O trabalho da forma no pensamento de
Jacques Lacan: notas sobre a relação entre estilo,
sintoma e subjetividade Meu estilo é o que ele é Jacques Lacan Ilegível. Eis o adjetivo preferido
quando o assunto é Jacques Lacan. "O que bem se concebe, claramente se
enuncia", costuma-se dizer a respeito desta obra capaz de causar vertigens
devido a suas rupturas de planos conceituais, suas bricolagens teóricas com a
história da filosofia e à incidência de formalizações lógico-matemáticas
aparentemente psicóticas. Mas ‘ilegível’ não era exatamente a forma que o
psicanalista gostaria de ser lembrado: "Bastam dez anos para que o que
escrevo se torne claro para todos"[1].
Mais de dez anos se passaram e o que vemos é o retorno, à passarelas das modas
intelectuais, da crítica ao pretenso hermetismo do pensamento francês
contemporâneo. Crítica cujo alvo preferido é sempre Jacques Lacan. Mas a verdade é que há alguma coisa em
Lacan que ainda incomoda. Esta ‘alguma coisa’ é seu estilo. Na verdade,
gostaríamos que Lacan abandonasse sua escrita barroca e seus gráficos, que ele
parasse de construir labirintos conceituais e começasse, de uma vez por todas,
a andar em linha reta respeitando a gramática da boa e velha clareza
ensaística. Tudo seria mais fácil se o sujeito abandonasse a singularidade
radical do seu estilo e seguisse a ordem mínima de razões. Ordem estabelecida,
diga-se de passagem, graças a uma geometria retórica fundamentada a partir de
analogias com os dispositivos da geometria euclideana. Mas se Lacan recusa-se a
abandoná-lo é porque seu estilo é necessário. Longe de ser um simples invólucro
pseudo-literário ou pseudo-logicista, ele é a apresentação mesma da Coisa em
questão na psicanálise. "Há nas dificuldades do meu estilo", dirá
Lacan, "alguma coisa que responde ao objeto mesmo do qual ele trata"[2].
Há, no estilo de Lacan, um tempo para compreender que é o tempo necessário para
o desvelamento do objeto do seu discurso. Pois este estilo impõe uma trajetória
de leitura, um regime de aproximação que não pode ser excluída da apresentação
do objeto. A coextensividade entre estilo e objeto
será claramente sublinhada por Lacan. A estrutura do estilo lacaniano seria
a modalidade de apresentação daquilo que é identificável à descoberta
psicanalítica: "Todo retorno à Freud que dê matéria a uma ensinamento
digno deste nome, só se produzirá pela via através da qual a verdade mais
escondida se manifesta nas revoluções da cultura. Esta via é a única formação
que podemos pretender a transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um
estilo"[3]. Eis aí
uma afirmação cuja intenção é absolutamente clara. A psicanálise traz uma
verdade ao campo da cultura e ela só se mostra ao aprendermos a levar em conta
a dimensão do estilo. Nós poderíamos mesmo dizer que tal verdade se apresenta
em uma certa forma de dizer. Pois a psicanálise é, no sentido forte do
termo, uma forma de dizer. Estratégia de reorientação dos impasses do
pensamento através da palavra. Sua capacidade de dissolver sintomas pressupõe
uma modificação radical na relação entre o sujeito e a linguagem. Afinal, se
há situações em que dizer é fazer há coisas que não podemos fazer antes de
mudarmos nossa maneira de dizê-las. Um
ponto cego Mas
devemos inicialmente perguntar: qual o objeto da psicanálise? Como apreendê-lo?
Estas duas questões não estão dissociadas. Definir o objeto da psicanálise é
definir sua modalidade de apreensão. Pois tal objeto é exatamente aquilo que se
articula a partir do limite da reflexividade. Para a psicanálise, o
procedimento de auto-fundamentação reflexiva da razão moderna encontra um
limite que aparece como falha no interior da linguisticidade da consciência. A
psicanálise é sintoma de uma época que não acredita mais que a espontaneidade
reflexiva da consciência, fator de garantia da transparência do sentido e das
estratégias de compreensão, possa fundamentar a racionalidade. É por isto que
Lacan afirmará: "a discordância entre saber e ser, este é nosso
sujeito"[4]. Havendo uma discordância entre saber e
ser, o problema inicial consistirá em compreender como escrever sua trajetória
e determinar as possibilidades de sua apresentação. Se a psicanálise admite a
ética do silêncio como procedimento de apresentação, então ela
transforma-se em uma séria candidata a tornar-se um novo misticismo. Mas se ela
simplesmente toma a palavra e fala do limite através de um estilo
metalinguístico anula-se, através da consolidação de uma organização sistêmica,
a possibilidade mesma de por a discordância como objeto. Notemos de passagem que, graças às lições
de Kojève, Lacan sempre tentará resolver tal impasse escrevendo tal inadequação
através do vocabulário da negatividade dialética, seja de maneira explícita
(até a década de sessenta), seja de maneira implícita (após a década de
sessenta). O que o fará pensar a praxis analítica através de uma certa
dialética negativa onde: "a verdade está em reabsorção constante naquilo
que ela tem de perturbador, e sendo ela mesma apenas aquilo que falta à
realização do saber"[5].
Ou seja, a verdade como comportamento negativo em relação ao estabelecimento da
positividade do saber. Um comportamento que Lacan chamará de ‘mi-dire de la
vérité’. Lacan não teme aqui em entrar em um
problema de ordem propriamente epistemológica. Caracterizar a verdade como
exílio, como limite à realização do saber é afirmar que a fundamentação deste
saber encontra-se em posição problemática. Os dispositivos realistas de
fundamentação estão descartados devido à compreensão estruturalista da relação
entre linguagem e um mundo dotado de autonomia metafísica. A saída pela racionalidade
intersubjetiva será abandonada pelo próprio Lacan nos anos 60. Isto
significaria assumir um relativismo epistemológico que admite a multiplicidade
plástica de sistemas de interpretações e o abandono de critérios unívocos de
verdade? Alguns comentadores acreditaram que o pensamento lacaniano se
enquadraria neste figurino relativista ou, ainda, em um certo ceticismo
prudente. Nada mais distante do pensamento lacaniano, já que: "não há
praxis mais orientada que a psicanálise em direção ao que, no coração da
experiência, é o núcleo do real"[6].
Defesa de uma experiência do real como limite, de uma manifestação do real como
presença do negativo, como tensão entre o trabalho do negativo e a
paciência do conceito que nos legitima a perseguir a hipótese de uma dialética
negativa operando na antecâmara do pensamento lacaniano. É verdade que, para uma certo pensamento
contemporâneo, a noção de dialética na sua matriz hegeliana é um conceito vago
e suspeito. Mas a experiência intelectual de Lacan será simplesmente
incompreensível se recusarmos o encaminhamento dialético utilizado para a
reconfiguração de conceitos centrais da teoria psicanalítica, tais como pulsão
de morte, gozo, repetição e sintoma. Encaminhamento reconhecido pelo próprio
psicanalista. Assim, nos anos 1960-61 ele falará em uma
dialética do desejo[7]
e em um dialética da sublimação[8].
No Seminário de 1961-62, sobre ‘A identificação’, o psicanalista acabará por
fazer, mesmos sem admitir, uma crítica à analiticidade a partir de moldes
lógicos estritamente hegelianos. Até porque, a função da dialética hegeliana
era extamente de "denunciar as identificações em seus enganos". Em
1964, ele sublinhará a existência de um ‘movimento dialético da pulsão’. Em
1969, ele retornará à dialética do Senhor e do Escravo para ‘corrigi-la’
através da teoria marxista do trabalho e, desta feita, abrir espaço ao advento
do discurso do analista : dispositivo teórico que visava formalizar a
estrutura do final de análise. Mas, para além destas reincidências no
vocabulário dialético, falta mostrar o que seria e como Lacan pretende
operacionalizar a redução da dialética a seu núcleo negativo, impedindo a
realização desta ‘síntese fantasmática’ entre saber e verdade. Principalmente,
falta mostrar como tal redução escapa do risco de transformar-se em simples
perpetuação de um movimento infinito ruim e, através daí, em implementação
clínica de uma ‘retórica da perpetuação da falta’. Não nos esqueçamos que a psicanálise deve
dar conta de um duplo imperativo. Ele deve aparecer como crítica do
conhecimento através da compreensão da consciência como sinônimo de alienação.
Neste ponto, ela é discurso da discordância, da clivagem entre saber e verdade.
Mas ela não pode se resumir a tal tarefa negativa, já que isto a jogaria nos
braços de uma certa forma de relativismo que vê a experiência apenas como campo
de projeção fantasmática. Há uma tarefa positiva na psicanálise presente na
idéia de ‘experiência do real’ como limite. E aqui o termo experiência deve
ser levado às últimas consequências. Pois ele traz, nas entrelinhas, a
pressuposição de uma modalidade ainda não definida de síntese disponível
ao sujeito que experimenta. Antes de passarmos a este ponto, vamos
retornar às considerações sobre o estilo de Lacan. Os eixos deste estilo serão
articulados através da tentativa de formalizar a discordância entre saber e
ser. Um estilo que quer escrever uma discordância. É por isto que a clareza
euclideana é estrangeira ao pensamento lacaniano. Esta clareza quer negar o
próprio objeto da psicanálise. Podemos sempre contra-argumentar dizendo:
"Mas o estilo de Freud era absolutamente claro". É verdade. Mas nos
esquecemos que, para Freud, havia um limite claro ao texto psicanalítico:
"ninguém tem o direito", dirá ele, "de intervir na psicanálise
se ele não adquiriu experiências determinadas que só se alcançam através de uma
análise pessoal"[9].
Quer dizer, para Freud, o texto analítico é, por definição, um saber
incompleto. A estratégia de Lacan será diferente, O texto, na perspectiva
estilística, já é uma maneira de integrar, de escrever uma inadequação. E
para escrever a incompletude do saber é necessário mostrar o que a clareza quer
esconder; ou seja, um certo tempo, um certo processo e uma certa experiência de
leitura. Parafraseando Steve Reich, podemos falar do texto lacaniano como
processo gradual onde escutamos os inúmeros deslocamentos ritmados pela
irredutibilidade da Coisa analítica à seu conceito. De onde se segue esta
impressão de perpétuo descentramento e de incessante deslizamento entre vários
planos conceituais distintos que, muitas vezes, beira a uma operação de
bricolagem. O texto gira em torno das bordas da Coisa. É por isto que Lacan dirá que não basta
simplesmente falar da palavra, ou seja, fazer metalinguagem. A aposta da
psicanálise é "falar no fio da palavra"[10].
Falar neste limite entre sentido e não-sentido para mostrar, e após para
formalizar, o limite do dizível, a ausência de fundamentação: antiga maneira
dialética de integrar a negatividade à identidade. Filiação dialética que exclui, é claro,
um ponto fundamental. Lacan sustenta uma aposta de formalização e não
uma aposta de conceitualização, ele quer integralizar mostrando através
de seu estilo, e não dando um conteúdo conceitual adequado ao limite. A
distinção entre formalização e conceitualização ou entre letra
e conceito permite à psicanálise operar uma síntese sem cair nas
aporias da totalização própria à dialética estritamente hegeliana. Pois um
limite posto pelo conceito deixa de ser des-idêntico, deixa de ser
limite, da mesma forma como Freud nos lembrava que uma negação dita de maneira
muito peremptória deixa de ser uma negação; enquanto que um limite que pode
apenas ser pressuposto pelos processos do conceito continua irredutível.
Não se trata aqui de hipostasiar o não-conceitual, mas de sustentar que o
movimento mesmo do conceito, movimento feito de repetições e resistências,
indica a dimensão de uma experiência que só pode aparecer através de uma
leitura da forma e não através da compreensão conceitual do conteúdo. Da
mesma maneira como a escuta da pura estrutura dinâmica do significante
nos permite uma experiência do real que não se deixa transformar em
determinação nominal significante. É necessário pois defender, no interior da
psicanálise, um sistema de interpretação que privilegia a análise da forma,
para além de uma análise semântica de conteúdos recalcados. É necessário
defender a existência de uma leitura de superfície contra a leitura
arqueológica do inconsciente. Sabemos que Lacan deu um nome a este
limite não-conceitual da reflexividade, para esta inadequação que se revela na
superfície da língua. Trata-se do inconsciente. Sobre este ponto, é
necessário especificar o que é exatamente a noção psicanalítica de inconsciente
para compreendermos a função do regime estilístico do discurso lacaniano. Inconsciente
e representação Vamos começar por aquilo que o
inconsciente não é. Primeiramente, ele não é um fato psicológico. Isto quer
dizer que ele não está ligado a fatos psicológicos como: a memória, a atenção,
a sensação ou à intencionalidade em geral. Desde a teoria sartreana da má-fé,
nós sabemos que os chamados conteúdos mentais inconscientes (conteúdos latentes
de sonhos, crenças não-conscientes, acontecimentos traumáticos denegados,
lembranças esquecidas, sentimentos latentes etc.) não podem ser realmente
inconscientes. Como estes conteúdos mentais são resultantes de um processo de
recalcamento, chega-se rapidamente a um certo paradoxo: para que haja
recalcamento é necessário uma consciência prévia do recalcamento: "Eu
preciso saber bem precisamente esta verdade [a verdade dos conteúdos mentais
inconscientes] para escondê-los de mim mais cuidadosamente"[11].
Acento posto aqui sobre o saber. Se levarmos em conta as resistências
correntes de um analisando, veremos que elas demonstram: a) uma representação
do recalcado, b) uma compreensão do alvo para onde tende as questões do
psicanalista. O que normalmente chamamos de ‘conteúdos mentais inconscientes’
devem ser compreendidos como conteúdos mentais pré-conscientes. Pois o inconsciente
não tem conteúdos mentais privilegiados. Ele é vazio, já que todo conteúdo do
pensamento é, de uma certa forma, consciente[12].
O inconsciente analítico também não é um
fato neurológico. Não há nada no cérebro que seja parecido ao inconsciente analítico.
De fato, existem estados cerebrais não-conscientes, tal como a mielinização dos
axônios no sistema nervoso central ou outros eventos neurofisiológicos
ocorrendo em arquiteturas neuronais, mais nem todos os estados cerebrais são
estados mentais[13]. Quer
dizer, nem todas as características do cérebro, que suportam a vida mental, são
características mentais. Além disso, os processos não-mentais do cérebros têm
exatamente como característica principal a capacidade de causar estados
conscientes. Por outro lado, dizer que o
inconsciente é um fato neurológico equivaleria a dizer que existem estados
cerebrais que não são conscientes mas que têm uma intencionalidade
inconsciente. O problema é que a idéia de uma intencionalidade inconsciente é
tão indefensável quanto a idéia de um fato psicológico inconsciente. E não é
por outra razão que alguém como John Searle fará uma crítica absolutamente
‘sartreana’ ao inconsciente freudiano. Tal como Sartre, Searle dirá que:
"a noção de um estado mental inconsciente implica em acessibilidade à
consciência"[14],
já que ela é: "a noção de um estado que é um pensamento ou experiência
consciente possível"[15].
De fato, os dois filósofos, de tradições
tão diferentes, pensam o inconsciente a partir da dicotomia entre
intencionalidade latente/intencionalidade manifesta[16],
o que não nos leva longe já que este não é o ponto irredutível e determinante
do inconsciente freudiano. Foi para evitar confusões desta natureza que Lacan
afirmou que: "o inconsciente não é uma espécie definindo na realidade
psíquica o círculo do que não é atributo (ou virtude) da consciência"[17].
Ou seja, as metáforas da profundidade são absolutamente inadequadas para a
determinação da natureza da descoberta freudiana. Mesmo que Freud insista em
chamar a psicanálise de psicologia das profundezas e nunca abandone a
idéia da coextensividade entre inconsciente e pensamentos latentes, não há
atualmente como operarmos com tais categorias. Mas o que resta ao inconsciente
analítico? Nem fato psicológico, nem fato neurológico, o inconsciente será um
fato concernente à estrutura da reflexividade. Um fato com consequências
éticas, como nos lembrará Lacan. Nós podemos dizer que ele será uma espécie de
ponto cego que aparece no interior da consciência. Quando Lacan diz:
"há relação ao ser que não podemos saber"[18],
ele está de fato afirmando que há um ponto irrefletido que aparece no interior
do saber representacional da consciência. Ponto que se manifesta através da
formação do sintoma. É importante frisar que a verdadeira
polaridade aqui é entre representação e sintoma. A capacidade cognitiva da
consciência é coextensiva a sua ‘capacidade representacional’, ou seja,
articulação reflexiva de representações a partir de um regime de categorização
que privilegia disposições espaço-temporais e relações de identidade e negação
próprias a esta forma de pensar que a contemporaneidade denomina de pensar
representativo. Forma de pensar que Lacan caracterizará como produtora da:
"estagnação formal que constitui o eu e os objetos na forma de entidades
ou ‘coisas’ "[19].
Lembremos aqui que Lacan insiste no fato de que a categorização do pensar
representativo dependente das denegações próprias à lógica do narcisismo. Como, do ponto de vista da
psicanálise, a hipótese fenomenológica de uma consciência pré-reflexiva
imediata é dificilmente defensável, o sintoma só poderá ser compreendido
enquanto fenômeno que marca a emergência de uma formação que, à princípio, não
encontra lugar no interior da estrutura do saber representacional da
consciência. De onde se segue a famosa definição de Lacan: "o sintoma é o
retorno da verdade na falha de um saber". Voltemos à Freud a fim de analisarmos
melhor este ponto. Para Freud, o eu, enquanto núcleo do sistema
percepção-consciência, é a parte organizada do isso. Se perguntarmos: ‘quais
são os dispositivos de organização próprios ao eu ?’, veremos que tratam-se de
dispositivos de ligação e de síntese. O eu tenta colocar em prática os
princípios do processo secundário, estabelecendo identidades de pensamento que
impeçam a livre passagem de energia própria ao processo primário e a seus
mecanismos de condensação, deslocamento e figuração. Mas essa passagem de
energia livre a energia ligada só pode ser operacionalizada através do que
Freud chama de WortVorstellung : traços mnésicos derivados de percepções
passadas e que estariam próximos daquilo que entendemos hoje por representações.
E não é por acaso que se trata aqui de um sistema de representações que
procura liquidar a sobredeterminação própria ao processo primário. É que
estamos diante de uma forma de pensar que trabalha a partir de um princípio de
identidade que não admite a internalização da negação ou, como dizia Hegel, a
auto-negação da determinação. Exemplo claro de tal limite à negação é o fato
dos sintomas aparecerem geralmente como índices do que Freud chama de ‘conflito
de ambivalência’, quer dizer, como índices de uma contradição interna na
determinação do valor de uma representação. A constituição do objeto fóbico do
pequeno Hans (o medo de ser mordido por um cavalo) nos mostra bem esta lógica.
Um dos polos de produção da fobia vem do fato de que ele ama e odeia seu pai,
ou seja, a mesma representação paternal é objeto de afeto e medo, o que provoca
uma instabilidade no interior da identidade da representação. Para rejeitar tal
ambivalência, Hans desloca a angústia diante do pai para uma angústia diante de
cavalos e denega a monção agressiva contra o pai[20].
Mas aqui há um elemento que complica
nossa perspectiva. Na verdade, nada disso prova que o estatuto do sintoma seja
equivalente a uma espécie de ponto cego irredutível no interior da consciência.
Ao contrário, já que a psicanálise aparentemente traz um horizonte de
dissolução dos sintomas. Através da interpretação analítica e de seus
dispositivos de rememoração, o objeto fóbico de Hans desaparece assim como boa
parte dos sintomas de qualquer neurótico. O sujeito aprende a manejar uma certa
lógica da ambivalência, a internalizar negações de maneira reflexiva, o que
desarma parte do processo de formação dos sintomas. Onde estaria então a
irreflexividade opaca do inconsciente? A verdade complexidade do problema
advém do fato de existir na psicanálise um sistema duplo de interpretação, da
mesma forma como há duas modalidades de sintoma. Uma duplicidade trabalhada por
Lacan na década de 70 através da estabelecimento da distinção entre sintoma e sinthome.
A distinção se impôs a fim de permitir a partilha entre sintomas que podem ser
tratados e liquidados através de uma rearticulação do universo de
representações conscientes e um certo tipo de sintoma intratável ligado aos
traços distintivos da subjetividade. Primeiramente, há um sistema de
interpretação analítica que, na verdade, funciona a partir de uma espécie de
hermenêutica sexual cujo motor principal é o mito de Édipo. O termo hermenêutica
aqui tem valor decisivo. Trata-se de desvelar o sentido do ato subjetivo
através da simbolização destes capítulos da história do sujeito que foram
expulsos do universo da comunicação pública. Capítulos escritos pela tinta dos sintomas
e eventos traumáticos em uma língua estranha ao pensamento representativo da
consciência. Uma das melhores expressões de tal maneira de compreender o
sintoma é a afirmação de de Lacan: "o sintoma é o significante de um
significado recalcado da consciência do sujeito"[21].
Ele é um significante que marca o significado que virá através da
interpretação. Proposição que acabará por colocar Lacan ao lado de Ricoeur,
para quem: "o texto da consciência é um texto lacunar, truncado: admitir o
inconsciente equivale a um trabalho de interpolação que introduz sentido e
coerência no texto "[22].
Mas lembremo-nos, estamos diante de
capítulos de um livro que conta a história do sujeito através das modulações
possíveis do complexo de Édipo. Eis porque tal sistema de interpretação merece
o nome de hermenêutica sexual ou, talvez, hermenêutica edípica. Freud
interpreta, por exemplo, os sonhos de Dora e reconstrói o sentido de sua
história basicamente através de uma interpretação semântica que
privilegia a reconstrução do mito individual do neurótico e onde cada
elemento do sonho é semanticamente decomposto[23].
Se a psicanálise se reduzisse a tal
dispositivo semântico de interpretação, se os sintomas se reduzissem a serem
significantes de significados recalcados, dificilmente poderíamos falar em
irreflexividade opaca do inconsciente. Na verdade, dificilmente poderíamos
falar de inconsciente pura e simplesmente. De fato, a praxis de Freud e
Lacan ficaria reduzida: "à reorganização do universo do paciente em função
das interpretações psicanalíticas "[24]. Isto apenas mostra como o
ponto determinante do inconsciente freudiano nunca ficará evidente enquanto
continuarmos a pensá-lo através de estratégias que privilegiam a análise
semântica de conteúdo e os mecanismos de tradução entre um sentido primeiro
e um sentido segundo[25].
Não podemos, por exemplo, seguir Ricoeur e falar do inconsciente como uma
"transgressão do sentido pelo sentido"[26],
já que conteúdos rejeitados, denegados ou forcluídos, ou seja, os materiais do texto
da Outra-cena, não são ontologicamente inconscientes. Eles são
pré-conscientes e podem ser recuperados através das operações de simbolização
próprias ao mecanismo de rememoração. Voltamos a uma derivação do
paradoxo apontado por Sartre e retomado por Searle: o inconsciente aqui é
pensado a partir do vir-a-ser-consciente. Ele é apenas aquilo que,
momentaneamente, não está consciente mas que poderá sê-lo ulteriormente através
uma série de processos reflexivos. Ou seja, ele é um estado, e não uma instância.
Desta forma, continuamos com nossa
questão central em aberto. Afinal, onde está esta outra dimensão do sintoma que
não pode, nem de direito nem de fato, ser integrado ao horizonte de compreensão
da consciência? Questão que nos leva a esta outra: o que poderia ser o segundo
sistema analítico de interpretação capaz de nos expor diante da irreflexividade
do inconsciente? E o que tudo isto tem a ver com a nossa problemática do
estilo? A fim de responder tais questões, gostaria de operar um curto-circúito
e desenvolver uma consideração geral a respeito da estratégia psicanalítica de
interpretação dos sonhos. Ela poderá nos demonstrar a posição final do
inconsciente na teoria analítica. O
inconsciente trabalha Sabemos
que a psicanálise é uma praxis que opera a partir de dois procedimentos: a
interpretação e a transferência. No caso da interpretação dos sonhos (a famosa
"via régia para o inconsciente", segundo Freud), acredita-se
normalmente que a interpretação analítica consiste na transcrição (Übertragung)
do pretenso pensamento latente inconsciente ao texto manifesto do sonho. Se
assim fosse, a psicanálise não passaria realmente de uma estratégia
hermenêutica de reintegração do sentido à esfera da comunicação pública. Nesta
leitura, esquece-se de tirar as consequências da afirmação de Freud: quase
todos os pensamentos latentes do sonho “não diferem em nada dos produtos de
nossa atividade consciente habitual (bewussten Seelentätgkeit) (...)
eles mercem o nome de pensamentos pré-conscientes e podem efetivamente terem
sidos conscientes em qualquer momentos de nossa vida desperta "[27].
Se quase todas os pensamentos
latentes são pedaços de um pensamento pré-consciente é porque o verdadeiro
elemento inconsciente no sonho encontra-se no processo de trabalho do sonho;
quer dizer, na pura forma de articulação significante que produz o conteúdo
manifesto e obedece ao ritmo do automatismo de repetição. O que há de
inconsciente no pensamento não é exatamente o pensamento latente mas a pura
forma do pensamento[28].
É Freud quem nos coloca nesta via. Ao afirmar que os pensamentos latentes do
sonho não diferem em nada dos produtos da nossa atividade consciente habitual,
ele lembra que: "ao entrar em conexão (Verbindung) com as
tendências inconscientes (...) eles são submetidos à leis que governam a
atividade inconsciente"[29].
É a aplicação de tais leis, o trabalho de combinatória, distorção e
recomposição dos conteúdos latentes ou, ainda, o trabalho do desejo que
aparece como o processo determinante da natureza inconsciente. Esta pura forma pode ser também
designada como estilo do sonho. O sonho constrói os conteúdos manifestos
a partir de um certo processo de trabalho articulado através da quadratura:
condensação, deslocamento, figuração e elaboração secundária. Podemos chamar
tal trabalho de estilo porque se trata de uma modalidade combinatória de
escritura submetida à utilização particular de certos processos linguísticos
gerais[30].
Para interpretar tal escritura
precisamos de uma análise estilístico-formal. Quer dizer, a
interpretação psicanalítica deve tender a uma análise estilística do
inconsciente[31] que, no
lugar de apreender o sentido dos significantes primordiais aos quais a pulsão
se fixou, privilegie a análise das modalidades de passagem de um
significante à outro utilizadas pelo sujeito. Quer dizer, menos as escavações
arqueológicas do texto consciente e mais o trabalho do desejo que se
manifesta na pura articulação significante. Pois, como dizia Lacan, a
partir dos anos 60: "não é o efeito de sentido que opera na interpretação,
mas a articulação, no sintoma, de significantes (sem sentido algum) que estão
aprisionados nele"[32].
Não se trata de dar à psicanálise a tarefa de reconstituir o sentido da
história do sujeito através da narrativa integral do Todo de sua história - até
porque, o momento histórico de tal narrativa não é mais o nosso. Na verdade.
trata-se de individualizar a articulação significante que compõe o sintoma e
fazer com que o sujeito se reconheça em tal modo de articulação. Levá-lo
a vivenciar, como estilo, aquilo que ele sofre como sintoma. Veremos mais à
frente o que isto pode significar. Mas, antes, várias questões ainda
estão em aberto. Primeiro, por que o trabalho estilístico do sonho é
inconsciente? A resposta é: porque ele é a regra de articulação genérica do
pensamento do sujeito. O sujeito pensa com o mesmo estilo (ou seria melhor
dizer, com o mesmo pathos) com que constrói seus sonhos. Por causa
disto, mesmo as modalidades de apreensão objetiva do trabalho do pensamento são
determinadas pela estrutura mesma deste trabalho. O sujeito pode objetificar o
estilo do pensamento e falar sobre ele em um discurso da terceira pessoa, como
se fosse o estilo de um outro. Mas ele não pode objetificá-lo a partir de uma
perspectiva que não seja determinada pelo próprio estilo. O que há pois de impensável no
pensamento? Nossa resposta só pode ser: o estilo do trabalho do pensamento.
O inconsciente é o estilo que determina a forma final do pensável para um
sujeito. Ele é o trabalho da forma do pensamento que não pode aparecer na
tela do pensamento através de uma intuição imediata. Desta forma, podemos dizer que o estilo é
exatamente o trabalho de passagem da forma geral transcendental do pensamento
(a estrutura, no caso de Lacan) ao conteúdo local. Passagem que é o ato de
pensar, se compreendemos o pensamento como ato de singularizar um conteúdo
particular da experiência através de sua articulação com a universalidade
conceitual da forma. Singularização que Granger chamará de:
"individualidade conceitualizada"[33]
(mesmo que, para afirmar isto, precisemos retornar às paragens dialéticas a fim
de estabelecer uma diferença precisa entre conceito e representação)
Pois, entre a transcendentalidade da universalidade das leis da estrutura e a
particularidade da experiência, faz-se necessária uma mediação feita por uma
espécie de ‘articulação singular da estrutura’[34]. A introdução de um ‘termo médio’
entre estrutura e fenômeno, termo aqui designado como estilo, é uma
particularidade fundamental do pensamento lacaniano. Ela o tira das vias de um
estruturalismo rígido à la Lévi-Strauss sem lançá-lo em direção a um
subjetivismo espiritualista e abre, assim, as portas para uma defesa da
irredutibilidade ontológica da subjetividade. Pois este ‘termo médio’ nada mais
é do que o sujeito do inconsciente; que não se resume nem a ser um suporte do
genérico da estrutura, nem é uma entidade dotada de uma espontaneidade absoluta
de ação. Aqui, não podemos esquecer que, ao
definir o pensamento como ato de trabalho, pressupomos um sujeito do ato. Levar
em consideração o estilo é necessariamente levar em consideração o sujeito do
pensamento e, no caso de Lacan, a estrutura do sujeito do inconsciente. O
estilo do pensamento aparece pois como a configuração do sujeito que pensa. Quer
dizer, através do estilo introduzimos a estrutura da subjetividade enquanto
elemento determinante de toda racionalidade. No início, foi-se posto a
coextensividade entre estilo e objeto. Agora, percebemos que tal
coextensividade existe também entre estilo e sujeito agente. A
explicação é que o estilo é um trabalho de articulação entre o pensamento
e o objeto do pensamento. Enquanto língua que deixa ler as marcas da
subjetividade em sua superfície, o estilo é encontro do sujeito no lugar do
Outro - retorno à si como objeto. Estilo
e sintoma Mas,
a fim de tirarmos as principais consequências clínicas de tais afirmações,
falta acrescentar mais um elemento às considerações sobre a relação entre
estilo e inconsciente em psicanálise. Antes de começar, uma visão
panorâmica. O problema inicial era a especificidade do inconsciente
psicanalítico. O inconsciente foi posto primeiro como um limite irredutível ao
processo de ampliação reflexiva do horizonte de compreensão da consciência. Ele
era um limite que deveria ser apresentado, uma negatividade que deveria ser
inscrita de forma não-representativa. Este programa positivo nos dava a chave
para a compreensão do estilo barroco da escritura de Lacan[35].
Para expor a pertinência de tal
leitura, era necessário defender a existência, no interior da psicanálise, de
duas modalidades distintas de sintoma e de interpretação. De um lado, sintomas
resultantes do recalcamento da ambivalência no valor de uma representação
consciente e que podiam ser reintegrados à consciência através dos mecanismos
reflexivos de interpretação hermenêutica próprios à psicanálise. De outro, um
sintoma intratável que resistiria a todo processo de reintegração e leitura
hermenêutica. Um sintoma como limite irredutível; verdade do inconsciente que
podia aparecer como comportamento negativo em relação ao saber porque sua
modalidade de negatividade era de uma ordem diferente da simples ambivalência. Ao invés de falar da natureza deste
sintoma, preferi fazer um curto-circuito e discorrer sobre as consequências da
distinção entre conteúdo manifesto, conteúdo latente e trabalho do sonho. O
trabalho do sonho apareceu como determinado por um estilo compreendido
como modalidade singular de articulação repetitiva de significantes e
termo-médio entre estrutura geral e fenômeno particular. O inconsciente deixou
de ser um espaço de pensamentos latentes para ser estrutura estilística de
produção de formações psíquicas. Falta, pois, dar o último passo, ou seja,
articular estilo e sintoma intratável. A este sintoma intratável, Lacan deu
o nome de sinthome através do comentário dos procedimentos estilísticos
da escrita de Joyce. Desde 1955, Lacan seguia uma pista dada pela noção
reichiana de análise do caráter, fundada sobre a descoberta de que a
personalidade do sujeito é estruturada como o sintoma contra o qual ele luta.
Na verdade, esta era apenas a consequência da compreensão da peculiaridade do
momento histórico inaugurado pela psicanálise. Momento no qual a subjetividade
deixa de ser associada à imanência da vida interior, da memória e de
qualquer espécie de dado psicológico privilegiado ou de co-naturalidade
fisiológica. Se a psicanálise conserva a função do sujeito, é para livrá-lo de
toda gramática da profundidade. Dentro desta perspectiva, a subjetividade verá
seu campo acoplar-se à dimensão do sintoma. A subjetividade como sinthome, como
desvio. Eis o que o descentramento psicanalítico do sujeito nos traz. Lembremos
que esta era a consequência final da estratégia do espírito de nosso tempo em
ver a consciência como sinônimo de alienação. Se todo o campo da consciência é
marcado pelo selo de uma alienação sem volta, só resta à subjetividade se
manifestar na forma de sintoma. Mas há uma astúcia neste regime
psicanalítico de subjetividade restrita. Pois o sinthome do qual falamos
aparece como modalidade singular de gozo disponível ao sujeito e, por que não
dizer as coisas de maneira clara, como espaço para-além da alienação. O gozo do
sinthome nào é aquilo que Freud chamava de benefício secundário do sintoma, gozo
próprio à doença e sempre ligado aos fantasmas masoquistas do sujeito. O gozo
do sinthome é aquilo que se produz através de um reencontro, de uma experiência
possível de reconhecimento de si naquilo que aparecia como pura
exterioridade, como Umheimlich no interior do si mesmo. Aqui, a estratégia psicanalítica
mostra todas as suas cartas: o sinthome é espaço do individual. A defesa da
irredutibilidade do sinthome aparece como a última modalidade de defesa do
campo do individual. que - questão de suma importância - porta em si mesmo as coordenadas
de seu próprio código. Aqui, a estratégia fica clara: a defesa da
irredutibilidade do sinthome aparece como defesa do campo do individual. E é
por isto que o fim da análise será definido por Lacan como identificação ao
sinthome: "Saber fazer com seus sinthome, eis aí o fim da
análise"[36], Esta
fórmula traz a ironia suprema da psicanálise. A ironia de uma clínica que
encontra sua força no reconhecimento da sua fraqueza contra o sinthome. Pois,
como dizia Lacan: "a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite
estático do tu és isto, onde se revela à ele a marca de seu destino
mortal, mas não está em nosso poder de praticantes de levá-lo à este momento
onde começa a verdadeira viagem"[37].
Há ainda duas questões que gostaria de
abordar antes de finalizar. Antes de mais nada, alguém poderia
perguntar: "pensar o fim da análise como identificação com o sinthome não
significaria hipostasiar o individual ou retornar, de uma maneira muito astuta,
à um certo plano do imanência? Podemos dizer que vale para o sinthome aquilo
que Adorno falou à propósito do individual: "o núcleo do individual seria
comparável à estas obras de arte individualizadas ao extremo, que escapam à
todos os esquemas, cuja análise, no extremo limite de suas individualizações, reencontra
momentos do universal, de participação dissimulada na tipologia (Typik)”[38]. Mas como é possível reencontrar
momentos do universal no extremo da individualização? Devemos aqui compreender
que o individual não é o originário, ele não é o primordial. Pois não há
sujeito originário. O individual é o resultado de um processo de retorno da
mediação pelo universal da linguagem, da mesma maneira como Lacan nos
assinalava que o Real não é o que é dado à intuição imediata mas, ao contrário,
o que é pressuposto pela compreensão simbólica como seu limite. A obra de arte
pode ser individualização extrema que dissimula uma participação na tipologia
porque ela é apresentação formalizada de um limite à tipologia. Mas ela
é apresentação que pressupõe atrás dela um trabalho, uma trajetória de
descolamento da tipologia. Uma obra de arte é sempre obra da perda da crença na
potência comunicanional da língua. A referência à estética como horizonte
privilegiado de análise do individual é aqui crucial. Pois ela dá uma proeminência
da formalização sensível sobre a prosa do conceito. Na dialética
lacaniana, a arte aparece como espaço de formalização do que é não-idêntico ao
conceito. Isto nos leva a última questão:
quando falamos em ‘identificação ao sinthome’ o que exatamente se deve
compreender por ‘identificação’? Sabemos que identificar significa
estabelecer uma proposição de identidade entre duas coisas, operar uma síntese.
Mas sabemos também que tal síntese não pode reduzir o não-idêntico ao idêntico
e, na perspectiva analítica, dissolver o sinthome. O que é não-idêntico deve
ganhar a forma da não-identidade. Podemos tentar resolver um tal
paradoxo através da noção do fim da análise como modificação da posição do
sujeito diante do sinthome, como transformação do sinthome em estilo. O estilo
permance sempre Unheimliche ao sujeito, sujeito que nunca pode
transformar-se em mestre do estilo. Pois o estilo pode formalizar o
individual do stinhome sem lhe fornecer algo como um conceitualização adequada.
Graça à esta maneira de conceber o estilo, o sinthome pode aparecer na
superfície da língua como pulsão de destruição da semântica da língua, e não
como adequação. Já que a línguagem é espaço do universal, a formalização do
individual só pode aparecer como distorção, resistência e opacidade. Neste
sentido, o exemplo da escritura de Joyce é precioso. Tão precioso quanto a
escritura do sitnhome presente no texto lacaniano. Aqui, devemos voltar a uma colocação
inicial: se há situações em que dizer é fazer há coisas que não
podemos fazer antes de mudarmos nossa maneira de dizê-las. Pois a cura
analítica virá necessariamente com uma ‘mudança do dizer’ que indica uma nova
compreensão da linguagem na sua relação com o sujeito: "ë isto o que eu
faço da minha prática: tira a ética do Bem-dizer"[39],
afirmava Lacan no fim da sua experiência intelectual. Muito ainda teria a se dizer a
respeito da maneira como Lacan concebia tanto a estética quanto o fim da
análise como rasura, como inscrição do não-idêntico que leva a uma
reconfiguração radical do dizer. Como se a psicanálise só pudesse advir após a
aparição de uma estética que não é mais ’promessa de felicidade’, como dizia
Stendhal, quer dizer, como determinação concreta e adequada da Coisa, mas que é
presença irredutível da irreflexividade do sinthome - movimento compulsivo que
circunda a ausência da Coisa. Neste ponto, haveria um campo vasto a explorar
entre operações estéticas e operações analíticas, entre matema e poema. Falar de estilo foi sempre um
assunto mais apropriado à crítica literária que à filosofia ou à psicanálise.
Mas podemos dizer que hoje tanto a filosofia quanto a psicanálise esforçam-se
em dar ao estilo um estatuto de conceito ontológico. Pois ele estaria ligado às
modalidades possíveis de apresentação do ser do sujeito. Não há consideração
contemporânea de ordem propriamente ontológica que possa economizar a questão
do topos do estilo do pensamento na reflexão sobre o ser do sujeito. BibliografiaADORNO, T., Negative dialektik, Frankfurt,
Suhrkamp, 1973 ARRIVÉ, M., Langage et psychanalyse,
linguistique et inconscient, Paris, PUF, 1994 FREUD, S., Einige Bernerkungen über den
Begriff des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1999 ___ ; Neues Folge der Vorlesungen zur
einführung in die Psychanalyse, Frankfurt, Fischer, 1999 ___ , Die Traumdeutung, Frankfurt,
Fischer, 1999 GRANGER; G-G., Essai d’une philosophie du style, Paris,
Armand Colin, 1968 LACAN, J. ; Autres écrits,
Paris, Seuil, 2001, ___ ; Ecrits, Paris, Seuil,
1966 ___ ; Séminaire III, Paris,
Seuil, 1981 ___ ; Séminaire V, Paris,
Seuil, 1998 ___ ; Séminaire VII, Paris,
seuil, 1986 ___ ; Séminaire XI, Paris,
Seuil, 1973 ___ ; Séminaire XX, Paris,
Seuil, 1975 LAPLANCHE J., et LECLAIRE, S., L’inconscient :
un étude psychanalytique, in LAPLANCHE, J., Problématiques IV :
L’inconscient et le ça, Paris, PUF, 1981 LÉVI-STRAUSS, C., Anthropologie
structurale, Paris, Plon, 1971 RICOUER, P., De l’interprétation, Paris,
Seuil, 1965 SARTRE, J-P, L’être et le néant, Paris,
Gallimard, 1943 SEARLE, J.,
A redescoberta da mente, Sào Paulo, Martins Fontes, 1997 [1] LACAN, Jacques ; Autres écrits,
Paris, Seuil, 2001, p. 544 [2] Idem, Séminaire V, Paris, Seuil,
1998, p. 30. Lacan é
mais explícito na afirmação: « se eu me arranjasse de maneira a ser
facilmente compreendido, isto é, para que vocês tenham a certeza de que
compreenderam, pois bem, em virtude mesmo de minhas premissas concernentes ao
discurso inter-humano, o mal-entendido seria irremediável » (Idem, Séminaire
III, Paris, Seuil, 1981, p.
189). Pois há em Lacan uma crítica totalizante da reificação da linguagem que
visa problematizar os processos de compreensão. [3] Idem, Ecrits, Paris, Seuil, 1966,
p. 458 [4] Idem, Séminaire XX, Paris, Seuil,
1975, p. 109 [5] Idem, Ecrits, op. cit., p. 797. Para compreender o propósito desta
frase, devemos lê-la conjuntamente com a afirmação de Adorno; "A
qualificação da verdade como comportamento negativo do saber que penetra o
objeto - e que então suprime a aparência (Schein) de seu ser -
assim imediato - ressoa como o programa de la dialética negativa» (ADORNO, Negative
dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1973, p. 162) [6] LACAN, Séminaire XI, Paris, Seuil,
1973, p. 53 [7] Cf. Subversion du sujet et dialectique
du désir dans l’inconscient freudien. É verdade que Lacan afirma que : "Toda
dialética do desejo que desenvolvi diante de vocês (...) separa-se claramente
da dialética hegeliana" (LACAN, Séminaire VII, Paris, seuil, 1986,
p. 160). Mas a verdadeira questão é : em qual plano tais dialéticas separam-se?
No plano fenomenológico ou lógico? E em que ponto a dialética lacaniana do
desejo ainda é uma dialética? [8] LACAN, Séminaire VII, op. cit, p. 130 [9] FREUD, , Neues Folge der Vorlesungen
zur einführung in die Psychanalyse, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 76 [10] LACAN,. Séminaire V, Paris, Seuil,
1998, p. 30 [11] SARTRE, Jean-Paul, L’être et le néant,
Paris, Gallimard, 1943, p. 83 [12] Vale a pena lembrar aqui da famosa
fórmula de Lévi-Strauss: "O inconscience deixa de ser o inefável refúgio
das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz
de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo através do
qual designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem
dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis"
(LÉVI-STRAUSS, Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1971, p. 224).
Veremos como a questão do estilo pode dar um lugar ao sujeito na fórmula do
inconsciente estrutural. Sobre
a crítica de Sartre ao
inconsciente, ver também LAPLANCHE et LECLAIRE, L’inconscient :
un étude psychanalytique, in LAPLANCHE, Problématiques IV :
L’inconscient et le ça, Paris, PUF, 1981, p. 274 [13] Cf. SEARLE, A redescoberta da
mente, Sào Paulo, Martins Fontes, 1997, pp. 217-249 [14] idem, p. 218 [15] idem, p. 229 [16] Vide, por exemplo, a afirmação de
Searle: «O conceito de intencionalidade inconsciente é aquele de uma latência
relativamente à sua manifestação na consciência » (idem, p
231). Na verdade, este erro de interpretação advém do desconhecimento do
verdadeiro papel da distinção freudiana entre inconsciente e pré-consciente [17] LACAN, Ecrits, op. cit, p. 830. [18] LACAN, Séminaire XX op. cit., 108 [19] LACAN, Ecrits, op. cit., p. 111 [20] A mesma lógica da ambivalência
aparece como processo de produção dos sintomas histéricos: "Um sintoma
histérico só pode aparecer quando duas realizações de desejos opostos, saídos
de dois sitemas diferentes, vêem concorrer em uma mesma expressão (Ausdruck)».
(FREUD, Die Traumdeutung, Frankfurt,
Fischer, 1999, p. 575) [21] LACAN, Ecrits, op. cit., p. 280 [22] RICOUER, De l’interprétation, Paris,
Seuil, 1965, p. 130 [23] Encontramos no caso Dora a presença
de uma interpretação sintática que privilegia a forma da repetição dos
acontecimentos nos sonhos da paciente. Por exemplo, Freud trabalha a repetição
das durações de tempo e dos números nos sonhos. Mas esta modalidade de
interpretação é subordinada à uma outra, de caráter hermenêutico. [24] LEVI-STRAUSS, Anthropologie
structurale,op. Cit, p. 202 [25] É por causa disto que análises do
inconsciente freudiano como as propostas por Davidson e Rorty estão condenadas
ao impasse. Todos os dois pensam o inconsciente freudiano como uma
multiplicidade de: "sistemas de crenças e desejos claros e distintos, tão
complexos, sofisticados e intrinsicamente consistentes quanto as crenças e
desejos conscientes de um adulto normal" (RORTY, Essais sur Heidegger
et autres écrits, p. 205). A cura viria através o estabelecimento de uma
espécie de ‘conversação’ entre os diferentes sistemas de crenças e desejos.
Quer dizer, além do problema desta leitura ‘substancializar’ o inconsciente
freudiano e de propor uma intra-subjetividade no mínimo duvidosa, há o problema
de psicologicisarmos o inconsciente através da idéia de uma sistema de crenças
e desejos cujos conteúdos deveriam ser desvelados. Não há crenças no
inconsciente, nem desejos no sentido de um objeto escondido do desejo [26] RICOEUR, Paul, De l’interprétation, p.
29. Mesmo se Ricoeur é
mais atento à dimensão do trabalho do sonho, dimensão não redutível à
dicotomia conteúdo latente/conteúdo manifesto, ele pensa a interpretação
do trabalho a partir da análise semântica, da decifragem hermenêutica de signos
de um desejo que só se mostra através do trabalho (Cf., idem, p. 445) [27] FREUD, Einige Bernerkungen über den
Begriff des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 438 [28] Esta afirmação é apenas um dos
desdobramento possíveis da estratégia lacaniana de definir a repetição e seus
mecanismos como o núcleo do inconsciente. Pois o estilo , compreendido como
articulaçào combinatória de significantes, nào é outra coisa que a manifestação
deste automatismo de repetição que caracteriza a força do inconsciente. [29] FREUD, idem, p. 438 [30] Sobre este ponto, ver também
ARRIVÉ, Lacan sur le style, sur le style de Lacan in Langage et
psychanalyse, linguistique et inconscient, Paris, PUF, 1994 : "Se o
inconsciente escreve seus sonhos e suas outras produções que são as ‘doenças
nervosas’ sem tê-la significado previamente de outra maneira, é inevitável que
as especificidades deste escrito - em suma, seu estilo (...) sejam pertinentes
à estrutura do inconsciente" (ARRIVÉ, p. 236) [31] É uma análise estilística do
inconsciente que encontramos, por exemplo, no imperativo psicanalítico de
análise da transferência. Pois analisar a transferência é interpretar a forma
sob a qual a narrativa do paciente é entregue (o que Freud tinha percebido
claramente em um texto como Rememoração, repetição e perlaboração).
Aqui, podemos sentir toda a pertinência da afirmação lacaniana: "o estilo
é o homem para quem se endereça". Ë na dimensão do estilo, da forma que
toma a narrativa, que podemos ter acesso a este Outro, sujeito suposto saber
encarnado no analista, ao qual o sujeito é mais ligado que à si mesmo [32] LACAN, Ecrits, p. 842 [33] GRANGER; Essai d’une philosophie du
style, Paris, Armand Colin, 1968, p. 7. De fato, é de Granger a aproximação entre estilo
e trabalho ou, ainda, estilo e esta «modalidade de integração
do individual em um processo concreto que é trabalho» (idem, p.8). [34] Questão de método acentuada por
Granger através do reconhecimento da necessidade de uma "teoria sintética
da individuação linguística, já que, "é através do que se acrescenta ao
estrito conteúdo informacional que a individuação pode aparecer" (GRANGER,
Pensée formelle et sciences de l’homme, p. 193). Neste sentido, Granger
é mais próximo de Lacan do que gostaria de reconhecer, e já é tempo de dizer
que sua afirmação de que Lacan sustenta uma linguagem do ser à despeito da
linguagem da estrutura é indefensável. Melhor seria dizer que Lacan marca um
ponto de convergência entre estruturalismo e temas ligados ao hegelo-heideigerianismo
francês. [35] Lembremo-nos que "Nós não
podemos deixar de incluir nosso discurso sobre o inconsciente na tese que ele
enuncia, que a presença do inconsciente, para se situar no lugar do Outro, deve
ser procurada em todo discurso, em sua enunciação" (LACAN, Ecrits.
834) [36] LACAN, Séminaire XXIV, sessão do 16/11/76. [37] LACAN, Ecrits, p. 100 [39] LACAN, Autres écrits, op. cit., p.
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