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        Leiam o que a gringaiada brasilianista*  escreveu sobre o vate assisense.
        Acredito que um povo, no caso, o assisense, seja o mais indicado para escrever sobre temas que lhes são particulares.
        * Antônio Holfeldt, Donaldo Schüler, Itálico Marcon, Luis Augusto Fischer. Agradeço a todos, especialmente o Marcon por ter "ressuscitado" o doutor Tyrteu.
       
       Antônio Holfeldt
       Obra de Tyrteu Vianna revisita o modernismo. O ano editorial de 1993, no que tange ao Rio Grande do Sul, sem dúvida ficará marcado por um lançamento editorial que, sem alcançar maior repercussão no momento, tende a transformar-se em acontecimento fundamental em futuro muito próximo. Refiro-me à publicação, em segunda edição (a primeira é de 1928!) do livro de poemas denominado Saco de Viagem, de Tyrteu da Rocha Vianna. Trata-se de uma edição fac-similada, preparada pelo também poeta Itálico Marcon e que o Instituto Estadual do Livro - Pontifícia Universidade Católica produziram sem maior algazarra, mas que, como disse, muda a interpretação da história do Modernismo no Rio Grande do Sul e, conseqüentemente, mexe com essa história em termos do próprio País.
       A publicação é tão mais importante quando nem mesmo Lygia Chiappini Leite, que escreveu sobre o Modernismo gaúcho, deu maior destaque à obra. Sua divulgação contudo, possibilita-nos e, mais, obriga-nos a uma urgente revisão. Com quanto retirado no interior do estado, avesso à publicidade e autor deste único livro que segue de perto a criação de Oswald de Andrade, a obra de Tyrteu é tão revolucionária para época (formal e conteudisticamente) que, por certo não podendo ser combatida, foi propositadamente olvidada. Fundamental, pois, seu resgate sua divulgação e sua reavaliação.
        Jornal do Comércio, 25 de janeiro de 1994.

       
       Donaldo Schüler
       Tirteu Rocha Viana
       Em meio ao ritual repetitivo de imagens gastas e frases feitas, lêem-se com grata surpresa os versos inventivos de Tirteu Rocha Viana.
       Ao contrário do costume rio-grandense de inovar sem alarde, Tirteu ataca, nas primeiras páginas, em prosa e verso os críticos passadistas que atribuem as ousadias dos novos à imaturidade.
        Saco de Viagem divide-se em duas partes. * Na primeira, "Vontade de versos futuristas", predominam cenas de vida campeira; a segunda, "Churrascos de Viagens "fixa o perfil de várias cidades. Obedientes a nosso plano, trataremos a primeira parte aqui.
       Vejamos os recursos do poeta num de seus poemas.

     O espadagal subintendente barbicachúdo
    Do distrito abigeatorial
    Embrabeceu repentino
    Nas carreiras californiais
    Atravancando a cancha com o lazão
    Cusquilhando chilenas na virilha do pingo
    Gritou cola atada
    Rebencaços falatorios
    O sujeito ou individua que
    Atravessá os trio
    Vorta pelo mesmo conseguinte
    E a murta é cincão
    Fechou o tempo e o Dr. Fraga
    Custurou-lhe os intestinos
    Com uma agulha de compor sacos

        O poeta abole os sinais de pontuação. As pausas são marcadas pelos versos. Em lugar de limites lógicos, vemos os poemáticos. Até mesmo, o discurso direto insere-se no texto narrativo sem outras indicações além das internas: o tom e a prosódia.
       A criação de palavras novas:"espadagal", "abigeatorial", calcados no modelo de adjetivos respeitáveis como imperial, empresarial, industrial, comercial, obedece a intenções críticas. A espada, presa ao superintendente, define-o da mesma forma que o roubo do gado ("abigeatorial") caracteriza o distrito por ele administrado.
       A caracterização rápida da autoridade prepara a ação. A proibição desnecessária e não apoiada em lei expõe o abuso de poder. Conivente com desmandos que lesam as pessoas de bem, dá ordens sem nenhum interesse social com o único objetivo de alardear mando. Não usa a valentia para defender a coletividade de agressões, mas a cultiva para seu próprio brilho.
       Abre-se a distância crítica entre o título e o poema. O superintendente força as portas da história - que registra feitos relevantes com ações sem conteúdo. O poeta traça a caricatura do homem que sonha em pôr-se à altura dos heróis de sua gente a qualquer preço.
       As peculiaridades da fala do superintendente não aparecem como mostruário pitoresco, mas estabelecem a contradição entre o que efetivamente é e os sonhos de glória.
       O poeta mostra o poder da concisão, própria de todo o livro, nos versos finais. De um episódio que vai do conflito armado a ferimentos graves e cirurgia de urgência, o poeta toma o princípio e o fim e os justapõem.
       Cabe ao leitor reconstruir a cena. Temos aqui a técnica de montagem, que imortalizou os filmes de Eisenstein. A força sugestiva do recurso assinala lugar privelegiado na criação poética do Rio Grande do Sul. O poeta revela o mesmo rigor nos demais poemas.
       Na segunda parte de Saco de Viagem, Tirteu Rocha Viana caracteriza várias cidades do Rio Grande do Sul e de outros Estados: Pelotas, Rio Grande, Florianopólis, Santos, Rio de Janeiro, Livramento, Alegrete, Santiago. A enumeração obedece a seqüência do livro.
       O mérito do poeta reside no fato de abandonar os lugares comuns, as anotações epidérmicas ou turísticas para apanhar o espírito do lugar com suas ambições e lutas. Às vezes um único substantivo funde um aspecto da região embebido de ferina sugestão crítica. Veja-se a propriedade inventiva de "pecuaríssima" no final do poema Alegrete:

   Londres do futuro
   Pecuaríssima
   Cabeça
   de
   Comarca

       A expressão oficial "cabeça de comarca" recebe a carga adicional da importância da atividade pastoril. A concentração no mesmo sintagma de áreas semânticas bem diversas desencadeia densa conotação crítica.
       Apanha assim as providências das autoridades de Florianopólis - já nos anos 20 procurada por turistas do Prata - para tornar a cidade digna dos visitantes:

           E durante a estadia da castelhanada
           O governo mandou esconder
           Por decreto
           O bondinho
           Puxado a burrinho
           Pequeninho
           Onde os habitantes cantadores
           Brincam de fazer viagens
           À roda do país dos sonhos bananosos

    A sugestiva metáfora dos "sonhos bananosos" amplia ao país a questionável, preocupação de melhorar a imagem aos olhos estrangeiros, fixando um traço da personalidade nacional voltada à aparência em vez de enfrentar a realidade.
   Para acompanhar a finura da arte de Tirteu, transcrevemos por inteiro um de seus poemas.
        Pelotas
       A princesa coroada
       Da família real das cidades do sul
       Farelo de arroz
       Fardos de charque e sebo nas barricas das
       Charqueadas do São Gonçalo piscoso
       Hotel aliança
       Aliança Libertadora
       Herança jacente do conselheiro telegramando
       Conselhos deputadais libertadores
       Mudas da Quinta Bom Retiro
       Habitantes podres de chic
       Brigadores da briga spartoatheniana
       Com a vizinha das Rio Grande
       A Faculdade Livre de Direito
       Facílima facilidade formadora de bacharéis
       Em turmas manadas gafanhotais
       Telefones automáticos da Light and Power
       Milagrosos bondes sem condutor
       Teatrais Guaranis imensuráveis vastos como o mundo
       Baares pingando
       Água Gaúcha
       Perfumes
       Efebos
       
        Os primeiros versos põem em choque vaidades fidalgas com atividade nada principesca, sustentáculo de fidalguias. Vida cultural, política, econômica misturam-se para compor unidade compacta e contrastante.
        Às vezes semelhança ou identidade de palavras permite transitar de uma área a outra. Assim, o Hotel Aliança abre passagem à Aliança Libertadora, partido político. Na linguagem coloquial, usa-se a expressão "podre de rico" para designar pessoa de muitas posses.
        Parodiando a designação, o poeta diz "podre de chic" para caracterizar os que, com requintes de indumentária, aparentem abastança. "Efebos", palavra de origem grega que fecha o poema, alude como briga "espartoatenina" ao conflito proverbial entre as cidades helênicas pela hegemonia, envolvendo as cidades helênicas pela hegemonia, envolvendo agora as cidades vizinhas de Pelotas e Rio Grande.
        O poeta cria o caleidoscópio urbano com observações rápidas e densas, fixando um painel social ágil, penetrante, permanente.
        Poesia Modernista no RGS, Ed. Movimento, 1982.
       
        Itálico Marcon
        Tyrteu Rocha Vianna foi o nosso modernista mais  ortodoxo, mais vanguardista e demolidor, mais revolucionário descompromissado com a substância nativista-simbolista que embasava, de forma precípua, o movimento sulino, na “fase heróica”( até 1930).
        Tyrteu Rocha Vianna é o poeta mais original do Modernismo Sul Rio-Grandense, com a sua poética da radicalidade, a mais visceralmente ligada ao credo estético da Semana da Arte Moderna de São Paulo, de 1922. Sem qualquer demérito ou subordinação descaracterizadora, o “Oswald de Andrade” do Rio Grande do Sul.
        Ele presentifica o elo final de uma corrente:
        Qorpo-Santo-Marinetti-Trilussa-Oswald de Andrade -Tyrteu Rocha Vianna.
        A sua atualidade é inconteste e indiscutível a sua valia. O seu nome e o seu livro já não podem mais ficar de fora das histórias do Modernismo Brasileiro. Por um dever de reparação e de valorização histórico literária. De honestidade intelectual.
        Trilussa, juntamente com Barão de Münchhausem e Kipling, é presença marcante na poesia de Tyrteu Rocha Vianna.
        Saco de Viagem, Tyrteu Rocha Vianna, Ed. Edipuc.
       
        Luis Augusto Fischer

        ...poeta desta geração o som será oswaldiano. Trata-se de Tyrteu Rocha Vianna, o mais inventivo de todos, que lança seu único livro, Saco de Viagem, em 1928. Seu tema é gaúcho com exceção de três poemas, estando a novidade na dicção. Vejamos “Recordações”:

O general Bento Gonçalves da Silva
Fez a separatória república de 35
Com bandeira
Verde amarela encarnada
Escudo complicado
Ajutório de Garibaldi dei due mondi
E o rubro barrete frígio
Da mulher deusa Razão parisiense
Quando eu gurizava fundaços passarinheiros
Em um São Chico bastante menor
Que o
O atualíssimo de empréstimo americano
Asseio público e praça de esportes
Hipotéticas hipóteses relatoriaes
Ditadurazinha desgovernamental de Trois...tky
Felizmente quadrienal
Homenageavam filarmônica churrasco
Cervejada subscrição República de Piratinim
Subindo barbante
Foguetório vivarada
Discurso obrigatório major Laláo
Meio metro bandeiral
Histórico reverenciando respeito
Trapo nem verde nem amarelo nem mais nada
Meu Pai respondente
Sentado me dizia
É o regime econômico vaca magra
Das tetudas economias invisíveis
Do dinheiro municipal calotíssimo

       Não é preciso nenhum esforço auditivo ou mental para justapor tal modo poético à narração – também de reminiscências da meninice, também ácida contra o poder – das Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade editado em 1924. Impressiona, considerada a maneira típica dos gaúchos  de tratar o episódio farroupilha a relativa desfaçatez de traçar um percurso que vem dos altos ideais republicanos e chega na medíocre mesquinharia da política de São Francisco de Assis, terra natal do poeta – e tudo mediado pelo tom ingênuo do guri que se exercitava em artes menos nobres do que a guerra, com sua funda passarinheira.
        Talvez o melhor exemplo da síntese alcançada por Tyrteu entre o fluxo modernista e o tema regional esteja no grande, belíssimo poema  “No Galpão”:

No Galpão
(a Raul Bopp)

Lá fora o patrão D. Inverno
Mais D. Frio e seu capataz Minuano
Mais a peonada deles feita de pingos de garoa
Iam repontando
A manada retacona dos peães
Do pasto alto das noturnas calaveiragens pelos ranchos
Da vizinhança grávida de gurias cubiços palpáveis
Para a mangueira das 4 paredes do galpão
E à roda do fogo D. Chimarrão os pastorejava
Formados
Seu Tibúrcio era o contador de histórias de plantão
Sia dona Conversa foi vindo vagarosa e lerda
Como a baia aguateira lunanca
E pela boca desdentada do Aurélio chegou-se
Na história recente dos fantasmas assombradores
Do posto do rodeio das bragadas
Houve risadas mui reticênciais dos circunstantes
Largas longas e cortantes como facão marca touro
E D. Silencio chegou montado no pschit
Do capataz bandaoriental D.Fulano
Seu Tibúrcio mandou D. Silêncio à fava
E foi se defendendo na maciota
Retrucão a fechar um criolo filado
Mas não foi eu que o sobreintendente
Ia prender na cadeia
Como desencaminhador da fia mais moça
Da siá dona Anaia
E o pai do aleijadinho
E logo em seguida
Deu vontade de fazer pipi no capataz
Bandaoriental D. Fulano
Peleador de amores impuberes abafados

       A citação precisa ser longa para ser íntegra, para reproduzir a magistralidade da cena: trata-se de um causo (ou de um metacauso) que conta um episódio ocorrido num galpão (mas contando numa linguagem que nos mantém alertas, em estado de tensão em relação ao assunto), cena que contém todos os ingredientes para a simplicidade camponesa mas que, paradoxalmente, pela linguagem e pelo andamento, promove verdadeira implosão, surda e eficiente, da aparente calma. Em dicção literária – pontuação abolida, nexos ausentes, suprimidas as marcas de passagem de uma voz a outra, alguma ousadia flexional e morfológica, a atenção à fala popular -, o poema se inicia à maneira tradicional do causo: era o tempo frio, uma pequena chuva caía, e os peões voltavam de um passeio noturno pelas redondezas – pela “vizinhança grávida de gurias cúbiços palpáveis”, com o adjetivo “grávida” antecipando o desfecho tragicômico. No Galpão, volta o poema, Tibúrcio fala lentamente (o símile gauchesco é perfeito, com a égua aguateira), e o velho Aurélio relata casos de assombração havidos no rodeio das bragadas – e “bragadas” podem ser animais, fêmeas, e pêlo manchado, mas podem ser também as meninas “cúbiços” vestidas de bragas, calções, peças íntimas do vestuário feminino de antanho -; daí por que houve risadas dos que ali estavam, sabedores de que os peões, que voltavam tocados pelo frio e pela chuva, retornavam, mas de uma incursão erótica.
        Chega-se ao galpão o capataz, ordenando silêncio autoritariamente; é sintomaticamente um uruguaio, figura que evoca um dos mais caros fantasmas rio-grandenses, o castelhano invasor e inimigo. Seu Tibúrcio não se dá por achado e retruca, enquanto ocupa as mãos e talvez os olhos na tarefa de fechar seu cigarro, que ele castelhano ( por sinal sem nome “D. Fulano” ) é que devia calar-se por ter culpa evidente como desencaminhador de meninas já conhecido até das autoridades. A última parte nos faz rir internamente, satisfeitos com a reação do simples peão que não se dobrou à ameaça do castelhano - que sai para fazer pipi, contrafacção ridícula de “peleador”.
      De Tyrteu, de sua magnífica reelaboração dos caminhos tradicionais da poesia gaúcha, poderia talvez ter provindo herança mais radicalmente modernista, ou pelo menos renovadora; mas, como dito antes não se consolidou entre nós tal impulso. E o resultado geral, considerada a poesia gaúcha segundo seus autores de prestígio à época, foi menos a assimilação do veio modernista e mais a aceitação agradecida das liberdades formais e temáticas conquistadas ao terreno parnasiano-simbolista. Da mesma forma que nosso simbolismo, também é o nosso tempo modernista foi brando em ousadias, e brando em realizações.
        Um Passado pela Frente, Ed. UFRGS, 1992.

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