Folha de S. Paulo Jornal de Resenhas, no10 01/01/1996
Reproduzido com permiss�o

Segredos do Cosmos [1]

Valter Alnis Bezerra

Buracos Negros, Universos-Beb�s e Outros Ensaios
Stephen Hawking

Tradu��o de Maria Luiza X. de A. Borges
Rocco, 144 p�gs.

     Os buracos negros n�o s�o completamente negros. Esta frase, que circulou a partir de 1975 entre quem se interessava por astrof�sica e cosmologia, marcou um momento espetacular da rela��o do f�sico brit�nico Stephen Hawking com os mais enigm�ticos objetos celestes. O interesse de Hawking pelos buracos negros data, na verdade, de bem antes de 1975, e persiste at� hoje. Este �, precisamente, um dos eixos em torno do qual se desenvolve o seu mais recente livro de divulga��o cient�fica.

     Desde 1965, Hawking trabalhava sobre o tema das ``singularidades'': regi�es do espa�o-tempo onde a densidade de mat�ria e energia assume valores incontrolavelmente altos e onde as pr�prias leis da f�sica parecem entrar em colapso. Um dos tipos de singularidade � o buraco negro. Como se sabe, o buraco negro engole toda a mat�ria que estiver nas proximidades. O nome foi cunhado em 1968 pelo f�sico J. A. Wheeler e adotado entusiasticamente pelos cientistas e pelo p�blico. A id�ia de buraco negro n�o era nova: a pr�-hist�ria desse conceito pode ser rastreada pelo menos at� P.-S. de Laplace e J. Michell, no final do s�culo 18, ainda dentro do paradigma da f�sica newtoniana. A hist�ria do conceito moderno de buraco negro come�a com a inven��o, por Einstein, da relatividade geral em 1916. Essa teoria prev� a exist�ncia de singularidades sempre que um corpo celeste assume um raio menor que certo valor. S. Chandrasekhar e o brasileiro M�rio Schenberg mostraram que isso ir� acontecer nos est�gios finais da exist�ncia de uma estrela que possuir massa acima de um determinado limite.

     O buraco negro representa um beco sem sa�da, um ``fim'' local para o nosso espa�o-tempo. O outro tipo importante de singularidade consiste, por assim dizer, numa imagem invertida do buraco negro, constituindo um ``come�o'' para esse espa�o-tempo. Que uma singularidade assim possa ter existido na origem do nosso universo � algo que j� se aceitava em 1965, principalmente depois da descoberta, nesse mesmo ano, de uma ``radia��o f�ssil'' de microondas, que preenche todo o universo, e que poderia ser explicada pela explos�o de uma singularidade inicial, um ``Big Bang''.

     Hawking e R. Penrose mostraram, entre 1965 e 1970 que, sob certas condi��es razo�veis, as equa��es da relatividade geral implicam que o nosso espa�o-tempo deve possuir uma singularidade inicial. O tratado A Estrutura do Espa�o-Tempo em Grande Escala, de 1973, redigido em colabora��o com G. F. R. Ellis, e de um rigor matem�tico excessivo at� mesmo para os f�sicos te�ricos, representa o coroamento da primeira fase da obra de Hawking, fase que poder�amos denominar ``cl�ssica''. Por que cl�ssica? Porque, at� ent�o, o tratamento das singularidades (buracos negros e Big Bang) n�o fazia uso da mec�nica qu�ntica (que explica os fen�menos em escala subat�mica). Mas j� nos anos 60 os f�sicos pressentiam que um dos grandes desafios da f�sica contempor�nea seria unificar a gravita��o (descrita pela relatividade geral, que explica os fen�menos em escala astron�mica) com a mec�nica qu�ntica. Numa singularidade, a curvatura do espa�o-tempo se torna muito pronunciada: o raio de curvatura fica t�o pequeno que passa a estar numa escala onde os processos qu�nticos se tornam determinantes.

     Nos anos 70, Hawking come�ou a tentar aplicar a termodin�mica e a mec�nica qu�ntica ao estudo dos buracos negros. Este estudo acabou levando � famosa descoberta, anunciada em 1975, de que os buracos negros n�o s�o inteiramente negros. Hawking mostrou que, por um processo puramente qu�ntico, os buracos negros s�o capazes de emitir part�culas, como se fossem corpos quentes e ativos, o que contrariava todas as expectativas dos f�sicos. Tal foi o primeiro exemplo de intera��o bem-sucedida entre gravita��o e mec�nica qu�ntica. Como um bom professor de f�sica, Hawking se d� ao luxo de apresentar, nos cap�tulos 8, 10 e 11 de Buracos Negros..., diferentes maneiras de entender o fen�meno.

     A grande miss�o de uma teoria qu�ntica da gravita��o seria, por�m, explicar o que acontece ``dentro'' de uma singularidade e transpor a barreira imposta pela relatividade geral cl�ssica. Assim poder�amos entender, por exemplo, o que ocorreu no Big Bang. A constru��o de uma teoria qu�ntica da gravita��o � uma tarefa muito dif�cil. Em geral, imagina-se que uma teoria desse tipo possa vir no bojo de uma teoria unificada das for�as (ou intera��es) que existem na natureza. A id�ia de quantizar
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a gravita��o, portanto, geralmente caminha junto com a id�ia de unific�-la com as outras for�as: eletromagn�tica, nuclear fraca e nuclear forte. At� agora, uma unifica��o satisfat�ria foi conseguida apenas entre o eletromagnetismo e a intera��o nuclear fraca, mas v�rias tentativas t�m sido feitas para incluir tamb�m a intera��o nuclear forte, por meio das chamadas teorias gr�-unificadas. Outras teorias, como a supergravita��o e as supercordas, talvez possam abarcar todas as quatro for�as. Os f�sicos perseguem a unifica��o sempre com a mesma estrat�gia: procurar simetrias matem�ticas cada vez mais gerais, que permitam construir um formalismo �nico para diferentes intera��es. A quebra dessas simetrias explicaria porque ordinariamente observamos a diversidade de for�as e n�o a sua unidade. Quando as energias envolvidas s�o baixas (como, por exemplo, em nosso meio n�o-subat�mico, que inclui v�rus, seres humanos e gal�xias) as simetrias s�o quebradas e as for�as passam a se manifestar separadamente. A saga da unifica��o das for�as � contada por Hawking no cap�tulo 7.

     O estudo das implica��es cosmol�gicas da gravita��o qu�ntica tem ocupado Hawking nos �ltimos anos e recebe grande destaque no livro. Em 1983, em um artigo intitulado ``A Fun��o de Onda do Universo'', Hawking e J. B. Hartle desenvolveram uma abordagem que aplica � gravita��o o m�todo de ``soma de hist�rias'' do f�sico norte-americano R. P. Feynman e o conceito de ``tempo imagin�rio''. Segundo Feynman, cada part�cula possui, efetivamente, todas as ``hist�rias'' poss�veis, ou trajet�rias no espa�o-tempo, por mais diversas que elas possam ser. A cada trajet�ria est� associada uma certa probabilidade. O tempo imagin�rio, apesar do nome, � um conceito matem�tico bem definido: para visualiz�-lo, podemos pensar numa dire��o do tempo que forma �ngulos retos com o tempo real.

     Segundo Hawking e Hartle, o estado qu�ntico do universo seria dado pela totaliza��o de uma certa classe de hist�rias. A hip�tese crucial de Hawking e Hartle pode ser parafraseada da seguinte maneira: ``a condi��o de fronteira do universo � ele n�o ter fronteira''. Isso significa que, ainda que no tempo real possamos encontrar singularidades, que s�o fronteiras ou limites ao espa�o-tempo, no tempo imagin�rio essas singularidades n�o existem. As ``hist�rias'' a considerar no c�lculo s�o apenas aquelas que n�o apresentam singularidades. As leis da f�sica poderiam n�o valer para uma singularidade no tempo real, mas valeriam no ponto que, no tempo imagin�rio, corresponde �quela singularidade. O ``in�cio'' do universo no tempo imagin�rio seria como o p�lo norte da Terra: um ponto que serve como origem para as coordenadas, mas que n�o � diferente de qualquer outro. Assim, ainda que o universo tenha experimentado um Big Bang, gra�as ao tempo imagin�rio as leis da f�sica seriam, em princ�pio, capazes de descrever de maneira completa a evolu��o do universo.

     Este �, basicamente, o percurso que Hawking busca descrever nos cap�tulos 7 a 13 do livro. Algumas superposi��es entre os ensaios s�o inevit�veis, visto terem sido escritos independentemente uns dos outros, ao longo de um per�odo de v�rios anos. Cabe notar que os tr�s primeiros cap�tulos s�o autobiogr�ficos, o que vai ao encontro da grande curiosidade que o p�blico demonstra a respeito da figura de Hawking. O cap�tulo 4 corresponde a uma breve palestra sobre as atitudes do p�blico em rela��o � ci�ncia, e o seguinte � um relato dos eventos que cercaram o seu primeiro livro de divulga��o, Uma Breve Hist�ria do Tempo, de 1988. Os cap�tulos 6 e 12 tratam de temas filos�ficos: o estatuto cognitivo das teorias f�sicas -- as teorias descrevem a realidade ou s�o apenas modelos, instrumentos convenientes de predi��o? -- e a quest�o do determinismo. O �ltimo cap�tulo � o registro de uma entrevista concedida � BBC.

     Buracos Negros, Universos-Beb�s e outros ensaios � um livro elementar, claro e honesto sobre uma parte importante da f�sica moderna. Ainda que Hawking n�o possua a verve de grandes mestres da divulga��o cient�fica como Gamov, Feynman e Gardner, o texto � fluente e agrad�vel, com a vantagem de ter sido escrito em primeira pessoa por algu�m que participou criativamente de muitos dos epis�dios narrados. Finalmente, a grande virtude � que, ao longo do texto de Hawking, a f�sica brilha. E isso n�o � pouco: �, com efeito, um presente para o leitor. Pois a f�sica te�rica, al�m de ser uma profiss�o, um razo�vel sorvedouro de verbas governamentais, uma atividade de solu��o de problemas, uma tentativa de compreender o mundo, � tamb�m algo mais. A f�sica te�rica � tamb�m poesia.

Valter Alnis Bezerra � licenciado em f�sica e mestre e doutorando em filosofia pela USP.

NOTA:

[1] Este � o t�tulo utilizado pelo jornal; o t�tulo original era "� luz do buraco negro". Voltar para o topo

 

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