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O trabalho da forma no pensamento de Jacques Lacan:

notas sobre a relação entre estilo, sintoma e subjetividade

 

Meu estilo é o que ele é

Jacques Lacan

 

Ilegível. Eis o adjetivo preferido quando o assunto é Jacques Lacan. "O que bem se concebe, claramente se enuncia", costuma-se dizer a respeito desta obra capaz de causar vertigens devido a suas rupturas de planos conceituais, suas bricolagens teóricas com a história da filosofia e à incidência de formalizações lógico-matemáticas aparentemente psicóticas. Mas ‘ilegível’ não era exatamente a forma que o psicanalista gostaria de ser lembrado: "Bastam dez anos para que o que escrevo se torne claro para todos"[1]. Mais de dez anos se passaram e o que vemos é o retorno, à passarelas das modas intelectuais, da crítica ao pretenso hermetismo do pensamento francês contemporâneo. Crítica cujo alvo preferido é sempre Jacques Lacan.

Mas a verdade é que há alguma coisa em Lacan que ainda incomoda. Esta ‘alguma coisa’ é seu estilo. Na verdade, gostaríamos que Lacan abandonasse sua escrita barroca e seus gráficos, que ele parasse de construir labirintos conceituais e começasse, de uma vez por todas, a andar em linha reta respeitando a gramática da boa e velha clareza ensaística. Tudo seria mais fácil se o sujeito abandonasse a singularidade radical do seu estilo e seguisse a ordem mínima de razões. Ordem estabelecida, diga-se de passagem, graças a uma geometria retórica fundamentada a partir de analogias com os dispositivos da geometria euclideana. Mas se Lacan recusa-se a abandoná-lo é porque seu estilo é necessário. Longe de ser um simples invólucro pseudo-literário ou pseudo-logicista, ele é a apresentação mesma da Coisa em questão na psicanálise. "Há nas dificuldades do meu estilo", dirá Lacan, "alguma coisa que responde ao objeto mesmo do qual ele trata"[2]. Há, no estilo de Lacan, um tempo para compreender que é o tempo necessário para o desvelamento do objeto do seu discurso. Pois este estilo impõe uma trajetória de leitura, um regime de aproximação que não pode ser excluída da apresentação do objeto.

A coextensividade entre estilo e objeto será claramente sublinhada por Lacan. A estrutura do estilo lacaniano seria a modalidade de apresentação daquilo que é identificável à descoberta psicanalítica: "Todo retorno à Freud que dê matéria a uma ensinamento digno deste nome, só se produzirá pela via através da qual a verdade mais escondida se manifesta nas revoluções da cultura. Esta via é a única formação que podemos pretender a transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo"[3]. Eis aí uma afirmação cuja intenção é absolutamente clara. A psicanálise traz uma verdade ao campo da cultura e ela só se mostra ao aprendermos a levar em conta a dimensão do estilo. Nós poderíamos mesmo dizer que tal verdade se apresenta em uma certa forma de dizer. Pois a psicanálise é, no sentido forte do termo, uma forma de dizer. Estratégia de reorientação dos impasses do pensamento através da palavra. Sua capacidade de dissolver sintomas pressupõe uma modificação radical na relação entre o sujeito e a linguagem. Afinal, se há situações em que dizer é fazer há coisas que não podemos fazer antes de mudarmos nossa maneira de dizê-las.

Um ponto cego

Mas devemos inicialmente perguntar: qual o objeto da psicanálise? Como apreendê-lo? Estas duas questões não estão dissociadas. Definir o objeto da psicanálise é definir sua modalidade de apreensão. Pois tal objeto é exatamente aquilo que se articula a partir do limite da reflexividade. Para a psicanálise, o procedimento de auto-fundamentação reflexiva da razão moderna encontra um limite que aparece como falha no interior da linguisticidade da consciência. A psicanálise é sintoma de uma época que não acredita mais que a espontaneidade reflexiva da consciência, fator de garantia da transparência do sentido e das estratégias de compreensão, possa fundamentar a racionalidade. É por isto que Lacan afirmará: "a discordância entre saber e ser, este é nosso sujeito"[4].

Havendo uma discordância entre saber e ser, o problema inicial consistirá em compreender como escrever sua trajetória e determinar as possibilidades de sua apresentação. Se a psicanálise admite a ética do silêncio como procedimento de apresentação, então ela transforma-se em uma séria candidata a tornar-se um novo misticismo. Mas se ela simplesmente toma a palavra e fala do limite através de um estilo metalinguístico anula-se, através da consolidação de uma organização sistêmica, a possibilidade mesma de por a discordância como objeto.

Notemos de passagem que, graças às lições de Kojève, Lacan sempre tentará resolver tal impasse escrevendo tal inadequação através do vocabulário da negatividade dialética, seja de maneira explícita (até a década de sessenta), seja de maneira implícita (após a década de sessenta). O que o fará pensar a praxis analítica através de uma certa dialética negativa onde: "a verdade está em reabsorção constante naquilo que ela tem de perturbador, e sendo ela mesma apenas aquilo que falta à realização do saber"[5]. Ou seja, a verdade como comportamento negativo em relação ao estabelecimento da positividade do saber. Um comportamento que Lacan chamará de ‘mi-dire de la vérité’.

Lacan não teme aqui em entrar em um problema de ordem propriamente epistemológica. Caracterizar a verdade como exílio, como limite à realização do saber é afirmar que a fundamentação deste saber encontra-se em posição problemática. Os dispositivos realistas de fundamentação estão descartados devido à compreensão estruturalista da relação entre linguagem e um mundo dotado de autonomia metafísica. A saída pela racionalidade intersubjetiva será abandonada pelo próprio Lacan nos anos 60. Isto significaria assumir um relativismo epistemológico que admite a multiplicidade plástica de sistemas de interpretações e o abandono de critérios unívocos de verdade? Alguns comentadores acreditaram que o pensamento lacaniano se enquadraria neste figurino relativista ou, ainda, em um certo ceticismo prudente. Nada mais distante do pensamento lacaniano, já que: "não há praxis mais orientada que a psicanálise em direção ao que, no coração da experiência, é o núcleo do real"[6]. Defesa de uma experiência do real como limite, de uma manifestação do real como presença do negativo, como tensão entre o trabalho do negativo e a paciência do conceito que nos legitima a perseguir a hipótese de uma dialética negativa operando na antecâmara do pensamento lacaniano.

É verdade que, para uma certo pensamento contemporâneo, a noção de dialética na sua matriz hegeliana é um conceito vago e suspeito. Mas a experiência intelectual de Lacan será simplesmente incompreensível se recusarmos o encaminhamento dialético utilizado para a reconfiguração de conceitos centrais da teoria psicanalítica, tais como pulsão de morte, gozo, repetição e sintoma. Encaminhamento reconhecido pelo próprio psicanalista.

Assim, nos anos 1960-61 ele falará em uma dialética do desejo[7] e em um dialética da sublimação[8]. No Seminário de 1961-62, sobre ‘A identificação’, o psicanalista acabará por fazer, mesmos sem admitir, uma crítica à analiticidade a partir de moldes lógicos estritamente hegelianos. Até porque, a função da dialética hegeliana era extamente de "denunciar as identificações em seus enganos". Em 1964, ele sublinhará a existência de um ‘movimento dialético da pulsão’. Em 1969, ele retornará à dialética do Senhor e do Escravo para ‘corrigi-la’ através da teoria marxista do trabalho e, desta feita, abrir espaço ao advento do discurso do analista : dispositivo teórico que visava formalizar a estrutura do final de análise.

Mas, para além destas reincidências no vocabulário dialético, falta mostrar o que seria e como Lacan pretende operacionalizar a redução da dialética a seu núcleo negativo, impedindo a realização desta ‘síntese fantasmática’ entre saber e verdade. Principalmente, falta mostrar como tal redução escapa do risco de transformar-se em simples perpetuação de um movimento infinito ruim e, através daí, em implementação clínica de uma ‘retórica da perpetuação da falta’.

Não nos esqueçamos que a psicanálise deve dar conta de um duplo imperativo. Ele deve aparecer como crítica do conhecimento através da compreensão da consciência como sinônimo de alienação. Neste ponto, ela é discurso da discordância, da clivagem entre saber e verdade. Mas ela não pode se resumir a tal tarefa negativa, já que isto a jogaria nos braços de uma certa forma de relativismo que vê a experiência apenas como campo de projeção fantasmática. Há uma tarefa positiva na psicanálise presente na idéia de ‘experiência do real’ como limite. E aqui o termo experiência deve ser levado às últimas consequências. Pois ele traz, nas entrelinhas, a pressuposição de uma modalidade ainda não definida de síntese disponível ao sujeito que experimenta.

Antes de passarmos a este ponto, vamos retornar às considerações sobre o estilo de Lacan. Os eixos deste estilo serão articulados através da tentativa de formalizar a discordância entre saber e ser. Um estilo que quer escrever uma discordância. É por isto que a clareza euclideana é estrangeira ao pensamento lacaniano. Esta clareza quer negar o próprio objeto da psicanálise. Podemos sempre contra-argumentar dizendo: "Mas o estilo de Freud era absolutamente claro". É verdade. Mas nos esquecemos que, para Freud, havia um limite claro ao texto psicanalítico: "ninguém tem o direito", dirá ele, "de intervir na psicanálise se ele não adquiriu experiências determinadas que só se alcançam através de uma análise pessoal"[9]. Quer dizer, para Freud, o texto analítico é, por definição, um saber incompleto. A estratégia de Lacan será diferente, O texto, na perspectiva estilística, já é uma maneira de integrar, de escrever uma inadequação. E para escrever a incompletude do saber é necessário mostrar o que a clareza quer esconder; ou seja, um certo tempo, um certo processo e uma certa experiência de leitura. Parafraseando Steve Reich, podemos falar do texto lacaniano como processo gradual onde escutamos os inúmeros deslocamentos ritmados pela irredutibilidade da Coisa analítica à seu conceito. De onde se segue esta impressão de perpétuo descentramento e de incessante deslizamento entre vários planos conceituais distintos que, muitas vezes, beira a uma operação de bricolagem. O texto gira em torno das bordas da Coisa.

É por isto que Lacan dirá que não basta simplesmente falar da palavra, ou seja, fazer metalinguagem. A aposta da psicanálise é "falar no fio da palavra"[10]. Falar neste limite entre sentido e não-sentido para mostrar, e após para formalizar, o limite do dizível, a ausência de fundamentação: antiga maneira dialética de integrar a negatividade à identidade.

Filiação dialética que exclui, é claro, um ponto fundamental. Lacan sustenta uma aposta de formalização e não uma aposta de conceitualização, ele quer integralizar mostrando através de seu estilo, e não dando um conteúdo conceitual adequado ao limite. A distinção entre formalização e conceitualização ou entre letra e conceito permite à psicanálise operar uma síntese sem cair nas aporias da totalização própria à dialética estritamente hegeliana. Pois um limite posto pelo conceito deixa de ser des-idêntico, deixa de ser limite, da mesma forma como Freud nos lembrava que uma negação dita de maneira muito peremptória deixa de ser uma negação; enquanto que um limite que pode apenas ser pressuposto pelos processos do conceito continua irredutível. Não se trata aqui de hipostasiar o não-conceitual, mas de sustentar que o movimento mesmo do conceito, movimento feito de repetições e resistências, indica a dimensão de uma experiência que só pode aparecer através de uma leitura da forma e não através da compreensão conceitual do conteúdo. Da mesma maneira como a escuta da pura estrutura dinâmica do significante nos permite uma experiência do real que não se deixa transformar em determinação nominal significante. É necessário pois defender, no interior da psicanálise, um sistema de interpretação que privilegia a análise da forma, para além de uma análise semântica de conteúdos recalcados. É necessário defender a existência de uma leitura de superfície contra a leitura arqueológica do inconsciente.

Sabemos que Lacan deu um nome a este limite não-conceitual da reflexividade, para esta inadequação que se revela na superfície da língua. Trata-se do inconsciente. Sobre este ponto, é necessário especificar o que é exatamente a noção psicanalítica de inconsciente para compreendermos a função do regime estilístico do discurso lacaniano.

Inconsciente e representação

Vamos começar por aquilo que o inconsciente não é. Primeiramente, ele não é um fato psicológico. Isto quer dizer que ele não está ligado a fatos psicológicos como: a memória, a atenção, a sensação ou à intencionalidade em geral. Desde a teoria sartreana da má-fé, nós sabemos que os chamados conteúdos mentais inconscientes (conteúdos latentes de sonhos, crenças não-conscientes, acontecimentos traumáticos denegados, lembranças esquecidas, sentimentos latentes etc.) não podem ser realmente inconscientes. Como estes conteúdos mentais são resultantes de um processo de recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo: para que haja recalcamento é necessário uma consciência prévia do recalcamento: "Eu preciso saber bem precisamente esta verdade [a verdade dos conteúdos mentais inconscientes] para escondê-los de mim mais cuidadosamente"[11]. Acento posto aqui sobre o saber. Se levarmos em conta as resistências correntes de um analisando, veremos que elas demonstram: a) uma representação do recalcado, b) uma compreensão do alvo para onde tende as questões do psicanalista. O que normalmente chamamos de ‘conteúdos mentais inconscientes’ devem ser compreendidos como conteúdos mentais pré-conscientes. Pois o inconsciente não tem conteúdos mentais privilegiados. Ele é vazio, já que todo conteúdo do pensamento é, de uma certa forma, consciente[12].

O inconsciente analítico também não é um fato neurológico. Não há nada no cérebro que seja parecido ao inconsciente analítico. De fato, existem estados cerebrais não-conscientes, tal como a mielinização dos axônios no sistema nervoso central ou outros eventos neurofisiológicos ocorrendo em arquiteturas neuronais, mais nem todos os estados cerebrais são estados mentais[13]. Quer dizer, nem todas as características do cérebro, que suportam a vida mental, são características mentais. Além disso, os processos não-mentais do cérebros têm exatamente como característica principal a capacidade de causar estados conscientes.

            Por outro lado, dizer que o inconsciente é um fato neurológico equivaleria a dizer que existem estados cerebrais que não são conscientes mas que têm uma intencionalidade inconsciente. O problema é que a idéia de uma intencionalidade inconsciente é tão indefensável quanto a idéia de um fato psicológico inconsciente. E não é por outra razão que alguém como John Searle fará uma crítica absolutamente ‘sartreana’ ao inconsciente freudiano. Tal como Sartre, Searle dirá que: "a noção de um estado mental inconsciente implica em acessibilidade à consciência"[14], já que ela é: "a noção de um estado que é um pensamento ou experiência consciente possível"[15].

De fato, os dois filósofos, de tradições tão diferentes, pensam o inconsciente a partir da dicotomia entre intencionalidade latente/intencionalidade manifesta[16], o que não nos leva longe já que este não é o ponto irredutível e determinante do inconsciente freudiano. Foi para evitar confusões desta natureza que Lacan afirmou que: "o inconsciente não é uma espécie definindo na realidade psíquica o círculo do que não é atributo (ou virtude) da consciência"[17]. Ou seja, as metáforas da profundidade são absolutamente inadequadas para a determinação da natureza da descoberta freudiana. Mesmo que Freud insista em chamar a psicanálise de psicologia das profundezas e nunca abandone a idéia da coextensividade entre inconsciente e pensamentos latentes, não há atualmente como operarmos com tais categorias.

Mas o que resta ao inconsciente analítico? Nem fato psicológico, nem fato neurológico, o inconsciente será um fato concernente à estrutura da reflexividade. Um fato com consequências éticas, como nos lembrará Lacan. Nós podemos dizer que ele será uma espécie de ponto cego que aparece no interior da consciência. Quando Lacan diz: "há relação ao ser que não podemos saber"[18], ele está de fato afirmando que há um ponto irrefletido que aparece no interior do saber representacional da consciência. Ponto que se manifesta através da formação do sintoma.

            É importante frisar que a verdadeira polaridade aqui é entre representação e sintoma. A capacidade cognitiva da consciência é coextensiva a sua ‘capacidade representacional’, ou seja, articulação reflexiva de representações a partir de um regime de categorização que privilegia disposições espaço-temporais e relações de identidade e negação próprias a esta forma de pensar que a contemporaneidade denomina de pensar representativo. Forma de pensar que Lacan caracterizará como produtora da: "estagnação formal que constitui o eu e os objetos na forma de entidades ou ‘coisas’ "[19]. Lembremos aqui que Lacan insiste no fato de que a categorização do pensar representativo dependente das denegações próprias à lógica do narcisismo.

            Como, do ponto de vista da psicanálise, a hipótese fenomenológica de uma consciência pré-reflexiva imediata é dificilmente defensável, o sintoma só poderá ser compreendido enquanto fenômeno que marca a emergência de uma formação que, à princípio, não encontra lugar no interior da estrutura do saber representacional da consciência. De onde se segue a famosa definição de Lacan: "o sintoma é o retorno da verdade na falha de um saber".

Voltemos à Freud a fim de analisarmos melhor este ponto. Para Freud, o eu, enquanto núcleo do sistema percepção-consciência, é a parte organizada do isso. Se perguntarmos: ‘quais são os dispositivos de organização próprios ao eu ?’, veremos que tratam-se de dispositivos de ligação e de síntese. O eu tenta colocar em prática os princípios do processo secundário, estabelecendo identidades de pensamento que impeçam a livre passagem de energia própria ao processo primário e a seus mecanismos de condensação, deslocamento e figuração. Mas essa passagem de energia livre a energia ligada só pode ser operacionalizada através do que Freud chama de WortVorstellung : traços mnésicos derivados de percepções passadas e que estariam próximos daquilo que entendemos hoje por representações. E não é por acaso que se trata aqui de um sistema de representações que procura liquidar a sobredeterminação própria ao processo primário. É que estamos diante de uma forma de pensar que trabalha a partir de um princípio de identidade que não admite a internalização da negação ou, como dizia Hegel, a auto-negação da determinação. Exemplo claro de tal limite à negação é o fato dos sintomas aparecerem geralmente como índices do que Freud chama de ‘conflito de ambivalência’, quer dizer, como índices de uma contradição interna na determinação do valor de uma representação.

A constituição do objeto fóbico do pequeno Hans (o medo de ser mordido por um cavalo) nos mostra bem esta lógica. Um dos polos de produção da fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai, ou seja, a mesma representação paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca uma instabilidade no interior da identidade da representação. Para rejeitar tal ambivalência, Hans desloca a angústia diante do pai para uma angústia diante de cavalos e denega a monção agressiva contra o pai[20].

Mas aqui há um elemento que complica nossa perspectiva. Na verdade, nada disso prova que o estatuto do sintoma seja equivalente a uma espécie de ponto cego irredutível no interior da consciência. Ao contrário, já que a psicanálise aparentemente traz um horizonte de dissolução dos sintomas. Através da interpretação analítica e de seus dispositivos de rememoração, o objeto fóbico de Hans desaparece assim como boa parte dos sintomas de qualquer neurótico. O sujeito aprende a manejar uma certa lógica da ambivalência, a internalizar negações de maneira reflexiva, o que desarma parte do processo de formação dos sintomas. Onde estaria então a irreflexividade opaca do inconsciente?

            A verdade complexidade do problema advém do fato de existir na psicanálise um sistema duplo de interpretação, da mesma forma como há duas modalidades de sintoma. Uma duplicidade trabalhada por Lacan na década de 70 através da estabelecimento da distinção entre sintoma e sinthome. A distinção se impôs a fim de permitir a partilha entre sintomas que podem ser tratados e liquidados através de uma rearticulação do universo de representações conscientes e um certo tipo de sintoma intratável ligado aos traços distintivos da subjetividade.

            Primeiramente, há um sistema de interpretação analítica que, na verdade, funciona a partir de uma espécie de hermenêutica sexual cujo motor principal é o mito de Édipo. O termo hermenêutica aqui tem valor decisivo. Trata-se de desvelar o sentido do ato subjetivo através da simbolização destes capítulos da história do sujeito que foram expulsos do universo da comunicação pública. Capítulos escritos pela tinta dos sintomas e eventos traumáticos em uma língua estranha ao pensamento representativo da consciência. Uma das melhores expressões de tal maneira de compreender o sintoma é a afirmação de de Lacan: "o sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito"[21]. Ele é um significante que marca o significado que virá através da interpretação. Proposição que acabará por colocar Lacan ao lado de Ricoeur, para quem: "o texto da consciência é um texto lacunar, truncado: admitir o inconsciente equivale a um trabalho de interpolação que introduz sentido e coerência no texto "[22].

            Mas lembremo-nos, estamos diante de capítulos de um livro que conta a história do sujeito através das modulações possíveis do complexo de Édipo. Eis porque tal sistema de interpretação merece o nome de hermenêutica sexual ou, talvez, hermenêutica edípica. Freud interpreta, por exemplo, os sonhos de Dora e reconstrói o sentido de sua história basicamente através de uma interpretação semântica que privilegia a reconstrução do mito individual do neurótico e onde cada elemento do sonho é semanticamente decomposto[23].

            Se a psicanálise se reduzisse a tal dispositivo semântico de interpretação, se os sintomas se reduzissem a serem significantes de significados recalcados, dificilmente poderíamos falar em irreflexividade opaca do inconsciente. Na verdade, dificilmente poderíamos falar de inconsciente pura e simplesmente. De fato, a praxis de Freud e Lacan ficaria reduzida: "à reorganização do universo do paciente em função das interpretações psicanalíticas "[24]. Isto apenas mostra como o ponto determinante do inconsciente freudiano nunca ficará evidente enquanto continuarmos a pensá-lo através de estratégias que privilegiam a análise semântica de conteúdo e os mecanismos de tradução entre um sentido primeiro e um sentido segundo[25]. Não podemos, por exemplo, seguir Ricoeur e falar do inconsciente como uma "transgressão do sentido pelo sentido"[26], já que conteúdos rejeitados, denegados ou forcluídos, ou seja, os materiais do texto da Outra-cena, não são ontologicamente inconscientes. Eles são pré-conscientes e podem ser recuperados através das operações de simbolização próprias ao mecanismo de rememoração. Voltamos a uma derivação do paradoxo apontado por Sartre e retomado por Searle: o inconsciente aqui é pensado a partir do vir-a-ser-consciente. Ele é apenas aquilo que, momentaneamente, não está consciente mas que poderá sê-lo ulteriormente através uma série de processos reflexivos. Ou seja, ele é um estado, e não uma instância.

            Desta forma, continuamos com nossa questão central em aberto. Afinal, onde está esta outra dimensão do sintoma que não pode, nem de direito nem de fato, ser integrado ao horizonte de compreensão da consciência? Questão que nos leva a esta outra: o que poderia ser o segundo sistema analítico de interpretação capaz de nos expor diante da irreflexividade do inconsciente? E o que tudo isto tem a ver com a nossa problemática do estilo? A fim de responder tais questões, gostaria de operar um curto-circúito e desenvolver uma consideração geral a respeito da estratégia psicanalítica de interpretação dos sonhos. Ela poderá nos demonstrar a posição final do inconsciente na teoria analítica.

O inconsciente trabalha

Sabemos que a psicanálise é uma praxis que opera a partir de dois procedimentos: a interpretação e a transferência. No caso da interpretação dos sonhos (a famosa "via régia para o inconsciente", segundo Freud), acredita-se normalmente que a interpretação analítica consiste na transcrição (Übertragung) do pretenso pensamento latente inconsciente ao texto manifesto do sonho. Se assim fosse, a psicanálise não passaria realmente de uma estratégia hermenêutica de reintegração do sentido à esfera da comunicação pública. Nesta leitura, esquece-se de tirar as consequências da afirmação de Freud: quase todos os pensamentos latentes do sonho “não diferem em nada dos produtos de nossa atividade consciente habitual (bewussten Seelentätgkeit) (...) eles mercem o nome de pensamentos pré-conscientes e podem efetivamente terem sidos conscientes em qualquer momentos de nossa vida desperta "[27].

            Se quase todas os pensamentos latentes são pedaços de um pensamento pré-consciente é porque o verdadeiro elemento inconsciente no sonho encontra-se no processo de trabalho do sonho; quer dizer, na pura forma de articulação significante que produz o conteúdo manifesto e obedece ao ritmo do automatismo de repetição. O que há de inconsciente no pensamento não é exatamente o pensamento latente mas a pura forma do pensamento[28]. É Freud quem nos coloca nesta via. Ao afirmar que os pensamentos latentes do sonho não diferem em nada dos produtos da nossa atividade consciente habitual, ele lembra que: "ao entrar em conexão (Verbindung) com as tendências inconscientes (...) eles são submetidos à leis que governam a atividade inconsciente"[29]. É a aplicação de tais leis, o trabalho de combinatória, distorção e recomposição dos conteúdos latentes ou, ainda, o trabalho do desejo que aparece como o processo determinante da natureza inconsciente.

            Esta pura forma pode ser também designada como estilo do sonho. O sonho constrói os conteúdos manifestos a partir de um certo processo de trabalho articulado através da quadratura: condensação, deslocamento, figuração e elaboração secundária. Podemos chamar tal trabalho de estilo porque se trata de uma modalidade combinatória de escritura submetida à utilização particular de certos processos linguísticos gerais[30].

            Para interpretar tal escritura precisamos de uma análise estilístico-formal. Quer dizer, a interpretação psicanalítica deve tender a uma análise estilística do inconsciente[31] que, no lugar de apreender o sentido dos significantes primordiais aos quais a pulsão se fixou, privilegie a análise das modalidades de passagem de um significante à outro utilizadas pelo sujeito. Quer dizer, menos as escavações arqueológicas do texto consciente e mais o trabalho do desejo que se manifesta na pura articulação significante. Pois, como dizia Lacan, a partir dos anos 60: "não é o efeito de sentido que opera na interpretação, mas a articulação, no sintoma, de significantes (sem sentido algum) que estão aprisionados nele"[32]. Não se trata de dar à psicanálise a tarefa de reconstituir o sentido da história do sujeito através da narrativa integral do Todo de sua história - até porque, o momento histórico de tal narrativa não é mais o nosso. Na verdade. trata-se de individualizar a articulação significante que compõe o sintoma e fazer com que o sujeito se reconheça em tal modo de articulação. Levá-lo a vivenciar, como estilo, aquilo que ele sofre como sintoma. Veremos mais à frente o que isto pode significar.

            Mas, antes, várias questões ainda estão em aberto. Primeiro, por que o trabalho estilístico do sonho é inconsciente? A resposta é: porque ele é a regra de articulação genérica do pensamento do sujeito. O sujeito pensa com o mesmo estilo (ou seria melhor dizer, com o mesmo pathos) com que constrói seus sonhos. Por causa disto, mesmo as modalidades de apreensão objetiva do trabalho do pensamento são determinadas pela estrutura mesma deste trabalho. O sujeito pode objetificar o estilo do pensamento e falar sobre ele em um discurso da terceira pessoa, como se fosse o estilo de um outro. Mas ele não pode objetificá-lo a partir de uma perspectiva que não seja determinada pelo próprio estilo.

            O que há pois de impensável no pensamento? Nossa resposta só pode ser: o estilo do trabalho do pensamento. O inconsciente é o estilo que determina a forma final do pensável para um sujeito. Ele é o trabalho da forma do pensamento que não pode aparecer na tela do pensamento através de uma intuição imediata.  Desta forma, podemos dizer que o estilo é exatamente o trabalho de passagem da forma geral transcendental do pensamento (a estrutura, no caso de Lacan) ao conteúdo local. Passagem que é o ato de pensar, se compreendemos o pensamento como ato de singularizar um conteúdo particular da experiência através de sua articulação com a universalidade conceitual da forma. Singularização que Granger chamará de: "individualidade conceitualizada"[33] (mesmo que, para afirmar isto, precisemos retornar às paragens dialéticas a fim de estabelecer uma diferença precisa entre conceito e representação) Pois, entre a transcendentalidade da universalidade das leis da estrutura e a particularidade da experiência, faz-se necessária uma mediação feita por uma espécie de ‘articulação singular da estrutura’[34].

            A introdução de um ‘termo médio’ entre estrutura e fenômeno, termo aqui designado como estilo, é uma particularidade fundamental do pensamento lacaniano. Ela o tira das vias de um estruturalismo rígido à la Lévi-Strauss sem lançá-lo em direção a um subjetivismo espiritualista e abre, assim, as portas para uma defesa da irredutibilidade ontológica da subjetividade. Pois este ‘termo médio’ nada mais é do que o sujeito do inconsciente; que não se resume nem a ser um suporte do genérico da estrutura, nem é uma entidade dotada de uma espontaneidade absoluta de ação.

            Aqui, não podemos esquecer que, ao definir o pensamento como ato de trabalho, pressupomos um sujeito do ato. Levar em consideração o estilo é necessariamente levar em consideração o sujeito do pensamento e, no caso de Lacan, a estrutura do sujeito do inconsciente. O estilo do pensamento aparece pois como a configuração do sujeito que pensa. Quer dizer, através do estilo introduzimos a estrutura da subjetividade enquanto elemento determinante de toda racionalidade.

            No início, foi-se posto a coextensividade entre estilo e objeto. Agora, percebemos que tal coextensividade existe também entre estilo e sujeito agente. A explicação é que o estilo é um trabalho de articulação entre o pensamento e o objeto do pensamento. Enquanto língua que deixa ler as marcas da subjetividade em sua superfície, o estilo é encontro do sujeito no lugar do Outro - retorno à si como objeto.

Estilo e sintoma

Mas, a fim de tirarmos as principais consequências clínicas de tais afirmações, falta acrescentar mais um elemento às considerações sobre a relação entre estilo e inconsciente em psicanálise.

            Antes de começar, uma visão panorâmica. O problema inicial era a especificidade do inconsciente psicanalítico. O inconsciente foi posto primeiro como um limite irredutível ao processo de ampliação reflexiva do horizonte de compreensão da consciência. Ele era um limite que deveria ser apresentado, uma negatividade que deveria ser inscrita de forma não-representativa. Este programa positivo nos dava a chave para a compreensão do estilo barroco da escritura de Lacan[35].

            Para expor a pertinência de tal leitura, era necessário defender a existência, no interior da psicanálise, de duas modalidades distintas de sintoma e de interpretação. De um lado, sintomas resultantes do recalcamento da ambivalência no valor de uma representação consciente e que podiam ser reintegrados à consciência através dos mecanismos reflexivos de interpretação hermenêutica próprios à psicanálise. De outro, um sintoma intratável que resistiria a todo processo de reintegração e leitura hermenêutica. Um sintoma como limite irredutível; verdade do inconsciente que podia aparecer como comportamento negativo em relação ao saber porque sua modalidade de negatividade era de uma ordem diferente da simples ambivalência.

            Ao invés de falar da natureza deste sintoma, preferi fazer um curto-circuito e discorrer sobre as consequências da distinção entre conteúdo manifesto, conteúdo latente e trabalho do sonho. O trabalho do sonho apareceu como determinado por um estilo compreendido como modalidade singular de articulação repetitiva de significantes e termo-médio entre estrutura geral e fenômeno particular. O inconsciente deixou de ser um espaço de pensamentos latentes para ser estrutura estilística de produção de formações psíquicas. Falta, pois, dar o último passo, ou seja, articular estilo e sintoma intratável.

            A este sintoma intratável, Lacan deu o nome de sinthome através do comentário dos procedimentos estilísticos da escrita de Joyce. Desde 1955, Lacan seguia uma pista dada pela noção reichiana de análise do caráter, fundada sobre a descoberta de que a personalidade do sujeito é estruturada como o sintoma contra o qual ele luta. Na verdade, esta era apenas a consequência da compreensão da peculiaridade do momento histórico inaugurado pela psicanálise. Momento no qual a subjetividade deixa de ser associada à imanência da vida interior, da memória e de qualquer espécie de dado psicológico privilegiado ou de co-naturalidade fisiológica. Se a psicanálise conserva a função do sujeito, é para livrá-lo de toda gramática da profundidade. Dentro desta perspectiva, a subjetividade verá seu campo acoplar-se à dimensão do sintoma.

            A subjetividade como sinthome, como desvio. Eis o que o descentramento psicanalítico do sujeito nos traz. Lembremos que esta era a consequência final da estratégia do espírito de nosso tempo em ver a consciência como sinônimo de alienação. Se todo o campo da consciência é marcado pelo selo de uma alienação sem volta, só resta à subjetividade se manifestar na forma de sintoma.

            Mas há uma astúcia neste regime psicanalítico de subjetividade restrita. Pois o sinthome do qual falamos aparece como modalidade singular de gozo disponível ao sujeito e, por que não dizer as coisas de maneira clara, como espaço para-além da alienação. O gozo do sinthome nào é aquilo que Freud chamava de benefício secundário do sintoma, gozo próprio à doença e sempre ligado aos fantasmas masoquistas do sujeito. O gozo do sinthome é aquilo que se produz através de um reencontro, de uma experiência possível de reconhecimento de si naquilo que aparecia como pura exterioridade, como Umheimlich no interior do si mesmo.

            Aqui, a estratégia psicanalítica mostra todas as suas cartas: o sinthome é espaço do individual. A defesa da irredutibilidade do sinthome aparece como a última modalidade de defesa do campo do individual. que - questão de suma importância - porta em si mesmo as coordenadas de seu próprio código. Aqui, a estratégia fica clara: a defesa da irredutibilidade do sinthome aparece como defesa do campo do individual. E é por isto que o fim da análise será definido por Lacan como identificação ao sinthome: "Saber fazer com seus sinthome, eis aí o fim da análise"[36], Esta fórmula traz a ironia suprema da psicanálise. A ironia de uma clínica que encontra sua força no reconhecimento da sua fraqueza contra o sinthome. Pois, como dizia Lacan: "a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite estático do tu és isto, onde se revela à ele a marca de seu destino mortal, mas não está em nosso poder de praticantes de levá-lo à este momento onde começa a verdadeira viagem"[37].

Há ainda duas questões que gostaria de abordar antes de finalizar.

            Antes de mais nada, alguém poderia perguntar: "pensar o fim da análise como identificação com o sinthome não significaria hipostasiar o individual ou retornar, de uma maneira muito astuta, à um certo plano do imanência? Podemos dizer que vale para o sinthome aquilo que Adorno falou à propósito do individual: "o núcleo do individual seria comparável à estas obras de arte individualizadas ao extremo, que escapam à todos os esquemas, cuja análise, no extremo limite de suas individualizações, reencontra momentos do universal, de participação dissimulada na tipologia (Typik)[38].

            Mas como é possível reencontrar momentos do universal no extremo da individualização? Devemos aqui compreender que o individual não é o originário, ele não é o primordial. Pois não há sujeito originário. O individual é o resultado de um processo de retorno da mediação pelo universal da linguagem, da mesma maneira como Lacan nos assinalava que o Real não é o que é dado à intuição imediata mas, ao contrário, o que é pressuposto pela compreensão simbólica como seu limite. A obra de arte pode ser individualização extrema que dissimula uma participação na tipologia porque ela é apresentação formalizada de um limite à tipologia. Mas ela é apresentação que pressupõe atrás dela um trabalho, uma trajetória de descolamento da tipologia. Uma obra de arte é sempre obra da perda da crença na potência comunicanional da língua. A referência à estética como horizonte privilegiado de análise do individual é aqui crucial. Pois ela dá uma proeminência da formalização sensível sobre a prosa do conceito. Na dialética lacaniana, a arte aparece como espaço de formalização do que é não-idêntico ao conceito.

            Isto nos leva a última questão: quando falamos em ‘identificação ao sinthome’ o que exatamente se deve compreender por ‘identificação’? Sabemos que identificar significa estabelecer uma proposição de identidade entre duas coisas, operar uma síntese. Mas sabemos também que tal síntese não pode reduzir o não-idêntico ao idêntico e, na perspectiva analítica, dissolver o sinthome. O que é não-idêntico deve ganhar a forma da não-identidade.

            Podemos tentar resolver um tal paradoxo através da noção do fim da análise como modificação da posição do sujeito diante do sinthome, como transformação do sinthome em estilo. O estilo permance sempre Unheimliche ao sujeito, sujeito que nunca pode transformar-se em mestre do estilo. Pois o estilo pode formalizar o individual do stinhome sem lhe fornecer algo como um conceitualização adequada. Graça à esta maneira de conceber o estilo, o sinthome pode aparecer na superfície da língua como pulsão de destruição da semântica da língua, e não como adequação. Já que a línguagem é espaço do universal, a formalização do individual só pode aparecer como distorção, resistência e opacidade. Neste sentido, o exemplo da escritura de Joyce é precioso. Tão precioso quanto a escritura do sitnhome presente no texto lacaniano.

            Aqui, devemos voltar a uma colocação inicial: se há situações em que dizer é fazer há coisas que não podemos fazer antes de mudarmos nossa maneira de dizê-las. Pois a cura analítica virá necessariamente com uma ‘mudança do dizer’ que indica uma nova compreensão da linguagem na sua relação com o sujeito: "ë isto o que eu faço da minha prática: tira a ética do Bem-dizer"[39], afirmava Lacan no fim da sua experiência intelectual.

            Muito ainda teria a se dizer a respeito da maneira como Lacan concebia tanto a estética quanto o fim da análise como rasura, como inscrição do não-idêntico que leva a uma reconfiguração radical do dizer. Como se a psicanálise só pudesse advir após a aparição de uma estética que não é mais ’promessa de felicidade’, como dizia Stendhal, quer dizer, como determinação concreta e adequada da Coisa, mas que é presença irredutível da irreflexividade do sinthome - movimento compulsivo que circunda a ausência da Coisa. Neste ponto, haveria um campo vasto a explorar entre operações estéticas e operações analíticas, entre matema e poema.

            Falar de estilo foi sempre um assunto mais apropriado à crítica literária que à filosofia ou à psicanálise. Mas podemos dizer que hoje tanto a filosofia quanto a psicanálise esforçam-se em dar ao estilo um estatuto de conceito ontológico. Pois ele estaria ligado às modalidades possíveis de apresentação do ser do sujeito. Não há consideração contemporânea de ordem propriamente ontológica que possa economizar a questão do topos do estilo do pensamento na reflexão sobre o ser do sujeito.

Bibliografia

 

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[1] LACAN, Jacques ; Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 544

[2] Idem, Séminaire V, Paris, Seuil, 1998, p. 30. Lacan é mais explícito na afirmação: « se eu me arranjasse de maneira a ser facilmente compreendido, isto é, para que vocês tenham a certeza de que compreenderam, pois bem, em virtude mesmo de minhas premissas concernentes ao discurso inter-humano, o mal-entendido seria irremediável » (Idem, Séminaire III, Paris, Seuil, 1981,  p. 189). Pois há em Lacan uma crítica totalizante da reificação da linguagem que visa problematizar os processos de compreensão.

[3] Idem, Ecrits, Paris, Seuil, 1966, p. 458

[4] Idem, Séminaire XX, Paris, Seuil, 1975, p. 109

[5] Idem, Ecrits, op. cit., p. 797. Para compreender o propósito desta frase, devemos lê-la conjuntamente com a afirmação de Adorno; "A qualificação da verdade como comportamento negativo do saber que penetra o objeto - e que então suprime a aparência (Schein) de seu ser - assim imediato - ressoa como o programa de la dialética negativa» (ADORNO, Negative dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1973,  p. 162)

[6] LACAN, Séminaire XI, Paris, Seuil, 1973,  p. 53

[7] Cf. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. É verdade que Lacan afirma que : "Toda dialética do desejo que desenvolvi diante de vocês (...) separa-se claramente da dialética hegeliana" (LACAN, Séminaire VII, Paris, seuil, 1986, p. 160). Mas a verdadeira questão é : em qual plano tais dialéticas separam-se? No plano fenomenológico ou lógico? E em que ponto a dialética lacaniana do desejo ainda é uma dialética?

[8] LACAN, Séminaire VII, op. cit, p. 130

[9] FREUD, , Neues Folge der Vorlesungen zur einführung in die Psychanalyse, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 76

[10] LACAN,. Séminaire V, Paris, Seuil, 1998, p. 30

[11] SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant, Paris, Gallimard, 1943, p. 83

[12] Vale a pena lembrar aqui da famosa fórmula de Lévi-Strauss: "O inconscience deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo através do qual designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis" (LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1971, p. 224). Veremos como a questão do estilo pode dar um lugar ao sujeito na fórmula do inconsciente estrutural. Sobre a crítica de Sartre ao inconsciente, ver também LAPLANCHE et LECLAIRE, L’inconscient : un étude psychanalytique, in LAPLANCHE, Problématiques IV : L’inconscient et le ça, Paris, PUF, 1981, p. 274

[13] Cf. SEARLE, A redescoberta da mente, Sào Paulo, Martins Fontes, 1997, pp. 217-249

[14] idem, p. 218

[15] idem, p. 229

[16] Vide, por exemplo, a afirmação de Searle: «O conceito de intencionalidade inconsciente é aquele de uma latência relativamente à sua manifestação na consciência » (idem, p 231). Na verdade, este erro de interpretação advém do desconhecimento do verdadeiro papel da distinção freudiana entre inconsciente e pré-consciente

[17] LACAN, Ecrits, op. cit, p. 830.

[18] LACAN, Séminaire XX op. cit., 108

[19] LACAN, Ecrits, op. cit., p. 111

[20] A mesma lógica da ambivalência aparece como processo de produção dos sintomas histéricos: "Um sintoma histérico só pode aparecer quando duas realizações de desejos opostos, saídos de dois sitemas diferentes, vêem concorrer em uma mesma expressão (Ausdruck)». (FREUD, Die Traumdeutung, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 575)

[21] LACAN, Ecrits, op. cit., p. 280

[22] RICOUER, De l’interprétation, Paris, Seuil, 1965, p. 130

[23] Encontramos no caso Dora a presença de uma interpretação sintática que privilegia a forma da repetição dos acontecimentos nos sonhos da paciente. Por exemplo, Freud trabalha a repetição das durações de tempo e dos números nos sonhos. Mas esta modalidade de interpretação é subordinada à uma outra, de caráter hermenêutico.

[24] LEVI-STRAUSS, Anthropologie structurale,op. Cit,  p. 202

[25] É por causa disto que análises do inconsciente freudiano como as propostas por Davidson e Rorty estão condenadas ao impasse. Todos os dois pensam o inconsciente freudiano como uma multiplicidade de: "sistemas de crenças e desejos claros e distintos, tão complexos, sofisticados e intrinsicamente consistentes quanto as crenças e desejos conscientes de um adulto normal" (RORTY, Essais sur Heidegger et autres écrits, p. 205). A cura viria através o estabelecimento de uma espécie de ‘conversação’ entre os diferentes sistemas de crenças e desejos. Quer dizer, além do problema desta leitura ‘substancializar’ o inconsciente freudiano e de propor uma intra-subjetividade no mínimo duvidosa, há o problema de psicologicisarmos o inconsciente através da idéia de uma sistema de crenças e desejos cujos conteúdos deveriam ser desvelados. Não há crenças no inconsciente, nem desejos no sentido de um objeto escondido do desejo

[26] RICOEUR, Paul, De l’interprétation, p. 29. Mesmo se Ricoeur é mais atento à dimensão do trabalho do sonho, dimensão não redutível à dicotomia conteúdo latente/conteúdo manifesto, ele pensa a interpretação do trabalho a partir da análise semântica, da decifragem hermenêutica de signos de um desejo que só se mostra através do trabalho (Cf., idem, p. 445)

[27] FREUD, Einige Bernerkungen über den Begriff des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 438

[28] Esta afirmação é apenas um dos desdobramento possíveis da estratégia lacaniana de definir a repetição e seus mecanismos como o núcleo do inconsciente. Pois o estilo , compreendido como articulaçào combinatória de significantes, nào é outra coisa que a manifestação deste automatismo de repetição que caracteriza a força do inconsciente.

[29] FREUD, idem, p. 438

[30] Sobre este ponto, ver também ARRIVÉ, Lacan sur le style, sur le style de Lacan in Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient, Paris, PUF, 1994 : "Se o inconsciente escreve seus sonhos e suas outras produções que são as ‘doenças nervosas’ sem tê-la significado previamente de outra maneira, é inevitável que as especificidades deste escrito - em suma, seu estilo (...) sejam pertinentes à estrutura do inconsciente" (ARRIVÉ, p. 236)

[31] É uma análise estilística do inconsciente que encontramos, por exemplo, no imperativo psicanalítico de análise da transferência. Pois analisar a transferência é interpretar a forma sob a qual a narrativa do paciente é entregue (o que Freud tinha percebido claramente em um texto como Rememoração, repetição e perlaboração). Aqui, podemos sentir toda a pertinência da afirmação lacaniana: "o estilo é o homem para quem se endereça". Ë na dimensão do estilo, da forma que toma a narrativa, que podemos ter acesso a este Outro, sujeito suposto saber encarnado no analista, ao qual o sujeito é mais ligado que à si mesmo

[32] LACAN, Ecrits, p. 842

[33] GRANGER; Essai d’une philosophie du style, Paris, Armand Colin, 1968, p. 7. De fato, é de Granger a aproximação entre estilo e trabalho ou, ainda, estilo e esta «modalidade de integração do individual em um processo concreto que é trabalho» (idem, p.8). 

[34] Questão de método acentuada por Granger através do reconhecimento da necessidade de uma "teoria sintética da individuação linguística, já que, "é através do que se acrescenta ao estrito conteúdo informacional que a individuação pode aparecer" (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l’homme, p. 193). Neste sentido, Granger é mais próximo de Lacan do que gostaria de reconhecer, e já é tempo de dizer que sua afirmação de que Lacan sustenta uma linguagem do ser à despeito da linguagem da estrutura é indefensável. Melhor seria dizer que Lacan marca um ponto de convergência entre estruturalismo e temas ligados ao hegelo-heideigerianismo francês.

[35] Lembremo-nos que "Nós não podemos deixar de incluir nosso discurso sobre o inconsciente na tese que ele enuncia, que a presença do inconsciente, para se situar no lugar do Outro, deve ser procurada em todo discurso, em sua enunciação" (LACAN, Ecrits. 834)

[36] LACAN, Séminaire  XXIV, sessão do 16/11/76.

[37] LACAN, Ecrits, p. 100

 [38] ADORNO, Negative Dialektik, op. cit., p. 164

[39] LACAN, Autres écrits, op. cit., p. 541

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