Vladimir Safatle Correio Braziliense
Brasília, domingo, 18 de março de 2001 � Página Inicial

Fetiches da Arte

Vladimir Safatle
Especial para o Correio

Fetiches da Arte

Arte e pornografia. Nos últimos meses, este foi um assunto que conseguiu monopolizar a cena cultural francesa. Uma discussão eterna, dirão alguns, que marca a hist�ria da arte desde a época em que os gregos ornamentavam vasos com cenas de sexo. Mas é possível que algo novo esteja ocorrendo nesta conjunção, de onde se segue uma sensibilidade tão grande para o assunto.

É verdade que, neste caso, o debate arte/pornografia entrou pela velha porta da censura. Tudo começou com um filme. Baise-moi, que trazia cenas de sexo explícito em meio a assassinatos e violência em alta velocidade e acabou classificado como XXX (bastante proibido para menores). Filme que saiu um pouco antes do anúncio da última produção com Jean-Pierre Léaud, feito quase exclusivamente com atrizes de filme pornográfico. Até aí, nada de novo. Forçar os limites do cinema por meio da pornografia não é realmente algo que acabou de aparecer, vide a famosa felação de Maruschka Detmers em O Diabo no Corpo.

Mas, por coincidência, tudo ocorreu enquanto as galerias de arte e museus abriam suas portas para as últimas exposições de dois fotógrafos cujos materiais são largamente extraídos de um universo próximo à pornografia: Cindy Sherman e Nobuyoshi Araki. Para coroar, o Centro Cultural Georges Pompidou colocou em cartaz uma grande coletiva, Para Além do Espetáculo, centrada nas relações entre arte e mídia. Como era de se esperar, a interface mais presente era exatamente arte e pornografia. Lá estavam desde as famosas montagens de Jeff Koons transando com a Cicciolina até os gozos espetaculares dos bonecos de manga em acrílico de Takashi Murakami.

A pergunta é: estes seriam elementos de uma tendência contemporânea em explorar esteticamente a pornografia? É bem possível que sim. Falta saber que força move este movimento e para onde ele parece nos levar.

O erotismo sempre foi um dos limites privilegiados da arte. Sem d�vida. Mas há algo de novo quando nos deslocamos do erotismo à pornografia. Dos desenhos eróticos de Picasso ou dos quadros de Egon Schieler às milhares de fotografias de gueixas nuas amarradas de Araki, há uma mudan�a sensível de registro. Passamos de um regime do sexo revelado, que obedece ao ritmo de velamento/desvelamento, a um regime de alta visibilidade, onde a força estética vem da exposição maciça do sexo em escala industrial. Um obedece ao ritmo da revelação, enquanto outro obedece ao ritmo do automatismo incessante de repetição. Por outro lado, os desenhos eróticos de Picasso insistem lateralmente no conjunto da obra; as gueixas amarradas e as mulheres nuas de Araki ocupam todos os poros de sua produção fotográfica.

Nesta operação de deslocamento fica evidente um dos dispositivos centrais da arte contemporânea. Pois o assunto principal da arte de hoje é a presença irredutível do "fantasma" no universo social. Psicanaliticamente falando: É como se o sujeito se descobrisse preso à engenharia imaginária de seus fantasmas e procurasse desenvolver modos de estetização deste aprisionamento na esperança de revertê-lo. Não é por outra razão que as interfaces privilegiadas da estética atual são: a pornografia, a música pop e a publicidade. Três domínios hiperfetichizados da cultura. Fetichização do corpo e do gozo (pornografia), dos objetos da vida cotidiana (publicidade), da atitude e da juventude (música pop). Elas são possivelmente as três esferas onde os fantasmas sociais são mais visíveis.

IRREDUTIBILIDADE DO FANTASMA
Neste sentido, há uma diferença fundamental entre a estética atual e, por exemplo, o projeto modernista. A estratégia de produção do modernismo baseava-se exatamente na possibilidade de ultrapassar os fantasmas sociais através de uma espécie de reforma geral das estruturas estéticas. Aqui, podemos ficar com o exemplo do sistema musical dodecafônico do compositor Arnold Schoenberg. Tratava-se claramente, neste caso, de expulsar tudo o que era da ordem do imaginário na linguagem musical. Tudo o que fosse conteúdo melódico e articulação harmônica já codificada pelo imaginário social, material sonoro já marcado pela memória e associado a alguma fantasia deveria sair para dar lugar a um processo de produção musical que privilegiava a pura articulação formal. Não era à toa que um ouvinte atento de Schoenberg como Theodor Adorno (teórico da Escola de Frankfurt) denunciou toda fixação repetitiva em conteúdos melódicos privilegiados chamando-a de "fetichismo na música". No projeto dodecafônico, alojava-se a utopia de uma música sem imaginário e, desta feita, música situada para além da colonização dos fantasmas. Música que se auto-engendra a partir de sua própria estrutura.

Utopias desta natureza não fazem parte da estética contemporânea. Nosso tempo não conhece nenhuma idéia de arte como crítica do universo social por meio de processos de redução do imaginário e do fetichismo. De fato, é toda uma certa noção de "crítica ao fetichismo" que parece ter saído de circulação. Não porque não exista mais espaço crítico, mas simplesmente porque certas estratégias de crítica demonstraram-se ineficazes. A análise da lógica que sustenta o olhar fascinado da arte pela pornografia pode nos fornecer um bom exemplo aqui.

PORNOGRAFIA E GOZO IMPOSSÍVEL
É bem possível que a atração da pornografia venha de uma certa estetização do Gozo. Contra a noção psicanalítica do Gozo como impossível, como o ponto irrepresentável onde todo o potencial descritivo do nosso universo simbólico fracassa, a pornografia mostra um Gozo totalmente possível, estetizado e perfeitamente visualizado na Imagem.

Vale sempre a pena lembrar que, quando Jacques Lacan afirmava ser o Gozo impossível, ele queria mostrar como uma determinada modalidade de Gozo tipicamente ligado à posição masculina (e que pode ser encontrado tanto em homens quanto mulheres) era uma impostura. Pois este Gozo fálico, o único que nossa subjetividade conhece, só pode acontecer ao preço de reduzir o corpo do outro a uma tela de projeção dos nossos fantasmas. O corpo irredutível e estranho do outro vira um corpo fetichizado, habitado por imagens ideais. Neste sentido, sexo é sempre algo virtual porque é, principalmente, uma relação entre o sujeito e seus fantasmas encarnados no corpo do outro. Já ao Gozo ligado à posição feminina, o único que não seria uma impostura, Lacan tendia a aproximá-lo de uma posição mística e impronunciável, tal como o fizera anteriormente Georges Bataille.

O que a pornografia faz é, no fundo, inverter os pólos do problema e realizar imaginariamente o Gozo fálico que parece impossível. Se o corpo do outro é sempre tela de projeção dos nossos fantasmas, a pornografia afirma isto sem complexos e reconstrói o corpo de suas pornostars, sempre com um toque de excesso. Corpo do mesmo material da boneca do artista japonês Takashi Murakami e que servia de cartaz para a última exposição do Centro Georges Pompidou: uma grande boneca de manga com seios desproporcionais. Como se estivéssemos diante de um corpo reduzido a ser suporte de fetiches.

Os corpos das pornostars apenas demonstram que, na pornografia, o fantasma pode se afirmar como fantasma, e não como algo que tenta se passar por realidade. Nunca escaparemos do universo da pornografia dizendo: "Você não vê que tudo isto é uma ilusão? Que este Gozo é impossível?" A resposta sempre será: "Mas quem disse o contrário? É claro que tudo isto é apenas um fantasma", e é por isto que ele é tão forte.

A dificuldade em atravessar os fantasmas não vem da clássica confusão entre fantasma e realidade, tal como vemos nestes filmes de ficção científica, onde o herói não consegue mais estabelecer diferenças entre o virtual e o real, entre o que é concreto e o que se desmancha no ar. A dificuldade vem do fato de que sabemos muito bem que o Gozo estilizado pela pornografia é apenas um fantasma, ele não é real, mas mesmo assim ele continua a guiar nosso desejo. Continuamos presos, mesmo depois da crítica.

O que a arte contemporânea procura fazer? Nos seus melhores momentos, ela procura produzir uma repetição insistente e excessiva deste universo fantasmático e, através da repetição, anular a fascinação por tal universo. Um pouco como a famosa história freudiana do bebê que repetia infindavelmente um jogo que consistia em fazer aparecer e desaparecer um carretel preso em uma corda. Freud via neste ato a operação de simbolização da ausência da mãe. O carretel representava a mãe e assim o bebê podia dominar suas ausências. Mas a repetição incessante do mesmo movimento anulava o poder pacificador da simbolização. Pois a repetição serial só reforçava a insistência de uma ausência.

No fundo, é nisto que a arte contemporânea crê. Repetir os fantasmas e os fetiches até mostrar a angústia que eles tentam esconder. Como dizia Gilles Deleuze: "Se é a repetição que nos deixa doente, é ela também que nos cura." O programa é este mas nem sempre ele funciona. Normalmente, a repetição do fetiche continua como fascinação pelo fetiche. De qualquer forma, ninguém nunca falou que o jogo não era arriscado.

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