+ última palavra
O filósofo francês Jacques Bouveresse retoma em seu novo livro o ataque ao pensamento francês contemporâneo iniciado pelos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont
Vladimir Safatle - especial para a Folha, em Paris
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Quem acreditava que o caso Sokal havia terminado se enganou. Quase dois anos após a
primeira pedra ser lançada, o filósofo francês Jacques Bouveresse
publica um livro, "Prodiges et Vertiges de l'Analogie" (Prodígios e Vertigens da
Analogia, Raison d'Agir, 158 págs.), pretendendo fazer o balanço do processo
que colocou em causa a honestidade intelectual de alguns dos maiores nomes do pensamento
francês contemporâneo. "Escrevi o livro para tentar elevar o nível do
debate, que em geral se situou num patamar bem baixo", diz ele. Sua posição no cenário filosófico francês é particular. O senhor � bastante ligado à filosofia analítica: corrente que nunca teve muita relevância na França. Como se deu sua transformação nessa exceção francesa?
A explicação é simples: eu não estava satisfeito com o estado
da filosofia francesa
na época da minha formação. Quando comecei a tomar contato com a
filosofia analítica,
duas coisas logo me chamaram a atenção. Primeiro, ela mostrava como era
possível tratar
certas questões filosóficas de uma maneira mais clara e precisa. Seu estilo
de escritura
não era marcado pelo obscurantismo e pelo excesso de retórica dos
filósofos franceses da minha época. Segundo, naquele tempo todos estavam
obcecados pela questão heideggeriana do fim da
filosofia - o que, na verdade, era apenas a compreensão de que a metafísica
ocidental havia esgotado suas possibilidades. Mas esse diagnóstico levou muita
gente a tentar substituir a filosofia pela ciência ou mesmo por uma forma de
literatura. Uma id�ia retomada por gente como Richard Rorty, para quem a literatura, no
sentido amplo, é o gênero do qual a filosofia faz parte. Para mim, tais
análises sempre foram absurdas. Em outros livros o senhor chegou a falar de uma certa dessconfiança do meio intelectual francês em relação à lógica.
Isso mudou muito nas últimas décadas, mas ainda subsiste algo dessa
desconfiança tradicional. Ela � antiga. Nós podemos encontrá-la j� no
início do século, com Henri Poincar�. Os matemáticos não
compreenderam o que significou a revolução engendrada pelo
advento da lógica contemporânea. Do lado dos filósofos, a
incompreensão foi ainda maior. Tudo talvez seria diferente se Jean Cavaill�s
não tivesse morrido tão cedo. Mas, de qualquer
forma, quando eu era estudante havia ainda um problema suplementar: a lógica
aparecia como um produto tipicamente anglo-saxão. O que era
o resultado de uma ignorância completa, já que boa parte das pesquisas em
lógica foram feitas na Viena do entre-guerras. Mas, como ninguém levava
isso em conta, a lógica era vista como uma tentativa da tecnocracia
dominante de colonizar o pensamento. Para Althusser, por exemplo, toda filosofia
que dava importância à lógica e à análise da linguagem
não passava de expressão do capitalismo tecnocrata. Eu me lembro de ter
uma discussão com ele sobre Wittgenstein e ouvir como resposta: "Wittgenstein tenta
substituir os verdadeiros problemas da filosofia por simples problemas da análise
lingüística afim de beneficiar o sistema capitalista". Mas a impressão que temos no Brasil é que houve uma espécie de guinada logicista no pensamento francês após os anos 70. Penso por exemplo em Lacan e em todos aqueles que se dedicaram a pensar a partir de certos resultados da lógica, da matemática e da topologia.É verdade; embora ache que os althussero-lacanianos tratavam a lógica de uma maneira muito especial, digamos à francesa. Eu nunca considerei com seriedade o uso que Lacan e que os lacanianos faziam da lógica. Para mim, eles não sabiam muita coisa do assunto. Mas é verdade que havia um desejo de lógica; tanto que, quando Lacan soube que eu estava encontrando dificuldades em publicar uma tradução da "Sintaxe Lógica da Linguagem", de Carnap, ele mesmo se propôs a editá-la. No seu livro, o senhor volta ao caso Sokal para falar de um abuso constante na utilização de conceitos lógico-matemáticos. Seu exemplo preferido parecer ser a utilização do teorema de Gödel feita pela midialogia de Régis Debray. Por que o senhor privilegiou esse caso?Primeiro, porque praticamente todos os filósofos contemporâneos franceses se sentiram, em um certo momento, na obrigação de falar do teorema de Gödel, normalmente sem ter nenhum conhecimento real do que o próprio demonstrou. Derrida, Lyotard, Kristeva: ninguém passou incólume. No livro, eu escolhi o exemplo de Régis Debray por que ele é o mais típico. Eis alguém que pretende se servir do teorema de Gödel para mostrar como os sistemas sociais e políticos, a despeito do seu caráter laico e racionalizado, fundamentam-se em proposições que não podem ser decididas no interior desses mesmos sistemas. A partir desta similitude totalmente superficial com o resultado do teorema de Gödel, Michel Serres chegou a falar em um "princ�pio de Gödel-Debray", o que não tem nenhum sentido. É um exemplo absolutamente infrutífero de analogia. Ele só serve para dar uma impressão de profundidade e aumentar o desconhecimento em relação às pesquisas de Gödel. É este tipo de analogia que o senhor chama de "literalismo"?Exatamente. Há uma espécie de tendência literária equivalente àquilo que denominamos "cientificismo". Estamos sempre prontos a denunciar o imperialismo da ciência em querer estabelecer sua hegemonia sobre a totalidade da cultura. Mas esquecemos que há também um abuso de poder vindo da área de humanas. Ele consiste na apropriação de um conceito científico relativamente técnico, na construção de um "duplo literário-filosófico" e depois na sugestão de que esse duplo expõe o sentido profundo do resultado científico. Só que um resultado como o teorema de Gödel já é suficientemente filosófico, à condição de ser bem compreendido. Estamos sempre prontos a ver o pensamento literário e filosófico como vítima da ciência, mas nunca o inverso. E qual seria a causa desse procedimento literalista?O pensamento francês contemporâneo descobriu que esse é um forte artifício retórico. Quando alguém chega com a idéia de que é possível fazer uma generalização filosófica ambiciosa do teorema de Gödel, isso persuade facilmente o público. Trata-se de algo da ordem da mistificação. Mas é muito difícil denunciar esse tipo de procedimento. Eu já tentara anteriormente e fui acusado por Lyotard de praticar um "policiamento do pensamento". O que o senhor entende por "tirania da moda" no mundo intelectual francês?
Trata-se de um fenômeno complexo. Primeiro, temos de levar em conta que aqui existe
uma relação privilegiada entre a filosofia e a mídia. Nós
temos uma obsessão por colocar o filósofo no espaço público,
pelo intelectual engajado, que remonta ao caso Dreyfus e passa por Sartre e Foucault. No
mundo saxão, eu acredito que Bertrand Russel foi a última figura desse tipo.
Correlativamente, há uma tendência a desvalorizar sistematicamente todo
filósofo que se contente em ser um bom profissional. Há uma pressão
que faz com que os intelectuais escrevam cada vez mais, tendo em vista a
recepção midiática que, vale lembrar, segue parâmetros
absolutamente distintos da recepção profissional. Deleuze já havia
percebido isso em um artigo em que denunciava como, na sociedade atual, boa parte dos
livros de filosofia eram escritos em razão dos jornais. O melhor exemplo desse caso
é certamente a geração dos "novos fil�sofos" ou seja, gente como Bernard
Henri-Lévy, André Gluksmann e companhia. Estávamos aí diante de
reputações filosóficas fabricadas exclusivamente pela mídia
e para a mídia. Mas foi essa mesma mídia que abriu espaço para a discussão das questões levantadas por Sokal e Bricmont.Você tem razão, por isso não sou totalmente pessimista. Mas, por outro lado, eu não tenho nenhuma dúvida sobre a reputação e o futuro das celebridades colocadas em causa por Sokal e Bricmont. Ao menos na França, elas continuarão a contar com o apoio de um número suficiente de jornais, sempre dispostos a denunciar os "cientificismos" ali onde não há nem sequer tra�o dele e a relativizar os "literalismos", mesmo quando eles são absolutamente evidentes. |