Voltar
No Galpão

    A gesta gaúcha fermentou nos galpões, ao redor de um fogo de chão sorvendo um quente chimarrão a peonada espantava o frio mais rigoroso.
    Cenário
    a) Nos subúrbios de uma vila, numa mangueira o gado é recolhido e os peães dirigem-se para um galpão.
    Lá fora o patrão D. Inverno
    Mais D. Frio e seu capataz Minuano
    Mais a peonada deles feita de pingos de garôa
    Iam repontando
    A manada retacona dos peães
    Do pasto alto das noturnas calaveiragens pelos ranchos
    Da vizinhança grávida de gurias cubiços palpáveis
    Para a mangueira das 4 paredes do galpão

    b) No galpão, sem D. Fulano.
    E a roda do fogo D. Chimarrão os pastorejava
    Formados
    Seu Tibúrcio era o contador de histórias de plantão
    Sia dona Conversa foi vindo vagarosa e lerda
    Como a baia aguateira lunanca
    E pela boca desdentada do Aurélio chegou-se
    Luiz Marenco musicou De Manhã Cedo letra de Rogério Ávila retratando a mesma atividade campeira expressa no vocábulo Formados:
    Forma cavalo,
    São os gritos na mangueira,
    Abre a porteira,
    Tranco firme pra o galpão
    Normalmente, o "forma cavalo" acontece antes do sol nascer. Na mangueira, um peão ordena e os cavalos obdecem o "forma cavalo" ficando enfileirados um ao lado do outro. Facilitando o encilhamento do animal.
    Tyrteu, no poema Caçada retomou a baia aguateira lunanca:
    Cavalgando a baia aguateira lunanca
    Banhadeio as minhas botas

    Entrevistei um antigo peão que trabalhou há cerca de 40 anos, na Estância Santa Tereza propriedade rural de Tyrteu. Foi o primeiro emprego de Aparício, mas pediu demissão depois de assistir à três assombrações. Santas vestidas de branco, voavam com uma criança no colo. Aparício resistiu, mas não suportou as aparições. Ainda hoje, entre os assisenses do interior, especialmente entre os de mais idade, encontrar relatos de lobisomens, mulas-sem-cabeça ou saci é comum.
    Na história recente dos fantasmas assombradores
    Do posto do rodeio das bragadas
    Houve risadas mui reticênciaes dos circunstantes
    Largas longas e cortantes como facão marca touro
    Fantasmas, seres mitológicos e lendários a partir desse momento são constantes em Saco de Viagem. O melhor exemplo está no poema seguinte, Mau hábito, excepcional versão da lenda amazônica da Iara.

   c) No galpão, com D. Fulano.
    E D. Silêncio chegou montado no pschit
    Do capataz bandaoriental D. Fulano
    Seu Tibúrcio mandou D. Silêncio à fava
    E foi se defendendo na maciota
    Retrucão a fechar um criolo filado

    A marca de um animal sevre para identificar seu dono. No poema Marcação, parece confirmar a identidade do "dono" de D. Fulano, o próprio Tyrteu.
    D. Fulano participa de outros dois poemas, um dedicado "a Raul Bopp" e outro "Ao Boche". Por sinal os únicos poemas que são dedicados. Pelo jeito Tyrteu gostava tanto de Bopp quanto do seu predileto cachorro (boche).

    Mas não foi eu que o sobreintendente
    Ia prender na cadeia
    Como desencaminhador da fia mais moça
    Da sia dona Anaia
    E o pai do aleijadinho
    E logo em seguida
    Deu vontade de fazer pipi no capataz
    Bandaoriental D. Fulano
    Peleador de amores impúberes abafados

    Luis Augusto Fischer analisou o poema No Galpão:
    Talvez o melhor exemplo da síntese alcançada por Tyrteu entre o fluxo modernista e o tema regional esteja no grande, belíssimo poema  “No Galpão”:...
    A citação precisa ser longa para ser íntegra, para reproduzir a magistralidade da cena: trata-se de um causo (ou de um metacauso) que conta um episódio ocorrido num galpão (mas contando numa linguagem que nos mantém alertas, em estado de tensão em relação ao assunto), cena que contém todos os ingredientes para a simplicidade camponesa mas que, paradoxalmente, pela linguagem e pelo andamento, promove verdadeira implosão, surda e eficiente, da aparente calma. Em dicção literária – pontuação abolida, nexos ausentes, suprimidas as marcas de passagem de uma voz a outra, alguma ousadia flexional e morfológica, a atenção à fala popular -, o poema se inicia à maneira tradicional do causo: era o tempo frio, uma pequena chuva caía, e os peões voltavam de um passeio noturno pelas redondezas – pela “vizinhança grávida de gurias cúbiços palpáveis”, com o adjetivo “grávida” antecipando o desfecho tragicômico. No Galpão, volta o poema, Tibúrcio fala lentamente (o símile gauchesco é perfeito, com a égua aguateira), e o velho Aurélio relata casos de assombração havidos no rodeio das bragadas – e “bragadas” podem ser animais, fêmeas, e pêlo manchado, mas podem ser também as meninas “cúbiços” vestidas de bragas, calções, peças íntimas do vestuário feminino de antanho -; daí por que houve risadas dos que ali estavam, sabedores de que os peões, que voltavam tocados pelo frio e pela chuva, retornavam, mas de uma incursão erótica.
    Chega-se ao galpão o capataz, ordenando silêncio autoritariamente; é sintomaticamente um uruguaio, figura que evoca um dos mais caros fantasmas rio-grandenses, o castelhano invasor e inimigo. Seu Tibúrcio não se dá por achado e retruca, enquanto ocupa as mãos e talvez os olhos na tarefa de fechar seu cigarro, que ele castelhano ( por sinal sem nome “D. Fulano” ) é que devia calar-se por ter culpa evidente como desencaminhador de meninas já conhecido até das autoridades. A última parte nos faz rir internamente, satisfeitos com a reação do simples peão que não se dobrou à ameaça do castelhano - que sai para fazer pipi, contrafação ridícula de “peleador”.
      De Tyrteu, de sua magnífica reelaboração dos caminhos tradicionais da poesia gaúcha, poderia talvez ter provindo herança mais radicalmente modernista, ou pelo menos renovadora; mas, como dito antes não se consolidou entre nós tal impulso. E o resultado geral, considerada a poesia gaúcha segundo seus autores de prestígio à época, foi menos a assimilação do veio modernista e mais a aceitação agradecida das liberdades formais e temáticas conquistadas ao terreno parnasiano-simbolista. Da mesma forma que nosso simbolismo, também é o nosso tempo modernista foi brando em ousadias, e brando em realizações.
      Um Passado pela Frente, Ed. UFRGS, 1992.


Voltar

Hosted by www.Geocities.ws

1