Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 1 de julho de 2001 � Página Inicial

Ilusões Perdidas

Últimas eleições européias selam o fim da social-democracia

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

A Europa e a social-democracia
Arte: Ricardo Lima

Grã-Bretanha, 7 de junho de 2001. Itália, 12 de maio de 2001. Talvez essas duas datas entrem para a história como o marco do fim de um dos mais importantes projetos sócio-políticos do século 20: a social-democracia européia.

Depois da "onda rosa" ter colocado no poder Lionel Jospin (França), Gerhard Schroeder (Alemanha), Tony Blair (Grã-Bretanha) e a esquerda italiana, não foram poucos os que voltaram a acreditar na possibilidade de uma política de esquerda livre das velhas dicotomias entre capital/trabalho, sindicatos/mercado e blablablá. A social-democracia voltava renovada e esbanjando promessas de modernização social. Terceira via, economia social de mercado, meritocracia, eficiência: essa era a nova cartilha dos empresários com coração e dos antigos combatentes de esquerda que apararam a barba e compraram três pares de terno Armani.

Mas tudo isso acabou. A reeleição de Tony Blair e a derrocada da esquerda italiana face a Silvio Berlusconi vieram jogar a pá de cal naqueles que acreditavam ainda haver algum espaço para um projeto social-democrata. Schroeder já havia abandonado o campo depois de bater de frente com seu ministro das finanças e chefe do partido, Oskar Lafontaine. Afinal, o governo alemão não tinha espaço para um "velho keynesiano" que estava disposto a desenvolver uma política econômica que colocava na lanterna os interesses dos acionistas da Bolsa de Frankfurt. O caso de Jospin é mais complicado e talvez será o mais trágico, caso se confirmem as previsões para as eleições presidenciais de 2002 que dão Jacques Chirac, o Maluf Asterix, na frente.

PEDRA NO CAMINHO
"Vote Conservador!" Esta era a chamada do The Economist, o periódico mais lido pelos financistas da City (o distrito financeiro de Londres), na semana da eleição que decidiria o próximo primeiro-ministro britânico. Nada estranho não fosse por um detalhe: o retrato na capa era do trabalhista Tony Blair, devidamente vestido com uma peruca à la Margareth Thatcher. O texto da matéria de capa era um primor. Blair era elogiado como o único candidato capaz de colocar em prática uma verdadeira política liberal aberta ao Euro. Seu ministro das Finanças, Gordon Brown, aparecia como queridinho do mundo dos negócios. Enquanto isso, William Hague, o candidato do partido conservador, levava uma campanha temperada por tiradas populistas, antieuropéias e xenófobas. Resultado: pela primeira vez na história da Grã-Bretanha um candidato trabalhista recebeu o apoio maciço da imprensa de direita e das Spice Girls (que há alguns anos haviam elegido a velha Thatcher como a primeira Spice Girl).

Como era de se esperar, a eleição de Blair foi um passeio e seu partido teria tudo para comemorar. Entretanto, esta foi a eleição com o maior número de abstenções desde 1918. Quarenta por cento dos eleitores preferiram ficar em casa tomando uma Guinness em vez de sair para votar. Estes 40% eram compostos majoritariamente pelos antigos eleitores da esquerda desnorteados com a farsa que foi a política social trabalhista. Enquanto o governo não cansava de repetir que o crescimento econômico e o mercado eram os melhores instrumentos de redistribuição de renda, os hospitais apodreciam, os trens descarrilavam por falta de investimento em segurança, o sistema público escolar continuava irremediavelmente sucateado e as mães solteiras viam suas alocações sociais reduzidas. Depois de quatro anos de governo trabalhista, os britânicos ainda estão esperando alguém para pagar toda esta dívida social. Um descontentamento que ficou evidente na eleição para o prefeito de Londres, no ano passado. Contra todas as expectativas, o vencedor foi o esquerdista Ken Livingstone, recém-expulso do Partido Trabalhista por ter batido de frente com os novos liberais de Blair.

Mas Tony não é ingênuo e o marketing eleitoral faz milagres. Baseando seu discurso na promessa de, enfim, tratar seriamente a área social, ele levou a eleição, e deixou a Grã-Bretanha com uma pergunta na garganta: de onde virá o dinheiro para tantos investimentos, já que o primeiro-ministro prometeu não mudar nem uma linha do seu modelo econômico baseado em impostos baixos, ausência do estado e previdência social anoréxica? Daqui a quatro anos, os britânicos devem descobrir que a pergunta não tem resposta e que a Terceira Via não era outra coisa que uma forma de cinismo político em que o discurso de esquerda serve para acobertar práticas econômicas da mais antiga direita. Os espectadores da interminável novela da social-democracia brasileira que o digam.

APRESENTADOR DE TELEVISÃO
"A Itália é um país engraçado", dizia o mesmo The Economist na semana da eleição do primeiro-ministro italiano, "pela primeira vez eles têm um governo que fez um verdadeiro ajuste fiscal, saneou as finanças, colocou a economia pronta para integrar a zona Euro e a população prefere Silvio Berlusconi".

Realmente, a Itália é um país engraçado. Eis aí um lugar onde o Partido Comunista passou décadas alijado do poder (mesmo conservando a média de 30% de votos) e, na primeira oportunidade de governar, eles não fazem nada além do óbvio. Nenhum programa de modernização social, nenhuma discussão que visasse modificações estruturais na distribuição de renda, apenas a tentativa de mostrar que os neocomunistas e seus parceiros da coligação Oliveira estavam aptos a seguir o receituário básico do Comunidade Européia.

O que impressionou nestes anos de governo social-democrata italiano foi a completa falta de criatividade da esquerda. Ao contrário da esquerda francesa, que voltou ao poder em 1997 embalada por bandeiras audaciosas como a redução da jornada de trabalho (sem redução dos salários), a criação de empregos-jovens e a reforma no sistema educacional com ampliação maciça do número de professores, a esquerda italiana mostrou ser mera porta-voz da "política da responsabilidade". Resultado de uma perspectiva política que só vê um modelo econômico, uma prática de poder.

A lição a tirar é uma só: quando não há nenhuma diferença entre as práticas socioeconômicas da esquerda e da direita, só conta o carisma pessoal. E como a Itália não tinha o seu Tony Blair, ela foi de Silvio Berlusconi. Por sinal, os dois têm tudo para se entenderem muito bem.

INCÓGNITA FRANCESA
Neste quadro terminal, só a social-democracia francesa parece destoar um pouco. Os primeiros anos do governo Jospin tiveram seu toque de ousadia. Recém-saída de uma greve geral (em 1995) que entrou para a história como a última grande greve do século, a França queria um governo à esquerda. E ela teve. Contrariando todo o rosário de dogmas liberais (não conservarás previdência social e estado fortes, não terás impostos altos, não praticarás protecionismo, desprezarás a sociedade civil e os sindicatos), os socialistas franceses foram responsáveis pelo último sopro do ideário social-democrata. Isso sem deixar de lado a implementação de um plano de modernização social que incluía extensão do direito de aborto e legalização do casamento entre homossexuais. Deus os abençoou com um crescimento de, em média, 3,5% ao ano durante o último quadriênio (o mais alto dos grandes países europeus) e, no ano passado, uma avaliação da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicou o sistema público de saúde francês como o melhor do mundo.

Apesar de tudo isso, é possível que eles percam a eleição presidencial para Jacques Chirac, um presidente que por pouco não parou este ano no banco dos réus por malversação financeira. Talvez a resposta deva ser procurada, pasmem, no crescimento da extrema-esquerda, cuja candidata a presidente tem quase 7% de intenção de votos e pode fazer o barco socialista naufragar.

O fato é que os últimos dois anos franceses foram marcados pelas hesitações próprias à social-democracia. As grandes bandeiras já tinham sido implementadas e a sociedade esperava um governo mais reativo e ousado. Um governo capaz de criar uma lei dura para coibir demissões em empresas lucrativas, se engajar na implementação da taxa Tobin, bancar o desafio de aprovar uma lei que dê direito de voto aos imigrantes e que parasse de perder seu tempo colocando a polícia atrás de raves clandestinas. Um governo que se preocupasse mais com as pequenas empresas e menos com os grandes conglomerados. Por fim, um governo com uma nova noção de poder (e não foi à toa que a experiência brasileira do orçamento participativo virou tema na campanha para a eleição do prefeito de Paris). Mas isso é pedir que os socialistas deixem de ser social-democratas e que inventem um outro tipo de esquerda. O que talvez seja pedir demais.

Vladimir Safatle é professor-visitante
no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris.
Página Inicial
Hosted by www.Geocities.ws

1