Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 22 de abril de 2001 � Página Inicial

Escrever o Impossível

Acaba de ser lançada na França uma coletânea de textos inéditos de Jacques Lacan, Outros Escritos

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Jacques Lacan

Ilegível. Este foi o adjetivo preferido quando os Escritos de Lacan chegaram às livrarias em 1966. E o mesmo "ilegível" possivelmente continuará a ser usado para se referir aos Outros Escritos, cujo lançamento marca a comemoração do centenário de nascimento do psicanalista parisiense. Composto de 44 conferências, entrevistas, resumos de seminários, notas e textos dispersos em publicações praticamente impossíveis de serem encontradas, estes Outros Escritos trazem, principalmente, a produção intelectual dos vinte últimos anos de Lacan. Época de alguns textos maiores para a compreensão do lacanismo, como: Lituratera, Radiofonia, L'Étourdit e Televisão, todos presentes no livro. Textos onde o estilo lacaniano, feito de elipses, cortes e mudanças abruptas de planos, atingiu seu ponto máximo. Aqui, impera a proliferação de palavras-valises e a dissolução tortuosa de uma escritura que tenta se transformar em oralidade. Dissolução capaz de produzir frases como: "Lom cahun corps et nan-na kun" (jogo homofônico com "L'homme qu'a un corps et n'a qu'un", ou seja, "O homem que tem um corpo e apenas um").

Mas "ilegível" não era exatamente como o psicanalista parisiense gostaria de ser lembrado. "Bastam dez anos para que o que escrevo seja claro a todos", ele dizia. O mínimo que podemos afirmar é que Lacan não era muito bom em previsões, já que a frase foi enunciada em 1973 e desde então pouca coisa mudou. Mesmo que Jacques Lacan seja um autor cada vez mais presente para além dos círculos psicanalíticos, uma boa parte de seus escritos continua a ser um desafio à leitura. Hoje, sua fama vem muito mais do impacto de algumas de suas frases do que exatamente da freqüentação de seus textos, Poucos são aqueles que nunca ouviram falar que a mulher não existe, que não há relação sexual, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem etc., etc., etc.

É verdade que, para facilitar a introdução neste universo de vias tortuosas, a coletânea encontrou espaço para Os Complexos Familiares e A Psiquiatria Inglesa e a Guerra: produções fundamentais dos primeiros anos da experiência intelectual lacaniana e de leitura acessível a qualquer iniciado na literatura psicanalítica. São textos nos quais Lacan, entre outras coisas, questiona as conseqüências do declínio da autoridade paterna e tenta desenvolver, a partir das experiências da psiquiatria inglesa com o exército na Segunda Guerra, uma teoria do grupo sem líder.

Teoria que vai lhe permitir posteriormente desenvolver uma tipologia dos vínculos sociais e pensar a psicanálise como clínica capaz de criar um vínculo social novo. Pois, depois do fim da análise, o sujeito deveria procurar um vínculo social livre da fascinação pela presença carismática do líder, do pai ou pela regularidade das sociedades burocráticas (o que em "lacanês" significa: longe do discurso do mestre e do discurso do universitário). Ele deveria aprender a viver dentro de um mundo sem lugar para as identificações imaginárias aos mestres e às instituições. Resquício do projeto iluminista de emancipação que continua a ressoar insistentemente na psicanálise.

Uma boa parte destes Outros Escritos expõe a tentativa lacaniana de passar ao ato e fundar, através da criação de uma Escola, este novo vínculo anunciado pelo discurso psicanalítico. Aqui, encontramos documentos que vão desde a ata de fundação à carta de dissolução de sua Escola, passando por diretivas onde o psicanalista explicava como deveria ser a formação de analistas, o que eles deviam aprender e como uma instituição psicanalítica deveria ser estruturada. Para compreender o jogo tensional que tais escritos escondiam, um pouco de história aqui vai bem.

Em 1963, Lacan tinha sido expulso da IPA (International Psychoanalytic Association, ou, em português, Associação Psicanalítica Internacional). Um golpe duro que o impedia de ter alunos, formar analistas, e praticar a clínica de forma "legítima". Neste contexto, ele funda, com Françoise Dolto, a Escola Freudiana de Psicanálise. Elevado à condição de chefe de Escola, Lacan vê uma massa cada vez maior de alunos afluírem a seu seminário. E não deixa de ser interessante perceber que, na posição de chefe de Escola, Lacan não fornece os dois elementos básicos que normalmente esperamos de um chefe de clínica: exemplos na forma de casos clínicos e diretrizes que guiem a prática de análise e permitam operar a passagem da metapsicologia à prática. Não há nada nestes Outros Escritos que se assemelhe a uma descrição de caso. Na realidade, nunca é demais lembrarmos que simplesmente não há casos clínicos lacanianos.

Eis aí uma posição bem diferente daquela adotada por Freud, cujos textos estão sempre marcados por comentários de casos e por considerações precisas de ordem prática que vão acabar dando nos famosos standards, ou seja, regras gerais do tipo: o analisando não deve ler textos de psicanálise durante o período que estiver em tratamento. Ele deve adiar toda decisão importante etc. Entre Freud e Lacan há, no fundo, duas concepções distintas de como um chefe de Escola deve operar.

TRANSMITIR UM ESTILO
Mas por que Lacan não dá aquilo que esperamos dele? Esta � uma questão que nos leva longe. Na verdade, ela nos leva a questionar o que pode ser transmitido na experiência analítica. Isto, claro, acrescido da cláusula: o que pode ser transmitido através da escritura. Esta era uma questão que fixou boa parte dos esforços do agora chefe da Escola Lacan. Para alguém que, até então, não havia cessado de repetir que a comunicação era um mal-entendido, que não havia intersubjetividade nem metalinguagem e que o saber estava irremediavelmente colonizado por fantasmas, a transmissão integral de uma experiência de emancipação como a psicanálise só podia mesmo ser um problema. Como evitar então que a psicanálise fosse confundida com uma espécie de ascese em direção a uma verdade da ordem do inefável? Ou seja, o que Lacan esperava realmente com estes escritos que agora chegam ao grande público?

Digamos que Lacan esperava poder transmitir um estilo. Pois, a seu ver, tudo o que um ensinamento psicanalítico podia transmitir era exatamente um estilo. O resto dava para aprender em casa, na universidade ou em um estágio. Proposição que nos reenvia a acusações de "ileg�vel" desferidas sem apelação pelo Supremo Tribunal da Clareza Ensaística contra a obra de Lacan. Pois se tudo o que Lacan queria transmitir era uma estilística, então a verdadeira questão inscrita na porta de entrada do universo lacaniano �: "Por que a experiência intelectual de Lacan precisa se apresentar através desta forma estilística?".

Vamos colocar em prática o princípio da caridade e admitir que, longe de ser o resultado de um mau hábito literário e iniciático, o estilo de Lacan tenta ser a formalização daquilo que é identificável à descoberta psicanalítica. Como é de praxe quando o assunto � Lacan, a forma segue as imposições do conteúdo. A superfície da escrita é desenhada pelos objetos que o texto tenta apreender. Através do seu estilo, o psicanalista queria impor um tempo para a compreensão, uma estratégia de aproximação que não podia ser excluída do próprio assunto tratado. Neste sentido, compreender a necessidade do estilo passa necessariamente pela identificação dos assuntos centrais destes Outros Escritos. E aqui vale uma comparação com os primeiros Escritos.

Como todo mundo sabe, os Escritos entraram na história do pensamento contemporâneo por cristalizarem uma espécie de guinada lingüística na psicanálise. Para Lacan operar tal guinada, bastou-lhe juntar os pontos. Como a clínica analítica é totalmente desmedicalizada e opera apenas através da reorientação da palavra do sujeito, nada mais lógico do que pensar a cura como um processo de simbolização e verbalização dos sintomas e desejos inconscientes. Os sintomas seriam núcleos traumáticos que, por alguma razão, não tinham encontrado lugar na estrutura simbólica da história do sujeito. Metáforas que esperavam a interpretação analítica para serem dissolvidas. Um pouco como um certo filme de ficção-científica, Os 12 Macacos, onde o protagonista é um sujeito assombrado por imagens indecifráveis de uma mulher e um homem desconhecidos em um aeroporto. Elas são seus sintomas. Ele não sabe de onde elas vêm; fato que o impele a voltar ao passado até poder inscrevê-las em um rede de determinação simbólica. Inscrição que mostrava como tais imagens que lhe apareciam como absolutamente estranhas eram, no fundo, imagens dele mesmo disfar�ado. Ele se reconhecia assim naquilo que Freud chamava de Unheimlich: algo que é, ao mesmo tempo, o que temos de mais estranho e de mais familiar.

Este poder de integração dava uma importância central à linguagem e à sua ordem própria: a ordem simbólica. Mas tudo seria simples se a psicanálise fosse esta espécie de arqueologia do inconsciente que visasse decifrar os sintomas e desejos, reescrevendo-os nas malhas da linguagem pública. O problema é que logo Lacan percebeu que a estratégia não funcionava totalmente. Por mais que tentássemos simbolizar e verbalizar, havia sintomas que nunca se dissolviam, havia desejos que nunca conseguiam dizer seu nome. Aos poucos, Lacan descobria um núcleo irredutível a toda interpretação psicanalítica. Núcleo onde se alojará aquilo que sempre resiste à palavra, ou seja, o corpo, o gozo, a relação sexual e, é claro, a mulher.

É neste momento de báscula que entram em cena os textos que compõem os Outros Escritos. Eles marcam a procura de Lacan em resolver este paradoxo e repensar toda a psicanálise. No fundo, sua estratégia traz a elegância das fórmulas simples. Se a psicanálise freudiana havia descoberto que, em certos casos, dizer é fazer, Lacan mostrava que há coisas que só podemos fazer depois de mudarmos nossa maneira de dizê-las. Se a palavra deixava escapar a radicalidade do gozo, da relação sexual, do corpo e da mulher, era porque ela precisava dar lugar a uma outra palavra, a um significante novo. E era para esta necessidade que o estilo de Lacan apontava. Uma necessidade de decompor as palavras até que elas se dissolvessem em uma teia de sobredeterminações. Necessidade de torcer as fibras da sintaxe da língua para construir labirintos tortuosos onde o sentido parece escapar por todos os lados. Necessidade de transformar textos em superfícies porosas onde o sujeito se infiltra a todo momento.

Não é por outra razão que os Outros Escritos começam e terminam com o mesmo personagem: James Joyce. O mesmo Joyce que nos ensinou a distorcer a linguagem para que ela possa dar lugar a um gozo onde se misturam destruição e renovação. Algo bem ao gosto de Lacan.

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