Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 26 de agosto de 2001 � Página Inicial

Atravessar Fronteiras

Alguns Ensaios: Filosofia, Literatura, Psicanálise (Bento Prado Jr. � Editora Paz e Terra)

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Fernando Sampaio/AE
Bento Prado Jr.
21/8/37-12/1/07

"Os limites da natureza estão sempre em farrapos." A frase é de Alfred North Whitehead mas poderia muito bem ser de Bento Prado Jr. (foto). No seu caso, com pequena adaptação: "Os limites da filosofia estão sempre em farrapos." E se tem algo que Bento Prado nos ensinou foi como é possível fazer filosofia a partir daquilo que aparece à experiência contemporânea na condição de "farrapos": material descontínuo e aparentemente irredutível à costura da reflexão.

Primeiro, nenhum outro filósofo brasileiro explorou com tanta sistematicidade os limites da filosofia, ou seja, esses momentos especulativos onde a filosofia está prestes a abandonar o solo seguro de seus objetos para se transformar em "outra coisa". Momentos nos quais ela se deixa contaminar pelos procedimentos que moldam a especificidade dos textos literários, da psicanálise, da praxis e adjacências. Em um país que aprendeu a fazer filosofia seguindo o receituário estóico da dissertação universitária francesa pré-68 e que via todo e qualquer desejo de escapar da rotina dos especialistas como recaída na falta de rigor dos "pensadores" locais do tipo Silvio Romero e Tobias Barreto, sustentar uma experiência intelectual como esta é uma aposta que exige muitas fichas.

Algumas dessas fichas voltaram às livrarias com o relançamento da coletânea Alguns Ensaios: Filosofia, Literatura, Psicanálise. Escritos entre 1968 e 1982, são textos marcados por um movimento peculiar que Paulo Arantes chamou de "alta costura filosófica"; quer dizer, deslizamentos e jogos de planos que nos permitem passar de Freud a David Hume, de Guimarães Rosa a Heidegger.

No primeiro ensaio, "Auto-reflexão ou Interpretação sem Sujeito: Habermas Intérprete de Freud", Bento desenvolve crítica perspicaz à maneira como Habermas compreende a psicanálise. Para Habermas, a interpretação psicanalítica nada mais seria do que auto-reflexão. Ou seja, quando o analisando senta em um divã, ele tem uma demanda clara: ele quer ser curado de seus sintomas. O psicanalista seria este que, por meio da interpretação e do manejo da transferência, permitiria ao sujeito "compreender" o que os sintomas procuram dizer e "traduzir" em uma linguagem pública e articulada, aquilo que só tinha encontrado expressão na linguagem privada da doença. Nessa operação, o analisando poderia produzir a narrativa consistente do Todo da sua história.

Talvez Habermas nunca tenha visto Marnie: Confissões de uma Ladra, de Alfred Hitchcock, mas desde então sua leitura da psicanálise ganhou um duplo cinematográfico. Marnie tinha sofrido um trauma na infância ao presenciar um assassinato envolvendo sua mãe. Este trauma fora expulso de sua consciência, não havia lembrança alguma do fato, mas tal núcleo traumático retornava na forma de sintomas (cleptomania, impossibilidade de envolvimento afetivo) e repetições. Isso até o aparecimento de um psicanalista-detetive que a faz rememorar aquilo que ela repetia compulsivamente sem compreender. Assim ela pôde "tomar consciência", ou seja, dispor reflexivamente da integralidade de sua história e livrar-se da repetição de sintomas que a destruíam. Um Hitchcock habermasiano e defensor dos poderes curativos da hermenêutica e da memória.

A crítica de Bento Prado é direta: a psicanálise versão Habermas é psicanálise desprovida da radicalidade da noção freudiana de inconsciente. Como nos lembra Freud, o inconsciente não é deterioração do consciente, nem espaço para onde vão conteúdos recalcados pela consciência à espera da rememoração. O inconsciente é irredutível aos processos reflexivos e só aparece como deformação da superfície da linguagem pública, o que significa dizer que ele não é o texto escondido sob a consciência, à espera de um psicanalista travestido de arqueólogo para interpretá-lo semanticamente e trazê-lo à luz. Antes, é sintaxe singular do pensamento do sujeito.

Tudo se passa como se Bento Prado lembrasse que o inconsciente psicanalítico nos coloca diante de uma certa modalidade de resistência à reflexão do conceito, de um certo limite à própria prosa da filosofia. E longe de representar uma fraqueza da filosofia, este reconhecimento da resistência é sua ironia suprema, já que, como nos lembra o próprio autor, é necessário aprender a rir da filosofia através da filosofia. Coisa que o velho Pascal nunca deixou de repetir, diga-se de passagem.

Esta astúcia pascalina retorna quando o assunto é a relação entre filosofia e literatura. Como dirá Desgaudrioles, personagem alter ego do filósofo, Logos e Póeisis são dois campos operatórios diferentes organizados na forma frouxa de um arquipélago. Isso faz Bento Prado questionar a noção de crítica literária de Roberto Schwarz. Seguindo trilhas distintas, Habermas e Schwarz compartilhariam pressupostos simétricos. Se, para o primeiro, o inconsciente é um texto profundo escrito em uma linguagem privada que necessita de mediação do psicanalista para ser desvelada na prosa reflexiva do conceito, para o segundo, o texto literário também está à espera de uma leitura arqueológica capaz de revelar aquilo que o estilo da escrita formaliza e deforma, ou seja, a situação socioeconômica e a vivência subjetiva de seus impasses. Revelação só possível a partir do momento em que admitimos uma costura dialética contínua entre verdade e saber consciente de si. Tal como em Habermas, não há inconsciente no mundo de Schwarz. Toda opacidade é dissolvida na auto-reflexão da consciência que reconstrói a gênese das contradições da obra: "Tudo é visível e o indizível é apenas uma dobra do dizível". A crítica literária transforma-se assim, mesmo a contra-gosto, em uma espécie de hermenêutica que apaga a resistência do estilo que traz seu próprio padrão de análise.

Desta forma, os pólos se invertem: o filósofo acaba por cobrar do crítico literário a irredutibilidade da experiência literária que o crítico parece querer sacrificar ao Logos. É ele quem lembra como a escrita literária não é escrita filosófica e que a fronteira entre as duas deve continuar em farrapos. Pois a última palavra da filosofia, como nos lembra Wittgenstein, é que nem tudo se diz. Há coisas que apenas se mostram.

Vladimir Safatle é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo
e professor-visitante no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris.
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