportaria a uma outra temporalidade, ligada à noção de tempo mítico. Aqui, a repetição teria ligação com o sagrado e o ritmo seria pulsação hipnótica que nos levaria a uma experiência de destituição subjetiva. Não foram poucos os que acreditaram, por exemplo, que a repetição do techno teria algo a ver com estas experiências de transe na música modal. Como se, no final das contas, todos nós encontrássemos a comunhão com o tempo mítico perdido em uma rave de Goa trance.

Eis aí um erro completo. A música moderna desconhece qualquer função ritual pela simples razão que ela é desprovida de audição ritualizada. Satie tinha sido o primeiro a perceber isto ao afirmar que sua música era música de decoração, ou seja, algo que fica no fundo e passa quase despercebido. Na verdade, todas estas tentativas de retorno ao caráter mítico ou sagrado da música só podem ser vistas como nostalgia de uma promessa de gozo do tempo mítico perdido. O diagnóstico weberiano do desencantamento do mundo ainda ressoa como constatação inadmissível para alguns. E, muitas vezes, a música acaba sendo obrigada a suportar as promessas de felicidade de uma sociedade que não sabe como realizá-las.

Mas qual é então a especificidade da repetição em Steve Reich? Longe de ser uma repetição ritualizada ou uma repetição própria à rememoração, a repetição de Reich é uma dissolução. É isso que a peça homônima Triple Quartet nos mostra.

Este quarteto que dá nome ao CD é interpretado com precisão pelo Kronos Quartet. O quarteto é "triplo" porque é composto de três partes quase idênticas tocadas simultaneamente. Duas estão pré-gravadas em tape e a terceira é tocada ao vivo. Isso permitiu a Reich dispor de, na verdade, doze instrumentos.

É difícil escutar a peça e não se lembrar do Allegro Molto do Quarteto n� 4 de Bártok: uma das grandes obras de música de câmara do século 20. A impressão da vizinhança vem provavelmente da utilização "percussiva" das cordas, que resulta na marcação contínua e agressiva da pulsação. Mas a esta pulsação regular, Reich acrescenta sua maestria na utilização das defasagens. As pequenas seqüências que compõem a obra são marteladas até dissolverem-se na pulsação contínua do ritmo. No final, nenhuma construção melódica consegue se impor e se destacar da massa pulsional da música. Como se o que restasse fosse a individualidade de cada melodia lutando para se fazer presença. Uma luta que só pode continuar porque a individualidade teima em repetir insistentemente as ruínas do que sobrou de um possível desenvolvimento melódico. Raras foram as vezes em que a música contemporânea conseguiu uma expressividade trágica desta natureza.

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