Leiam o que a gringaiada brasilianista* escreveu sobre o vate
assisense.
O poeta abole os sinais de pontuação. As pausas são
marcadas pelos versos. Em lugar de limites lógicos, vemos os poemáticos.
Até mesmo, o discurso direto insere-se no texto narrativo sem outras
indicações além das internas: o tom e a prosódia.
A expressão oficial "cabeça de comarca" recebe a carga adicional
da importância da atividade pastoril. A concentração
no mesmo sintagma de áreas semânticas bem diversas desencadeia
densa conotação crítica.
E durante a estadia da castelhanada
A sugestiva metáfora dos "sonhos bananosos" amplia ao país
a questionável, preocupação de melhorar a imagem aos
olhos estrangeiros, fixando um traço da personalidade nacional voltada
à aparência em vez de enfrentar a realidade.
Não é preciso nenhum esforço auditivo ou mental para
justapor tal modo poético à narração – também
de reminiscências da meninice, também ácida contra
o poder – das Memórias Sentimentais de João Miramar,
de Oswald de Andrade editado em 1924. Impressiona, considerada a maneira
típica dos gaúchos de tratar o episódio farroupilha
a relativa desfaçatez de traçar um percurso que vem dos altos
ideais republicanos e chega na medíocre mesquinharia da política
de São Francisco de Assis, terra natal do poeta – e tudo mediado
pelo tom ingênuo do guri que se exercitava em artes menos nobres
do que a guerra, com sua funda passarinheira.
Lá fora
o patrão D. Inverno
A
citação precisa ser longa para ser íntegra, para reproduzir
a magistralidade da cena: trata-se de um causo (ou de um metacauso) que
conta um episódio ocorrido num galpão (mas contando numa
linguagem que nos mantém alertas, em estado de tensão em
relação ao assunto), cena que contém todos os ingredientes
para a simplicidade camponesa mas que, paradoxalmente, pela linguagem e
pelo andamento, promove verdadeira implosão, surda e eficiente,
da aparente calma. Em dicção literária – pontuação
abolida, nexos ausentes, suprimidas as marcas de passagem de uma voz a
outra, alguma ousadia flexional e morfológica, a atenção
à fala popular -, o poema se inicia à maneira tradicional
do causo: era o tempo frio, uma pequena chuva caía, e os peões
voltavam de um passeio noturno pelas redondezas – pela “vizinhança
grávida de gurias cúbiços palpáveis”, com o
adjetivo “grávida” antecipando o desfecho tragicômico. No
Galpão, volta o poema, Tibúrcio fala lentamente (o símile
gauchesco é perfeito, com a égua aguateira), e o velho Aurélio
relata casos de assombração havidos no rodeio das bragadas
– e “bragadas” podem ser animais, fêmeas, e pêlo manchado,
mas podem ser também as meninas “cúbiços” vestidas
de bragas, calções, peças íntimas do vestuário
feminino de antanho -; daí por que houve risadas dos que ali estavam,
sabedores de que os peões, que voltavam tocados pelo frio e pela
chuva, retornavam, mas de uma incursão erótica.
Acredito que um povo, no caso, o assisense, seja o mais indicado para escrever
sobre temas que lhes são particulares.
* Antônio Holfeldt, Donaldo Schüler, Itálico Marcon,
Luis Augusto Fischer. Agradeço a todos, especialmente o Marcon por
ter "ressuscitado" o doutor Tyrteu.
Antônio
Holfeldt
Obra de Tyrteu Vianna revisita o modernismo. O ano editorial de 1993, no
que tange ao Rio Grande do Sul, sem dúvida ficará marcado
por um lançamento editorial que, sem alcançar maior repercussão
no momento, tende a transformar-se em acontecimento fundamental em futuro
muito próximo. Refiro-me à publicação, em segunda
edição (a primeira é de 1928!) do livro de poemas
denominado Saco de Viagem, de Tyrteu da Rocha Vianna. Trata-se de
uma edição fac-similada, preparada pelo também poeta
Itálico Marcon e que o Instituto Estadual do Livro - Pontifícia
Universidade Católica produziram sem maior algazarra, mas que, como
disse, muda a interpretação da história do Modernismo
no Rio Grande do Sul e, conseqüentemente, mexe com essa história
em termos do próprio País.
A publicação é tão mais importante quando nem
mesmo Lygia Chiappini Leite, que escreveu sobre o Modernismo gaúcho,
deu maior destaque à obra. Sua divulgação contudo,
possibilita-nos e, mais, obriga-nos a uma urgente revisão. Com quanto
retirado no interior do estado, avesso à publicidade e autor deste
único livro que segue de perto a criação de Oswald
de Andrade, a obra de Tyrteu é tão revolucionária
para época (formal e conteudisticamente) que, por certo não
podendo ser combatida, foi propositadamente olvidada. Fundamental, pois,
seu resgate sua divulgação e sua reavaliação.
Jornal do Comércio, 25 de janeiro de 1994.
Donaldo
Schüler
Tirteu Rocha Viana
Em meio ao ritual repetitivo de imagens gastas e frases feitas, lêem-se
com grata surpresa os versos inventivos de Tirteu Rocha Viana.
Ao contrário do costume rio-grandense de inovar sem alarde, Tirteu
ataca, nas primeiras páginas, em prosa e verso os críticos
passadistas que atribuem as ousadias dos novos à imaturidade.
Saco de Viagem divide-se em duas partes. * Na primeira, "Vontade
de versos futuristas", predominam cenas de vida campeira; a segunda, "Churrascos
de Viagens "fixa o perfil de várias cidades. Obedientes a nosso
plano, trataremos a primeira parte aqui.
Vejamos os recursos do poeta num de seus poemas.
O espadagal subintendente barbicachúdo
Do distrito abigeatorial
Embrabeceu repentino
Nas carreiras californiais
Atravancando a cancha com o lazão
Cusquilhando chilenas na virilha do pingo
Gritou cola atada
Rebencaços falatorios
O sujeito ou individua que
Atravessá os trio
Vorta pelo mesmo conseguinte
E a murta é cincão
Fechou o tempo e o Dr. Fraga
Custurou-lhe os intestinos
Com uma agulha de compor sacos
A criação de palavras novas:"espadagal", "abigeatorial",
calcados no modelo de adjetivos respeitáveis como imperial, empresarial,
industrial, comercial, obedece a intenções críticas.
A espada, presa ao superintendente, define-o da mesma forma que o roubo
do gado ("abigeatorial") caracteriza o distrito por ele administrado.
A caracterização rápida da autoridade prepara a ação.
A proibição desnecessária e não apoiada em
lei expõe o abuso de poder. Conivente com desmandos que lesam as
pessoas de bem, dá ordens sem nenhum interesse social com o único
objetivo de alardear mando. Não usa a valentia para defender a coletividade
de agressões, mas a cultiva para seu próprio brilho.
Abre-se a distância crítica entre o título e o poema.
O superintendente força as portas da história - que registra
feitos relevantes com ações sem conteúdo. O poeta
traça a caricatura do homem que sonha em pôr-se à altura
dos heróis de sua gente a qualquer preço.
As peculiaridades da fala do superintendente não aparecem como mostruário
pitoresco, mas estabelecem a contradição entre o que efetivamente
é e os sonhos de glória.
O poeta mostra o poder da concisão, própria de todo o livro,
nos versos finais. De um episódio que vai do conflito armado a ferimentos
graves e cirurgia de urgência, o poeta toma o princípio e
o fim e os justapõem.
Cabe ao leitor reconstruir a cena. Temos aqui a técnica de montagem,
que imortalizou os filmes de Eisenstein. A força sugestiva do recurso
assinala lugar privelegiado na criação poética do
Rio Grande do Sul. O poeta revela o mesmo rigor nos demais poemas.
Na segunda parte de Saco de Viagem, Tirteu Rocha Viana caracteriza
várias cidades do Rio Grande do Sul e de outros Estados: Pelotas,
Rio Grande, Florianopólis, Santos, Rio de Janeiro, Livramento, Alegrete,
Santiago. A enumeração obedece a seqüência do
livro.
O mérito do poeta reside no fato de abandonar os lugares comuns,
as anotações epidérmicas ou turísticas para
apanhar o espírito do lugar com suas ambições e lutas.
Às vezes um único substantivo funde um aspecto da região
embebido de ferina sugestão crítica. Veja-se a propriedade
inventiva de "pecuaríssima" no final do poema Alegrete:
Londres do futuro
Pecuaríssima
Cabeça
de
Comarca
Apanha assim as providências das autoridades de Florianopólis
- já nos anos 20 procurada por turistas do Prata - para tornar a
cidade digna dos visitantes:
O governo mandou esconder
Por decreto
O bondinho
Puxado a burrinho
Pequeninho
Onde os habitantes cantadores
Brincam de fazer viagens
À roda do país dos sonhos bananosos
Para
acompanhar a finura da arte de Tirteu, transcrevemos por inteiro um de
seus poemas.
Pelotas
A princesa coroada
Da família real das cidades do sul
Farelo de arroz
Fardos de charque e sebo nas barricas das
Charqueadas do São Gonçalo piscoso
Hotel aliança
Aliança Libertadora
Herança jacente do conselheiro telegramando
Conselhos deputadais libertadores
Mudas da Quinta Bom Retiro
Habitantes podres de chic
Brigadores da briga spartoatheniana
Com a vizinha das Rio Grande
A Faculdade Livre de Direito
Facílima facilidade formadora de bacharéis
Em turmas manadas gafanhotais
Telefones automáticos da Light and Power
Milagrosos bondes sem condutor
Teatrais Guaranis imensuráveis vastos como o mundo
Baares pingando
Água Gaúcha
Perfumes
Efebos
Os primeiros versos põem em choque vaidades fidalgas com atividade
nada principesca, sustentáculo de fidalguias. Vida cultural, política,
econômica misturam-se para compor unidade compacta e contrastante.
Às vezes semelhança ou identidade de palavras permite transitar
de uma área a outra. Assim, o Hotel Aliança abre passagem
à Aliança Libertadora, partido político. Na linguagem
coloquial, usa-se a expressão "podre de rico" para designar pessoa
de muitas posses.
Parodiando a designação, o poeta diz "podre de chic" para
caracterizar os que, com requintes de indumentária, aparentem abastança.
"Efebos", palavra de origem grega que fecha o poema, alude como briga "espartoatenina"
ao conflito proverbial entre as cidades helênicas pela hegemonia,
envolvendo as cidades helênicas pela hegemonia, envolvendo agora
as cidades vizinhas de Pelotas e Rio Grande.
O poeta cria o caleidoscópio urbano com observações
rápidas e densas, fixando um painel social ágil, penetrante,
permanente.
Poesia Modernista no RGS, Ed. Movimento, 1982.
Itálico Marcon
Tyrteu Rocha Vianna foi o nosso modernista mais ortodoxo, mais vanguardista
e demolidor, mais revolucionário descompromissado com a substância
nativista-simbolista que embasava, de forma precípua, o movimento
sulino, na “fase heróica”( até 1930).
Tyrteu Rocha Vianna é o poeta mais original do Modernismo Sul Rio-Grandense,
com a sua poética da radicalidade, a mais visceralmente ligada ao
credo estético da Semana da Arte Moderna de São Paulo, de
1922. Sem qualquer demérito ou subordinação descaracterizadora,
o “Oswald de Andrade” do Rio Grande do Sul.
Ele presentifica o elo final de uma corrente:
Qorpo-Santo-Marinetti-Trilussa-Oswald de Andrade -Tyrteu Rocha Vianna.
A sua atualidade é inconteste e indiscutível a sua valia.
O seu nome e o seu livro já não podem mais ficar de fora
das histórias do Modernismo Brasileiro. Por um dever de reparação
e de valorização histórico literária. De honestidade
intelectual.
Trilussa, juntamente com Barão de Münchhausem e Kipling, é
presença marcante na poesia de Tyrteu Rocha Vianna.
Saco de Viagem, Tyrteu Rocha Vianna, Ed. Edipuc.
Luis Augusto Fischer
...poeta desta geração o som será oswaldiano.
Trata-se de Tyrteu Rocha Vianna, o mais inventivo de todos, que lança
seu único livro, Saco de Viagem, em 1928. Seu tema é
gaúcho com exceção de três poemas, estando a
novidade na dicção. Vejamos “Recordações”:
O general
Bento Gonçalves da Silva
Fez a separatória
república de 35
Com bandeira
Verde amarela
encarnada
Escudo complicado
Ajutório
de Garibaldi dei due mondi
E o rubro barrete
frígio
Da mulher deusa
Razão parisiense
Quando eu gurizava
fundaços passarinheiros
Em um São
Chico bastante menor
Que o
O atualíssimo
de empréstimo americano
Asseio público
e praça de esportes
Hipotéticas
hipóteses relatoriaes
Ditadurazinha
desgovernamental de Trois...tky
Felizmente quadrienal
Homenageavam
filarmônica churrasco
Cervejada subscrição
República de Piratinim
Subindo barbante
Foguetório
vivarada
Discurso obrigatório
major Laláo
Meio metro bandeiral
Histórico
reverenciando respeito
Trapo nem verde
nem amarelo nem mais nada
Meu Pai respondente
Sentado me dizia
É o regime
econômico vaca magra
Das tetudas economias
invisíveis
Do dinheiro municipal calotíssimo
Talvez o melhor exemplo da síntese alcançada por Tyrteu entre
o fluxo modernista e o tema regional esteja no grande, belíssimo
poema “No Galpão”:
No Galpão
(a Raul Bopp)
Mais D. Frio
e seu capataz Minuano
Mais a peonada
deles feita de pingos de garoa
Iam repontando
A manada retacona
dos peães
Do pasto alto
das noturnas calaveiragens pelos ranchos
Da vizinhança
grávida de gurias cubiços palpáveis
Para a mangueira
das 4 paredes do galpão
E à roda
do fogo D. Chimarrão os pastorejava
Formados
Seu Tibúrcio
era o contador de histórias de plantão
Sia dona Conversa
foi vindo vagarosa e lerda
Como a baia aguateira
lunanca
E pela boca desdentada
do Aurélio chegou-se
Na história
recente dos fantasmas assombradores
Do posto do rodeio
das bragadas
Houve risadas
mui reticênciais dos circunstantes
Largas longas
e cortantes como facão marca touro
E D. Silencio
chegou montado no pschit
Do capataz bandaoriental
D.Fulano
Seu Tibúrcio
mandou D. Silêncio à fava
E foi se defendendo
na maciota
Retrucão
a fechar um criolo filado
Mas não
foi eu que o sobreintendente
Ia prender na
cadeia
Como desencaminhador
da fia mais moça
Da siá
dona Anaia
E o pai do aleijadinho
E logo em seguida
Deu vontade de
fazer pipi no capataz
Bandaoriental
D. Fulano
Peleador de amores
impuberes abafados
Chega-se ao galpão o capataz, ordenando silêncio autoritariamente;
é sintomaticamente um uruguaio, figura que evoca um dos mais caros
fantasmas rio-grandenses, o castelhano invasor e inimigo. Seu Tibúrcio
não se dá por achado e retruca, enquanto ocupa as mãos
e talvez os olhos na tarefa de fechar seu cigarro, que ele castelhano (
por sinal sem nome “D. Fulano” ) é que devia calar-se por ter culpa
evidente como desencaminhador de meninas já conhecido até
das autoridades. A última parte nos faz rir internamente, satisfeitos
com a reação do simples peão que não se dobrou
à ameaça do castelhano - que sai para fazer pipi, contrafacção
ridícula de “peleador”.
De Tyrteu, de sua magnífica reelaboração dos caminhos
tradicionais da poesia gaúcha, poderia talvez ter provindo herança
mais radicalmente modernista, ou pelo menos renovadora; mas, como dito
antes não se consolidou entre nós tal impulso. E o resultado
geral, considerada a poesia gaúcha segundo seus autores de prestígio
à época, foi menos a assimilação do veio modernista
e mais a aceitação agradecida das liberdades formais e temáticas
conquistadas ao terreno parnasiano-simbolista. Da mesma forma que nosso
simbolismo, também é o nosso tempo modernista foi brando
em ousadias, e brando em realizações.
Um Passado pela Frente, Ed. UFRGS, 1992.