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São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 2000 � Página Inicial

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O filósofo francês Jacques Bouveresse retoma em seu novo livro o ataque ao pensamento francês contemporâneo iniciado pelos físicos Alan Sokal e Jean Bricmont

Um mundo de preconceitos filosóficos

Vladimir Safatle - especial para a Folha, em Paris
Jacques Bouveresse

Bertrand Russel

Quem acreditava que o caso Sokal havia terminado se enganou. Quase dois anos após a primeira pedra ser lançada, o filósofo francês Jacques Bouveresse publica um livro, "Prodiges et Vertiges de l'Analogie" (Prodígios e Vertigens da Analogia, Raison d'Agir, 158 págs.), pretendendo fazer o balanço do processo que colocou em causa a honestidade intelectual de alguns dos maiores nomes do pensamento francês contemporâneo. "Escrevi o livro para tentar elevar o nível do debate, que em geral se situou num patamar bem baixo", diz ele.
Responsável pela cadeira de filosofia do Collège de France e um dos grandes comentadores da obra de Wittgenstein, Bouveresse foi durante muito tempo um dos poucos intelectuais franceses dedicados à filosofia analítica - corrente que privilegia o tratamento de problemas filosóficos por meio da lógica e da análise das estruturas lingüísticas. Isso lhe valeu uma posição de exceção no cenário francês, além de um olhar crítico diante da produção intelectual de seus compatriotas.
Na entrevista a seguir, ele mistura polêmica e ironia para falar da sua formação, da relação entre mídia e filosofla, dos desafios atuais da filosofia francesa e, é claro, do caso Sokal.

Sua posição no cenário filosófico francês é particular. O senhor � bastante ligado à filosofia analítica: corrente que nunca teve muita relevância na França. Como se deu sua transformação nessa exceção francesa?

A explicação é simples: eu não estava satisfeito com o estado da filosofia francesa na época da minha formação. Quando comecei a tomar contato com a filosofia analítica, duas coisas logo me chamaram a atenção. Primeiro, ela mostrava como era possível tratar certas questões filosóficas de uma maneira mais clara e precisa. Seu estilo de escritura não era marcado pelo obscurantismo e pelo excesso de retórica dos filósofos franceses da minha época. Segundo, naquele tempo todos estavam obcecados pela questão heideggeriana do fim da filosofia - o que, na verdade, era apenas a compreensão de que a metafísica ocidental havia esgotado suas possibilidades. Mas esse diagnóstico levou muita gente a tentar substituir a filosofia pela ciência ou mesmo por uma forma de literatura. Uma id�ia retomada por gente como Richard Rorty, para quem a literatura, no sentido amplo, é o gênero do qual a filosofia faz parte. Para mim, tais análises sempre foram absurdas.
A filosofia anal�tica mostrava que era poss�vel conservar as grandes questões da tradição racionalista e tratá-las com um instrumental teórico renovado, vindo, principalmente, da lógica. Foi desse modo que ela se transformou no meu refúgio.

Em outros livros o senhor chegou a falar de uma certa dessconfiança do meio intelectual francês em relação à lógica.

Isso mudou muito nas últimas décadas, mas ainda subsiste algo dessa desconfiança tradicional. Ela � antiga. Nós podemos encontrá-la j� no início do século, com Henri Poincar�. Os matemáticos não compreenderam o que significou a revolução engendrada pelo advento da lógica contemporânea. Do lado dos filósofos, a incompreensão foi ainda maior. Tudo talvez seria diferente se Jean Cavaill�s não tivesse morrido tão cedo. Mas, de qualquer forma, quando eu era estudante havia ainda um problema suplementar: a lógica aparecia como um produto tipicamente anglo-saxão. O que era o resultado de uma ignorância completa, já que boa parte das pesquisas em lógica foram feitas na Viena do entre-guerras. Mas, como ninguém levava isso em conta, a lógica era vista como uma tentativa da tecnocracia dominante de colonizar o pensamento. Para Althusser, por exemplo, toda filosofia que dava importância à lógica e à análise da linguagem não passava de expressão do capitalismo tecnocrata. Eu me lembro de ter uma discussão com ele sobre Wittgenstein e ouvir como resposta: "Wittgenstein tenta substituir os verdadeiros problemas da filosofia por simples problemas da análise lingüística afim de beneficiar o sistema capitalista".
O que não deixa de ser engraçado, pois hoje sabemos que boa parte dos filósofos do positivismo lógico de Viena eram socialistas radicais e mesmo marxistas. Por outro lado, Heidegger, a despeito do seu nazismo, era lido com complacência pelos filósofos da minha geração. Isso � para você ver como o mundo filosófico vive de preconceitos. Não se tem idéia da força do preconceito naquela que deveria ser a disciplina crítica por excelência.

Mas a impressão que temos no Brasil é que houve uma espécie de guinada logicista no pensamento francês após os anos 70. Penso por exemplo em Lacan e em todos aqueles que se dedicaram a pensar a partir de certos resultados da lógica, da matemática e da topologia.

É verdade; embora ache que os althussero-lacanianos tratavam a lógica de uma maneira muito especial, digamos à francesa. Eu nunca considerei com seriedade o uso que Lacan e que os lacanianos faziam da lógica. Para mim, eles não sabiam muita coisa do assunto. Mas é verdade que havia um desejo de lógica; tanto que, quando Lacan soube que eu estava encontrando dificuldades em publicar uma tradução da "Sintaxe Lógica da Linguagem", de Carnap, ele mesmo se propôs a editá-la.

No seu livro, o senhor volta ao caso Sokal para falar de um abuso constante na utilização de conceitos lógico-matemáticos. Seu exemplo preferido parecer ser a utilização do teorema de Gödel feita pela midialogia de Régis Debray. Por que o senhor privilegiou esse caso?

Primeiro, porque praticamente todos os filósofos contemporâneos franceses se sentiram, em um certo momento, na obrigação de falar do teorema de Gödel, normalmente sem ter nenhum conhecimento real do que o próprio demonstrou. Derrida, Lyotard, Kristeva: ninguém passou incólume. No livro, eu escolhi o exemplo de Régis Debray por que ele é o mais típico. Eis alguém que pretende se servir do teorema de Gödel para mostrar como os sistemas sociais e políticos, a despeito do seu caráter laico e racionalizado, fundamentam-se em proposições que não podem ser decididas no interior desses mesmos sistemas. A partir desta similitude totalmente superficial com o resultado do teorema de Gödel, Michel Serres chegou a falar em um "princ�pio de Gödel-Debray", o que não tem nenhum sentido. É um exemplo absolutamente infrutífero de analogia. Ele só serve para dar uma impressão de profundidade e aumentar o desconhecimento em relação às pesquisas de Gödel.

É este tipo de analogia que o senhor chama de "literalismo"?

Exatamente. Há uma espécie de tendência literária equivalente àquilo que denominamos "cientificismo". Estamos sempre prontos a denunciar o imperialismo da ciência em querer estabelecer sua hegemonia sobre a totalidade da cultura. Mas esquecemos que há também um abuso de poder vindo da área de humanas. Ele consiste na apropriação de um conceito científico relativamente técnico, na construção de um "duplo literário-filosófico" e depois na sugestão de que esse duplo expõe o sentido profundo do resultado científico. Só que um resultado como o teorema de Gödel já é suficientemente filosófico, à condição de ser bem compreendido. Estamos sempre prontos a ver o pensamento literário e filosófico como vítima da ciência, mas nunca o inverso.

E qual seria a causa desse procedimento literalista?

O pensamento francês contemporâneo descobriu que esse é um forte artifício retórico. Quando alguém chega com a idéia de que é possível fazer uma generalização filosófica ambiciosa do teorema de Gödel, isso persuade facilmente o público. Trata-se de algo da ordem da mistificação. Mas é muito difícil denunciar esse tipo de procedimento. Eu já tentara anteriormente e fui acusado por Lyotard de praticar um "policiamento do pensamento".

O que o senhor entende por "tirania da moda" no mundo intelectual francês?

Trata-se de um fenômeno complexo. Primeiro, temos de levar em conta que aqui existe uma relação privilegiada entre a filosofia e a mídia. Nós temos uma obsessão por colocar o filósofo no espaço público, pelo intelectual engajado, que remonta ao caso Dreyfus e passa por Sartre e Foucault. No mundo saxão, eu acredito que Bertrand Russel foi a última figura desse tipo. Correlativamente, há uma tendência a desvalorizar sistematicamente todo filósofo que se contente em ser um bom profissional. Há uma pressão que faz com que os intelectuais escrevam cada vez mais, tendo em vista a recepção midiática que, vale lembrar, segue parâmetros absolutamente distintos da recepção profissional. Deleuze já havia percebido isso em um artigo em que denunciava como, na sociedade atual, boa parte dos livros de filosofia eram escritos em razão dos jornais. O melhor exemplo desse caso é certamente a geração dos "novos fil�sofos" ou seja, gente como Bernard Henri-Lévy, André Gluksmann e companhia. Estávamos aí diante de reputações filosóficas fabricadas exclusivamente pela mídia e para a mídia.
Atualmente todos os jornais franceses têm uma página sobre filosofia. Em princ�pio, isso deveria ser bom, mas, infelizmente, as pessoas e os assuntos escolhidos são sempre os mesmos. Uma falta de imaginação terrível. Como diz Bourdieu, a mídia passa o tempo a consagrar pessoas já consagradas e a celebrar celebridades. Isso sem falar que o sistema de avaliação da mídia não costuma ser o mesmo adotado pela filosofia. Imagine, por exemplo, que nossa estrutura midiática já existisse na época de Kant. Você acha que os jornais falariam da "Crítica da Razão Pura"? Certamente que não, muito difícil, muito universitário e muito técnico, eles diriam.

Mas foi essa mesma mídia que abriu espaço para a discussão das questões levantadas por Sokal e Bricmont.

Você tem razão, por isso não sou totalmente pessimista. Mas, por outro lado, eu não tenho nenhuma dúvida sobre a reputação e o futuro das celebridades colocadas em causa por Sokal e Bricmont. Ao menos na França, elas continuarão a contar com o apoio de um número suficiente de jornais, sempre dispostos a denunciar os "cientificismos" ali onde não há nem sequer tra�o dele e a relativizar os "literalismos", mesmo quando eles são absolutamente evidentes.

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