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Passageiros da História

       De Santa Maria a Sorocaba (SP), os trilhos conduzem a histórias fascinantes, apuradas por esta reportagem que até a página 8 percorre os 1.403 quilômetros de um Brasil órfão do transporte ferroviário de pessoas.

        As obras da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande começaram em Santa Maria, em 1890, dando ao Brasil a primeira linha a interligar uma região, diferente das vias que buscavam o litoral


        Esta reportagem narra a saga de homens que ajudaram a construir a história da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, a mais importante ferrovia do sul do Brasil no século 20.

        Projetada no final do Império, teve seus 1.403 quilômetros de trilhos assentados sobre territórios de quatro Estados – Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo.

        A trajetória da ferrovia é escrita pela vida de gente como Sebastião, 72 anos, superior de linha. Ou de Vilson, 61 anos, marceneiro. Com a dedicação de Osvaldo, 64 anos, telegrafista. E o esforço de Virgilio, 86 anos, auxiliar de manutenção.

        Eles vivem em estados diferentes, mas carregam no peito o mesmo sentimento, a saudade. Na carteira profissional, outro ponto em comum: todos dedicaram décadas de suas vidas à ferrovia.

        Os quatro ferroviários, hoje aposentados, são personagens de uma história de pioneirismo que indicou o caminho do desenvolvimento para a Região Sul.

        Trens que aproximaram gente, encurtaram distâncias e desbravaram sertões viraram peças de museu. A Ferrovia São Paulo-Rio Grande está depredada. Transformou-se em sucata numa época em que tempo é dinheiro e que o mundo tem pressa.

        As estações ferroviárias foram sementes de muitas cidades. Ao redor delas surgiam a bodega, a igrejinha, as casas. Era centro de informações, reduto de notícias. A freqüência diária à estação era quase regra. Adultos e crianças se apressavam para aguardar a chegada dos trens. O comércio ambulante ficava ansioso e os carregadores de malas, impacientes.

        Por suas rampas chegavam os jornais, os aparelhos de rádio, os primeiros televisores, a correspondência. Por causa disso, muitos foram os ataques de rebeldes em época de revoluções. Na mira, o telegrafista. Interromper a comunicação, saquear estações, apoderar-se do dinheiro era estratégico.

        Ao assumir a Malha Sul da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), a empresa América Latina Logística (ALL) manteve a operação apenas nos trechos viáveis economicamente. Por isso, explica Jorge Campos, diretor de Patrimônio da ALL em Curitiba, nem todos os bens imóveis que pertenciam à Rede ficaram em poder da concessionária. Muitas das antigas estações da Ferrovia São Paulo-Rio Grande ainda pertencem à União. Daquelas em poder da ALL, a maior parte está sendo repassada em comodato para as prefeituras. É uma forma de, com o passado, revigorar comunidades nostálgicas.
 
 

“Dói o coração ver isso”
      Pedalando a enferrujada e inseparável bicicleta, Vilson João Caetano, 61 anos, passeia diariamente pelos trilhos.

        Quando cansa, pára, acende o palheiro, dá uma tragada funda e suspira:

        – Me dói o coração ver isso aqui desse jeito.

        Ele aponta para a estrada de ferro e os galpões desativados da RFFSA, onde trabalhou 31 anos como marceneiro. Mora perto da estação ferroviária de Santa Maria, onde, em 1890, iniciaram-se as obras da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande.

        Construir janelas e bancos utilizados nos vagões era o trabalho de Vilson.

        – Cada trem que ficava pronto e começava a rodar era como um filho que se ia embora – compara.

         O marceneiro deslumbrou-se com a época áurea da estrada de ferro no Sul.

        – Isso aqui era uma maravilha – define, enfatizando que Santa Maria chegou a ser o maior centro ferroviário do Rio Grande do Sul, com cerca de 1,7 mil funcionários.

        – A estação vivia cheia de gente, viajando para tudo quanto era lado, gente fina, muito rica, que trazia dinheiro para a cidade.

        O antigo pátio da RFFSA, na localidade conhecida como Km 3, transformou-se em um imenso cemitério de máquinas e vagões. Um amontoado de ferro-velho, ao lado de prédios e imensos galpões semidestruídos.

        Num desses galpões está escrito “estacionamento para visitantes”, em letras pintadas de vermelho e desbotadas pelo tempo. Marcas de uma época de muito movimento e glamour da estrada de ferro.

        A área abrange mais de 16 mil metros quadrados. A America Latina Logística (ALL), detentora da concessão de transporte ferroviário de cargas na Região Sul, ocupa apenas parte do terreno, onde funcionam o escritório local da companhia e uma pequena oficina de manutenção. Em breve, tudo deverá ser transferido para Ponta Grossa, no Paraná.

        Do lado do pátio hoje da ALL, ainda existe o Clube Aliado, fundado pelos antigos ferroviários de Santa Maria.

        – A RFFSA era tão grande que conseguia ser praticamente auto-suficiente – relembra o marceneiro.

        Tinha gerador de energia própria e, segundo o ex-funcionário, não dependia do município para praticamente nada. Esbanjando saudosismo, compara:

        – A Rede era uma cidade, toda iluminada e cheia de gente.
 
 

JÚLIO DE CASTILHOS
Morar em vagão não deve ser confortável. O que dizer, então, quando 28 homens compartilham cinco vagões? Isso ocorre com os trabalhadores da manutenção de ferrovia.
Na estação de Júlio de Castilhos, em vez de apitos de trem ou do rangido das rodas sobre os trilhos, a trilha é a risada de homens, misturada a músicas gauchescas vindas de um radinho de pilhas. 
Um vagão serve de cozinha, e os outros quatro foram transformados em quartos. De todos os cantos do país, os homens ficam ali o mês inteiro. Feito o trabalho, partem para nova residência temporária. 
CRUZ ALTA
Gustavo Fagundes Echevarria (foto à direita), 43 anos, foi maquinista de novembro de 1981 a abril de 1999, até a extinção da RFFSA. O ex-ferroviário mora em uma antiga casa de alvenaria quase à beira dos trilhos. 
O barulho dos trens de carga é intenso, dia e noite, como se a composição cruzasse a sala da casa. Mas ele não reclama:
– Olhar os trens através da janela é uma forma de relembrar aqueles anos tão bons. 
VILA BELGA
A memória do marco inicial da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande tem chance de chegar às próximas gerações. No ano passado, representantes da prefeitura e do curso de Arquitetura da UFSM iniciaram o Projeto da Mancha Ferroviária.
É um conjunto de ações voltadas à revitalização da estação férrea e da vila dos ferroviários e à criação do Centro Ferroviário de Cultura de Santa Maria. O primeiro núcleo habitacional gaúcho foi a Vila Belga. A vila, com 84 casas, foi inaugurada em 1903 para alojar ferroviários.
Ponto turístico obrigatório da cidade, foi projetada pelo engenheiro belga Gustave Vauthier. Até hoje são mantidas as casas originais, de arquitetura eclética com elementos art nouveau nas fachadas – reflexos da Belle Époque.
Quase todas as residências apresentam-se bem conservadas e pintadas, o que difere a Vila Belga da maioria das vilas ferroviárias até São Paulo. 
AS TRANSIÇÕES
A Ferrovia São Paulo-Rio Grande permaneceu nas mãos de empresários até 1957, quando foi criada a Rede Ferroviária Federal (RFFSA). Em 1992, o governo decidiu incluir a RFFSA no Programa Nacional de Desestatização. O processo foi concluído em dezembro de 1998. 
A América Latina Logística (ALL) ficou com a Malha Sul, com 6.586 quilômetros de extensão, na qual estão inseridos trechos da São Paulo-Rio Grande. No final dos anos 60, esta linha férrea vinha sendo desativada devido à construção de uma nova ferrovia unindo Apucarana (PR) a Lages (SC), passando por Ponta Grossa, Rio Negro, Lages e Vacaria. 
Os trens de carga da ALL ainda passam pelos trilhos centenários da São Paulo-Rio Grande nos municípios gaúchos de Santa Maria, Júlio de Castilhos, Cruz Alta, Carazinho e Passo Fundo. Todo o resto do trecho foi desativado. Em Santa Catarina, os trens de carga passam longe do traçado original da ferrovia. No Paraná, também são raros os trechos utilizados no antigo traçado. 
NO MUNDO
• Era necessário um meio de extrair o carvão das minas e levá-lo às fundições. 
• Os primeiros trilhos foram construídos na Alemanha, em 1530. Eram de madeira e utilizavam tração humana e animal. As rodas passaram a ser fabricadas em ferro fundido e, depois, em ferro forjado.
• Coube ao engenheiro britânico Richar Trevithick construir a primeira locomotiva. 
• Em fevereiro de 1804, a grande invenção percorria 15 quilômetros de uma estrada no País de Gales, rebocando cinco vagões carregados de minério de ferro.
• Em 1830, uma linha uniu duas cidades da Inglaterra, Manchester e Liverpool, para cargas e passageiros.
• No Brasil, após a Independência, os empresários começaram a pensar nas ferrovias como alternativa para o escoar café.
• Em 1854, foi inaugurada a Estrada de Ferro Grão-Pará. 
Fonte: Trem de Ferro, de Nilson Thomé 
A PIONEIRA
• A maior ferrovia vertical em solo brasileiro unia Santa Maria (RS) e Itararé (SP), ligando o interior de quatro Estados.
• Até o final do século 19, as ferrovias 
eram construídas de forma longitudinal até o litoral, sem uma ligação entre si. 
• Dias antes da destituição, dom Pedro II concede ao engenheiro João Teixeira Soares privilégios para construir a ferrovia. 
• Em parceria com europeus, Soares funda a Compagnie Chemins de Fer Sud Ouest Brésilen.
• A empresa começa a construção da ferrovia a partir de Santa Maria, mas logo transfere boa parte da concessão para a Brazil Railway Company (EUA).
• Em dezembro de 1910, circula a primeira composição regular ao longo dos 1.403 quilômetros da linha.
• A concessão à Brazil Railway garante à empresa, também, uma faixa de terras de 15 quilômetros de cada lado dos trilhos. 

Travessia ajudou a povoar a divisa

        A maior ponte rodoferroviária da centenária estrada de ferro São Paulo-Rio Grande está localizada entre Marcelino Ramos (RS) e Piratuba (SC), sobre o Rio Pelotas.

        Construída em 1913, estende-se por 457,8 metros. Seus pilares foram erguidos com pedras entalhadas.

        A construção da ferrovia e da ponte interestadual incrementou o povoamento da região no início do século 20. O lugar recebeu o nome de Estação do Alto Uruguai. Com a emancipação, em 1944, foi rebatizada de Marcelino Ramos, em homenagem ao engenheiro responsável pelo projeto da malha ferroviária.

        O empresário Wilmar Rubenich é filho de ferroviário e, desde criança, apaixonado pela história da viação férrea. Reúne farto material sobre a origem da cidade e a importância da estrada de ferro para o desenvolvimento do Vale do Rio do Peixe. É, também, presidente do Movimento de Preservação do Patrimônio Ferroviário de Marcelino Ramos. Ele defende que quem tem que cuidar do patrimônio é a própria comunidade.

        – É a nossa história que está ali – avalia.

         A história do município catarinense de Piratuba, do outro lado da ponte, começa em 1910, quando a Brasil Railway construiu a Estrada de Ferro e instalou, no baixo Vale do Rio do Peixe, um acampamento para seus operários.

        A antiga estação férrea fica de costas para a cidade, à beira do Rio do Peixe. Dois varais com muitas roupas penduradas mostram que o velho prédio está habitado. Em cada um dos cantos da estação mora um soldado da Polícia Militar.

        Do lado direito reside o soldado Luiz Machado de Quadros, 44 anos. Nas horas vagas, ele é sapateiro, e montou lá mesmo, na estação, sua sapataria. Quadros mora com a mulher e dois filhos, e não paga aluguel porque fez um acordo com a empresa para cuidar do imóvel. O outro PM paga aluguel direto para a América Latina Logística (ALL), de Curitiba.

        Quadros informa que em breve as duas famílias terão de se mudar dali porque existe um projeto de reativar aquele trecho da ferrovia para turismo. Piratuba encontra-se incluída no Roteiro Vale do Contestado, que deve ser transformado em mais um pólo turístico do Estado.
 
 

CAÇADOR (SC) 
O Museu Contestado conta a história de uma revolta que a construção da ferrovia ajudou a deflagrar. Ao fim do trecho catarinense, foram demitidos 8 mil operários. Desses, muitos não conseguiram voltar para os locais de origem e se juntaram a colonos expulsos de terras às margens dos trilhos. Explodiu, assim, a Guerra do Contestado. 
ITARARÉ (SP) 
Jairo Souta de Proença, 56 anos, já se sentiu um “doutor”. Foi nos tempos em que era telegrafista da RFFSA. Para ele, talvez só o presidente da República fosse mais importante. Os trens só partiam depois da permissão do telegrafista. Para segurança de cargas e de passageiros.
SOROCABA (SP)
A Estação de Trens de Sorocaba está longe do agito do século passado. Não existem mais funcionários, passageiros, trabalhadores. Num dos anexos funciona a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social. O resto está trancafiado. 
O governo paulista tem buscado medidas de preservação. Os prédios de estações e casas que serviram a diretores e gerentes das ferrovias estão sendo restaurados para acolher o acervo.
Em Sorocaba, o Museu da Ferrovia recebe centenas de visitantes por semana.

 

ÂNGELA BASTOS E VIVIANE BEVILACQUA

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