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São Paulo, domingo, 14 de outubro de 2001 � Página Inicial

O Monopólio da Enunciação

Colette Soler, psicanalista francesa que participa de seminário no Brasil,
discute os caminhos da disciplina

Vladimir Safatle
especial para a Folha
Colette Soler

Seu nome está intimamente ligado aos desdobramentos do lacanismo nestes últimos 20 anos. Colette Soler foi uma das fundadoras da Escola da Causa Freudiana e peça maior da divisão que gerou, em 1998, a última das grandes dissidências na constelação psicanalítica: os Fóruns do Campo Lacaniano. Entre os dias 19 e 21 de outubro, ela estará no Brasil para participar do 2� Fórum Nacional, cujo tema será "O que se espera de um psicanalista?" (informações pelo tel. 0/XX/11/3826-2542). A tal pergunta ela não deixa de responder na entrevista a seguir.

O que podemos esperar de um psicanalista em uma época como a nossa, marcada pelas discussões em torno da crise da psicanálise?

Nós estamos em uma época em que tudo caminha no sentido de uma homogeneização cada vez maior da vida. Cada um de nós é, de alguma forma, instrumentalizado pelo estado da sociedade. Nas vidas sexual e profissional, nós somos reduzidos à condição de objeto, em vez de alcançarmos a condição de sujeito. Nesse sentido, a psicanálise é um discurso que nada contra a corrente. É por isto que a mídia anuncia regularmente o fim da psicanálise.

A verdade é que o discurso da ordem social deseja o fim da psicanálise. Se ele não deseja o fim das psicoterapias é porque elas vão ao encontro das expectativas de readaptação e de conformação próprias ao modelo de sucesso e felicidade veiculado principalmente pela mídia. Para o discurso da ordem social, curar significa fazer o deprimido trabalhar e reintroduzir o solitário à vida em casal.

A voz da prática psicanalítica diz outra coisa. Ela permite a cada sujeito apreender um pouco melhor aquilo que ele é, aquilo que ele produziu, aquilo que o determina e, principalmente, aquilo que depende de suas escolhas. No fundo, a psicanálise tenta permitir que o sujeito descubra sua singularidade.

Há alguma relação entre essa noção de psicanálise como defesa da singularidade e o tema de sua conferência no Brasil, "variantes da destituição subjetiva"?

Sim. A destituição subjetiva foi um conceito inventado por Lacan para marcar o fim de análise. O sujeito entra em análise dizendo: "Eu não sei o que acontece comigo". Ele não sabe por que tem tais sintomas, por que não pode suportá-los. Mas será que falando podemos encontrar aquilo que somos? Nós podemos encontrar muita coisa por meio da fala, mas há sempre algo que escapa. Na dimensão da palavra, o sujeito é sempre um enigma. Por isso, o desejo é necessariamente inconsciente. Ao tentar falar sobre o desejo, há um momento em que chegamos ao "umbigo", onde não podemos mais avançar.

Aqui entra a idéia de destituição subjetiva. Ela consiste em dizer que, no final da análise, o sujeito saberá alguma coisa. Mas é um saber diferente, pois é saber sobre aquilo que, no interior de si mesmo, não é sujeito e, conseqüentemente, não acede à palavra.

Trata-se disso que a psicanálise chama de objeto do gozo: essa parte de gozo que ele trazia em si mesmo e da qual nada sabia. Aí está a singularidade revelada pela psicanálise.

A seu ver, quais as principais questões que Lacan deixou em aberto?

O ensino de Lacan é composto por problemas que avançam, já que as respostas se transformam continuamente em novas questões. Lacan não conservou nenhuma de suas conclusões. Para os lacanianos, há o desafio de saber qual o peso das indicações do último período de seu ensinamento. Todo mundo conhece o Lacan de "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", do sujeito da linguagem. Mas o último período do seu ensinamento é algo totalmente diferente e ainda falta tirarmos suas implicações clínicas.

Por outro lado, eu acredito que, se há algo que resta vivo em Lacan, é a incidência do seu desejo. Quando Lacan apareceu, ele representou um novo desejo na psicanálise, um novo entusiasmo. O movimento analítico estava imerso em uma prática rotinizada e se repetia conceitualmente. Lacan nunca cedeu em seu desejo de renovar a psicanálise, isso mesmo depois de ter sido expulso da Associação Psicanalítica Internacional, mesmo depois de ter sido traído a torto e a direito.

Eu não sei se essa dimensão é sentida da mesma maneira em outros países. Eu a sinto menos presente no Brasil, já que Lacan não viveu lá e os lacanianos o acolheram por meio de um movimento de transferência em sua direção. Já na França, como Lacan viveu aqui, o conflito em torno da sua doutrina e da sua pessoa continua vivo.

Uma boa parte de seus textos trabalha a relação entre psicanálise e estética. Qual o lugar da estética no interior da teoria psicanalítica?

Sobre esse ponto, há uma grande diferença entre Freud e Lacan. De um lado, tanto Freud quanto Lacan acreditavam que o poeta antecipava o psicanalista. Mas a idéia de Freud era fazer uma psicanálise aplicada, como se fosse possível interpretar obras de arte da mesma maneira como interpretamos a palavra, os sonhos e os atos falhos do analisando. Ele tratou obras de arte na qualidade de representantes do sujeito. Seu erro foi acreditar que por meio da obra poderíamos analisar o autor.

Essa não é a posição de Lacan. Para ele, está claro que não podemos interpretar o criador por meio de sua criação. Nós podemos apenas interpretar a criação. Pegue, por exemplo, Stephen Hero, de James Joyce. Você pode interpretar Stephen: o sujeito suposto no texto. Mas não podemos em nenhum caso dizer que esse sujeito é o sujeito Joyce.

Seu nome é hoje muito vinculado à última ruptura ocorrida no interior do movimento lacaniano. No seu ponto de vista, por que ela aconteceu?

A necessidade dessa ruptura já estava latente havia muito tempo. Nós saímos de uma associação muito bem gerida, onde havia muito trabalho. Mas, ao fim de 20 anos, a orientação que se impôs administrava a comunidade analítica por meio de um monopólio da enunciação. O que é muito estranho se pensarmos que a psicanálise tenta fazer cada um trabalhar a partir da sua singularidade.

É verdade que tal imperativo de singularidade coloca novos desafios à instituição. Ele transforma a comunidade de psicanalistas em uma questão analítica - e não uma questão política separada. A maneira como os analistas são coletivizados em uma comunidade influenciará a forma como eles praticam a psicanálise e o que se passsa em uma cura. Era isso que tínhamos em mente ao renovarmos a tentativa de fundar uma escola.

Vladimir Safatle é doutorando em epistemologia
da psicanálise pela Universidade de Paris 8

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