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Ford: o homem e o carro

É bem antiga a vontade de produzir um carro no Brasil. Por volta de 1907, firmas como Werner, Hilpert & Cia., Garage Fiat e Companhia de Automóveis Reunidas esmeravam-se em conservar, reparar e reconstruir peças e carros importados. Com assistência de Turim (Itália), a Garage Fiat, salvo rodas e motores, já se via em condições de fazer um automóvel.

Tudo mudou em 1913. Ao instalar uma linha de montagem na sua fábrica de Highland Park (Grande Detroit, EUA), Henry Ford deu vida ao revolucionário Model T, um carro bom, barato e padronizado. Porque queria ganhar as massas ele adotou a produção em série, da qual acabou sendo mentor e senhor.

Houve perdas e ganhos. O consumo em massa ampliou o acesso aos bens manufaturados. O Model T era mais barato, e ficou ainda mais econômico porque vendeu muito. Além disso, os consumidores se sentiam bem ao fazer compras.

Indústrias eram progresso, mas este progresso, ao mesmo tempo, significou o exaurimento de recursos naturais, como os rios, a areia, o carvão, a borracha, a madeira, os minerais, o ar. E, em acréscimo, a mão-de-obra.

Para fabricar mais e mais, Ford precisou mudar o modo como os operários aprontavam os carros, decretando a extinção do trabalho de ofício, um jeito mais demorado - mas de maior qualidade - de se fazer as coisas. Logo, a linha de montagem não só veio para viabilizar um apronto rápido e eficiente. Também serviu para os patrões se livrarem da sua dependência para com aqueles operários conscientes do seu valor profissional, geralmente pais de família, instruídos, sindicalizados e orgulhosos. Por solapar a base do movimento operário, Ford, instantaneamente, se tornou uma celebridade mundial.

Vitorioso, Ford se tornou o dono de uma nova maneira de produzir e vender. Depois dele, nunca tantos trabalhariam tanto para o consumo de outros tantos. Verdade, com seu salário, o operário podia chegar à compra do Model T. Era dureza, mas não impossível. Em 1914, quando Ford inventou a jornada de cinco dólares, milhares apareceram atrás de emprego. Com uma diária dessas, os candidatos sabiam que era possível satisfazer necessidades, ganhar moral nas ruas e dentro de casa, e planejar o futuro. Se ficassem na fábrica por toda a vida, talvez pudessem dar aos filhos a instrução que não haviam tido.

Divergindo da exaltação, analistas repararam a insanidade a que os trabalhadores não-qualificados e semi-especializados eram submetidos, concluindo que o fordismo aviltava a força de trabalho. Mediante sua experiência, os trabalhadores também chegaram à mesma opinião. Eles eram ditatoriais, feitores de escravos, reprovou Warren Hart, contratado em 1919. Outros recusaram tudo ali mesmo, no dia em que ingressaram. John De Angelo e seu pai foram admitidos juntos em Highland Park. O garoto ficou e agüentou tudo até a aposentadoria, permanecendo no emprego por toda a vida. O pai, em contraste, nem pediu as contas e deixou para trás os centavos referentes às únicas três horas de trabalho vendidas para Ford. Não se importou; achou tudo uma loucura e foi-se embora.

“Mussolini de Detroit”, criticou o New York Times em 1928. Campeão do capitalismo, Ford também encarnava o temor a um mundo hierarquizado e organizado como um corpo, submetido a uma ordem inconteste e única. Por isso, serviu de inspiração ao romancista Aldous Huxley, em  Admirável Mundo Novo, uma ficção científica em que as pessoas nascem, vivem e morrem privadas de sua individualidade. Em Tempos Modernos, Charlie Chaplin igualmente criticou o fordismo, legando ao cinema uma seqüência em que se digladia com as engrenagens das máquinas.

Mussolini de Detroit! O difícil era saber quando isso provocava recusa ou simpatia. Depois da tomada da Fiat em 1922 - ocupada por um conselho operário revolucionário  - e do Craque da Bolsa em 1929, Henry Ford sintetizava uma resposta aos desafios patronais. Tanto era visceralmente anti-sindical quanto crítico do mercado financeiro. Nessa época, o capitalismo liberal estava numa crise quase terminal. Para milhões de pessoas, quem tinha a resposta era o Estado, seja com o fascismo de Mussolini, seja com o planejamento dos socialistas soviéticos.

Giovanni Agnelli, dono da Fiat, entendeu o recado. Como outros industriais, ele foi até Detroit, em 1926, e aprendeu a receita. Felice Gentile, que havia sido um soldado do piquete da repressão contra o piquete dos grevistas da Fiat em 1922, também entendeu o seu recado. Admitido na Fiat depois de dispensado do serviço militar, precisava de permissão para ir ao banheiro. Se alguém aproveitava a pausa para um bate-papo e era notado por um guarda ou chefe, seria demitido na hora.

- Era horrível, desgostou Giovanni Gobbi, contratado como cronometrista.
- Uma das primeiras pessoas que tive de tomar o tempo era um homem que podia ser meu avô. Para um italiano, macular laços de família era um pecado grave.
- O pobre homem trabalhava e eu era o garoto a tirar o seu tempo, lembrou-se desconsolado.

O anti-semitismo de Ford, manifesto na sua retórica contra a presença dos judeus na bolsa de valores, foi acolhido com agrado na Alemanha, especialmente por Adolf Hitler. Recém-eleito “empresário do século”, Ford foi escolhido, em 1938, para receber a Grande Cruz da Águia Alemã, a maior distinção do regime hitlerista a estrangeiros. Nessa data, os nazistas já eram notórios perseguidores de comunistas, judeus, homossexuais e outros “inimigos internos”.

Com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o envolvimento da indústria automobilística com o nazi-fascismo foi além da empatia. Solidárias no esforço de guerra, Volkswagen, Opel, Daimler-Benz (Mercedes) e BMW utilizaram mão-de-obra escrava capturada no caminho da ofensiva contra Moscou, Leningrado e Stalingrado. Sem uma razão tão clara, ou simplesmente fazendo dinheiro, Ford e General Motors também colaboraram com os nazistas.

Se mortes e lucros pareciam acomodar-se mutuamente, os trabalhadores mostravam que havia vida na linha de montagem. Quando o filho do velho Henry, Edsel Ford, contratou o pintor muralista Diego Rivera para pintar a fábrica de River Rouge, os trabalhadores que foram retratados no painel intimidaram muitas pessoas. Paul Botian e seus colegas viam isso nos olhos do público. Eles sentiam que os músculos, as frontes e as expressões pinceladas por Rivera impressionavam a quem os observasse. “Se por acaso saíssem do mural, podiam se mostrar perigosos”.

Para romperem com o enquadramento e ganhar vida própria, precisariam descrer de Ford, para muitos um verdadeiro Deus. Jim Sullivan descobriu a fé de seu pai no United Auto Workers (Sindicato dos Trabalhadores das Automobilísticas) num simples jantar. Depois de reclamar do tratamento que ele e seus colegas recebiam, seu velho lhe disse:

- Você pode cair fora do emprego ou virar sócio do sindicato.
- Bem, pai, eu sou sindicalizado, respondeu Jim.
O pai, então, exclamou aliviado:
- Graças a Deus, mostrando-lhe seu distintivo sindical.
Ambos eram sócios, mas não sabiam, porque Ford não deixava.

Ford não deixava e Harry Bennett, seu capanga, perseguia. Este gangster tinha mais poder que o próprio filho do grande chefe, o desprestigiado Edsel. Descobrindo-se uns aos outros como companheiros nos sindicatos, os trabalhadores, mesmo divididos em idiomas e nacionalidades, descobriram um meio de levar seus sentimentos e projetos para dentro das fábricas. Além do lazer e da comunicação (tecidos apesar da vigilância dos bate-paus e dos cronometristas), eles conquistaram o direito tanto de implantar o sindicato na fábrica quanto de dizer que possuíam sua própria concepção acerca da vida que levavam.

Sua unidade foi fundamental para reverter a desindividualização que os trabalhadores sentiam enquanto produziam. Em 1941, veio a primeira greve vitoriosa. Celebrando a parada, Jim Sullivan e seus camaradas gritaram:

Estamos em greve!
Me sentia superbem: requebrava e dançava. Estava fazendo história: eu fechei a Ford Motor Company!

Ford e Bennett cederam e, a partir de então, a pressão operária pelo direito à felicidade nunca mais seria sufocada pelo esmagamento da linha de montagem.

Depoimentos dos trabalhadores citados no texto foram extraídos de:
HODGSON, Godfrey. People’s Century: from the dawn of the century to the start of the cold war. Londres: BBC Books, 1995.
 

A industrialização automobilística no Brasil

Em 1945, quando a Segunda Guerra Mundial acabou, o mundo foi completamente redesenhado. Um insurgente nacionalismo no Terceiro Mundo deu voz à libertação colonial na Ásia e na África. Com estados nacionais consolidados desde o século XIX, na América Latina a situação era diferente. Em todos os casos, porém, seus dirigentes queriam industrialização rápida e nacionalizante.

Não era bem isso o que as maiores firmas automobilísticas de então, as três grandes - General Motors, Ford e Chrysler -, tinham em mente. Elas preferiam investir na reconstrução da Europa, disputando com o socialismo soviético quem fornecia mais bem-estar ao povo. Desemprego agora era preocupante para os capitalistas, arrependidos de seu apoio ao nazi-fascismo para conter os movimentos operários.

A América Latina estava esquecida, reclamavam seus ditadores e presidentes. Não havia um plano de desenvolvimento para o continente, algo fundamental para “salvá-lo” do comunismo, eles alertavam. Carregando na bagagem duas automobilísticas deficitárias - Kaiser-Frazer e Willys-Overland -, o industrial estadunidense Henry Kaiser juntou-se ao coro na sua viagem ao México, Colômbia, Brasil e Argentina.

Nesse ano de 1954, México, Brasil e Argentina apresentavam um setor automobilístico restrito à montagem de importados, mas que já dera origem à manufatura local de uma pequena parte de componentes e autopeças. Era como juntar a fome à vontade de comer: os visitados saudaram vivamente a passagem de Kaiser, que apregoava a idéia de transplantar suas duas firmas para o Cone Sul.

“O povo quer saber o segredo de Climério”, estampou o Última Hora (18/8/1954). Acuado pela reação ao atentado a Carlos Lacerda (1914-1977), o presidente Getúlio Vargas concedeu audiência especial a Kaiser. No Palácio do Catete, o presidente acomodou-se à cabeceira da mesa e tentou ignorar a caçada a Climério. Quis saber se Kaiser iria montar ou fabricar carros. O visitante antes afirmou que o aproveitamento da mão-de-obra brasileira seria integral, criando milhares de empregos.

Interessado, o presidente prometeu o apoio de seu governo, nesse instante em profunda crise. Nós temos o know-how, nós temos o ferramental, e, se nos estabelecermos aqui, gostaríamos que os brasileiros possuíssem a maioria das ações da companhia, assegurou-lhe Kaiser. Na saída da comitiva, Getúlio aparentava distância dos problemas: o presidente dava baforadas de satisfação com seu charuto e parecia querer conversar longamente com mister Kaiser sobre a industrialização do Brasil.

Com efeito, uma indústria automobilística nos moldes expostos por Kaiser seria um suplemento à grandiosa Companhia Siderúrgica Nacional, uma das realizações do primeiro governo Vargas (1930-1945).

Na parada do vôo de volta de Buenos Aires, onde acertou a organização das Industrias Kaiser Argentina com Juan Perón (1895-1974), Kaiser desceu no Rio para encontrar Osvaldo Gudole Aranha, que não apareceu. Mais tarde, explicando-se, esse escreveu que passara “uma noite horrível e extenuante, e que terminou tão tragicamente”, noite essa vivida a cada minuto por ele e seu pai (o ministro Osvaldo Aranha) “ao lado do presidente até o momento em que ele eludiu a todos nós para cometer o trágico ato que pôs fim à sua vida”. Mesmo assim, a reorganização da Willys-Overland do Brasil já seguia o seu curso e a firma se tornaria o carro-chefe dos "50 anos em 5", do presidente Kubitschek (1956-1961).

A pronta disponibilidade da Willys em promover sua retirada dos EUA e em ingressar no Brasil fez dela uma parceira determinada. Se General Motors e Mercedes-Benz apenas cogitavam aumentar o percentual das peças nacionais acopladas aos caminhões importados, a Willys se dispunha a construir um carro 100% brasileiro, música aos ouvidos de JK.

No governo, Juscelino instituiu o Geia (Grupo Executivo da Indústria Automobilística) e regulou a produção de caminhões, veículos utilitários e de passageiros. Enquanto grandes firmas como Ford, GM e Mercedes temiam fabricar um carro de passeio, a Willys, depois do Jipe e da Rural, saiu-se com o Dauphine (parceria com Renault) e o Aero contudo, para seu azar, a Volkswagen tinha o “carro do povo”, o Fusca.

Entre 1957 e 1960, devido à demanda do mercado (reprimida durante anos por causa das dificuldades com as importações), os consumidores puderam comprar apesar da inflação. Depois, nos governos de Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961-1964) a inflação e a instabilidade política agravaram os problemas da distribuição da renda, impedindo os consumidores de manterem o ritmo.

Para os empresários da indústria automobilística, esses problemas seriam resolvidos pelo general Castelo Branco (1964-1967), que derrubou Jango e assumiu o poder com o Golpe Militar de 64. Veio a recessão. Vieram as demissões em massa. Só os mais fortes resistiram. No final dos anos 60, a Ford comprou a Willys (desfazendo a associação com a Renault) e a Volkswagen comprou a Vemag. A Chrysler instalou-se aqui adquirindo a Simca e a International Harvester; a Alfa Romeo fez o mesmo com a Fábrica Nacional de Motores. Além disso, os acionistas locais tiveram seu poder administrativo reduzido ou eliminado. Era o fim do pioneirismo.

Era, ao mesmo tempo, o início do “milagre econômico” (1968-1974), a fase de maior crescimento do Brasil durante o regime militar. Livres de suas parcerias locais, e finalmente controladas pelas matrizes do estrangeiro, as empresas se comportaram como as multinacionais que são, barganhando garantias e favorecimentos em troca do anúncio de investimentos. Em acréscimo, aliadas da repressão ao movimento operário, ao lucrarem com o arrocho salarial e a manipulação dos índices inflacionários, praticaram a superexploração da força de trabalho, crescendo sem se amolar com os debaixo.

A balança das forças mudou em 12 de maio de 1978, quando os trabalhadores da Scania entraram em greve e irradiaram, país afora, o clamor que a sociedade civil sentia por democracia e liberdade. Em seguida, ao passo que, no Brasil, as multinacionais deixavam seus carros envelhecerem como carroças, seus investimentos se voltaram para os Tigres Asiáticos, como a Coréia, que também conjugava o par ditadura e rápida industrialização.

Feita a abertura dos anos 90, o movimento sindical latino-americano teve de responder aos planos das grandes corporações. Estas ainda se vêem como carro-chefe da economia e exibem seu ziguezague geográfico à cata de vantagens e da flexibilização dos direitos trabalhistas, sempre empregando menos e menos gente. Ao México disseram: abra-te aos Estados Unidos, mas teus filhos serão caçados na fronteira, ou explorados se escaparem.

Aqui, a Chrysler se retirou e depois voltou. A Renault foi-se mas também voltou. A Ford não se dispôs a rever os entendimentos para sua instalação no Rio Grande do Sul e mudou-se para a Bahia. Além disso, volta e meia, o boato do fechamento de fábricas é ventilado. É um rumor que sopram para desmontar o que não interessa aos planos das corporações globais, direitos trabalhistas por exemplo. Esse é o preço pago por um país e um povo que abriram mão da indústria ferroviária. Governar é abrir estradas? Nesse exato instante, um(a) trabalhador(a) no Japão está embarcando num trem-bala.

Antonio Luigi Negro
Doutor em História pela Unicamp, autor de Linhas de Montagem: o industrialismo
automotivo e a sindicalização dos trabalhadores (1945 - 1978).
[email protected]  
 

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