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Praça Central


Batista Luzardo
Flores da Cunha
La Hire Guerra
Antero Marques
Osório Santana Figueiredo
Valdreani de Carvalho Porto
Batista Luzardo

    Tive de ser enérgico com o cel. Hortêncio. Ele vinha feroz para liquidar os borgistas Feridos que estavam sendo recolhidos à Matriz.-, esses homens, já quase mortos, estão na Igreja! - Por favor se acalme!

    Em 1973, o Rio Grande do Sul comemorou o cinqüentenário da revolução de 1923. O governo e os organizadores do evento, pertencentes as facções que se digladiaram naquele movimento, quiseram transformá-lo em culto aos bravos que tombaram, fosse eles pica-paus ou maragatos.
    Ao se organizar a comissão que coordenaria a rememoração, Raul Pilla - num dos seus últimos atos - consultou Walter Jobim sobre quem deveria ser o presidente. Recebeu a seguinte resposta: - Tu não tens que consultar ninguém... quem é que tem os títulos que o Luzardo tem? Ninguém, não é? Toca pra frente e formula o convite. Luzardo aceitou e percorreu o Rio Grande do Sul com os seus 81 anos transformados em 40, tal a sua disposição em visitar todos os locais dos grandes combates, relembrar partidários e adversários comum do preito à bravura rio-grandense.
    Todo o Estado lhe foi franqueado, com uma única exceção: São Francisco de Assis, na zona missioneira. Deixemos que o episódio seja narrado por ele próprio: - Quando preparávamos a lista das cidades que iriam ser visitadas, em 1973 recebemos vários apelos para incluir São Francisco. Até um homem notável, Solano Borges, naquela época presidente da Assembléia do Rio Grande do Sul e hoje membro do Tribunal de Contas Estadual, que tinha São Francisco como área de influência política, empenhou-se profundamente para que a visita da comissão nos festejos do cinqüentenário se realizasse.
    Preparam um programa e tudo ficou acertado. E a minha intenção era aproveitarmos aquela oportunidade para render preito a quantos, maragatos ou republicanos, tivessem morrido lá ( mais de 120). Íamos visitar São Francisco de Assis para fazer a apologia da bravura rio-grandense neste século. Era isso que pretendíamos. Primeiro uma missa solene e depois a aposição de uma cruz homenageando... - Quando já estávamos prontos para nos encontrar no Alegrete e rumar para São Francisco começamos a receber apelos para que desistíssemos da visita. E isso foi num crescendo tal, que para grande surpresa da minha parte, recebi, por parte do bispo de Uruguaiana, Sua Eminência D. Augusto Petró, veementes exortação e apelo no sentido de que, decididamente, lá não fôssemos. Cidadãos de São Francisco tinham ido pedir-lhe que interviesse, "pois a Comissão iria correr riscos".
    Veja o senhor: Cinqüenta anos depois e o povo ainda se ressentia do combate de 23, a tal ponto que não podia garantir a segurança nem de quem pretendesse homenagear seus mortos... O Dr. Carlos Gomes de Oliveira, intendente de São Francisco, cansou-se da pecha de desertor: não retiraria agora. Resistiria até a morte se preciso fosse. Logo no início da revolução, os 300 homens de Hortêncio Rodrigues tinham atravessado o Taquari, no Passo do Camilo, e acampando à margem direita do Caraipasso, na propriedade de Jacob Funck. Dali a força marchou sobre São Francisco de Assis e ocupou-a pacificamente, depondo o intendente situacionista e empossando outro, na pessoa do Dr. Hugo Nogueira, engenheiro notável. "A população"- narra Antero Marques -, "como acontecia em todas as localidades, estava dividida segundo os dos partidos em luta - os que nos aplaudiam com regozijo e aqueles que nos contemplavam em silêncio, alguns certamente com surdo rancor.
    Não houve o menor ato de violência ou desrespeito por parte da nossa força a quem quer que fosse, o que é de admirar, pois se é verdade que havia de um e outro lado numerosos camaradas e amigos , também existiam desafetos , ojerizas e rancores velhos e encardidos. Deve-se atribuir este fato à maioria das pessoa do comando e do Estado Maior, onde se destacava a figura bondosa, por todos os motivos elevada e digna do Dr. Álvaro Costa, chefe oposicionista e médico local." Explica o autor que o Dr. Carlos Gomes, intendente borgista - homem educado, de trato fino, inteligente-, não teve meios de resistir à aproximação libertadora e retirou-se juntamente com sua pequena guarnição. Percorreu nove léguas e atingiu São Vicente, ainda em poder do borgismo, e onde se organizava uma força numerosa. "Nada mais natural"- prossegue Antero-, "nada mais justo, nada mais concorde com dignidade pessoal ou militar de qualquer comandante, como o não querer resistir com os seus vinte e pouco homens, armados somente de fuzis, mal-municiados, a metade deles civis bisonhos recrutados às pressas -ao choque de 300 homens,mesmo desarmados. E não foi bem recebido: ridicularizaram-no, diminuíram-no, acoimaram-no de covarde; que devia ter ficado,que devia ter resistido, que eles [os chefes de São Vicente] teriam ficado, teriam resistido; telegrafaram ao eminente chefe, em Porto Alegre, dando conta "daquela covardia". Carlos Gomes transferiu-se para Santa Maria esperando encontrar um tratamento melhor, mas também foi acoimado da mesma pecha, inclusive por Borges de Medeiros, que pelo menos consentiu na sua permanência ali até que tivesse condições de voltar e reassumir o poder em São Francisco, o que fez, com mais armas e munição.
    Tempos depois, Honório, atacado por Flores, empreendeu a chamada "Volta da Serra", a qual imortalizaria os guerrilheiros da coluna. Passou, assim, a coluna, para a margem direita do Ibicui, no Passo do Catarina, em Jacaquá. E o fez tiroteando: e manteve a sua retaguarda, no passo, para sustar a marcha do inimigo, uma força do destemido Cel. Mingote Cunha, que brigou fora e dentro d'água, realizando proezas menarráveis. Flores da Cunha queria evitar a passagem de Honório para as missões a todo custo . Ele conta em seu livro A Campanha de 23 o relato de um desapontamento, que ao mesmo tempo constitui o maior elogio a Honório: "Um batalhões da Brigada Militar, embarcado em trem, chegara ao Jacaquá quando ainda a maior parte dos revolucionários não conseguira passar .
    Há da estação ao Passo do Catarina mais ou menos uns mil metros. Pois bem, se o batalhão tivesse atacado logo ao desembarcar haveria não só desbaratado por completo o inimigo como também, e principalmente, tê-lo-ia impedido de realizar a operação de travessia do rio, façanha que praticou em condições quase normais e com o mínimo de perdas. Entretanto, sabe-se que a briosa unidade estava mordida para atacar!... Mas, ou fosse pelo temor da responsabilidade ou fosse lá por outros recônditos motivos, o fato é que o governo perdeu ali uma boa ocasião de terminar com a coluna mais combativa e eficiente da revolução." Assim que a coluna transpôs o rio, sua vanguarda, integrada pela mesma força de Hortêncio Rodrigues, que contava aí com a participação de Batista Luzardo, distanciou-se três léguas, atingiu e cercou a vila de, São Francisco defendida agora mais ou menos 100 homens. O intendente Carlos Gomes foi categórico na recusa a proposta de alguns amigos para que retirasse. - Não, não retiro. Desta vez não passo mais vergonha. Não darei mais esse gosto ao pessoal de São Vicente e de Santa Maria... Mandou escavar trincheiras nos arredores e nas ruas da vila, e cercou de sacos de areia a praça da prefeitura. - Nunca mais retiro. Nunca mais vou sofrer o que já passei.
    Hortêncio Rodrigues e sua força viram agora que a situação agora era muito diferente. E Batista Luzardo no comando, por designação direta do General Honório, sentiu que o bravo coronel ia se enraivecendo à medida que os emissários que despachara ao intendente voltavam com a notícia de que não haveria rendição. - Os maragatos de São Francisco- conta Luzardo- haviam sofrido muito. Por anos e anos suportaram o jogo castilhista - borgista e as perseguições e provocações do situacionismo local. O restante do Rio Grande não avaliava muito bem as provações que os federalistas e libertadores tinham passado. As tênues capas de civilização que encobrem o fundo bárbaro do homem estavam cedendo ante a certeza de que o inimigo estava ali de armas na mão para matar. E para ser morto também - pensou Hortêncio. Ambos - republicanos e maragatos - não perderiam a chance.
    Na madrugada de 2 de outubro, um sitiante foi encilhar cavalos perto de um laranjal nos arredores de São Francisco. Ignorava que ali havia sido cavada um trincheira dos defensores e pagou com a vida o desconhecimento. Seu fuzilamento que originou a sangueira. Luzardo e Hortêncio deram, em uníssono, a ordem de "ataque geral". E começou o medonho combate. A investida libertadora foi frontal e suicida. Logo os defensores, postados nas trincheiras, nas janelas, nos altos das casas, nos telhados, fizeram desabar sobre eles uma chuva de fogo que causou várias baixas. Certamente orientado por alguém de formação militar, o sistema defensivo- que compreendia obstáculos colocados nas embocaduras das ruas - obrigava os atacantes a investirem pelo meio ou invadirem casas de família para chegarem ao reduto principal, que era a praça da intendência.
    Brigavam filhos da mesma cidade e não há coisa mais odienta do que a rivalidade entre irmão... Batista Luzardo, de espada em punho, comandou a grande investida frontal da cavalaria para chegar à praça Acompanhava-o um camarada negro, de Alegrete, muito ativo, que encilhava e desencilhava seu cavalo e cozinhava para os dois. - Tinha fanatismo por mim- recorda Luzardo. - Cuidava das minhas coisas, preocupava-se com os riscos que eu corria e providenciava a minha alimentação. Quando acampávamos e preparava um assado, era comum guardar um pedaço na garupa e me oferecer horas depois, em marcha: "Coronel, eu tenho aqui um assadinho muito bom. E com farinha..." O coronel recomendava ao ajudante que não se expusesse. Mas São Francisco pareceu ao bom criolo uma ótima oportunidade "para dar alguns tirinhos". Os dois, Luzardo e ele, Vinham na primeira leva que ao grito de "carga" investiu contra os republicanos abrigados nas valas e trincheiras. De repente, três tiros sucessivos possivelmente partidos de um defensor de excelente pontaria, que teve tempo de fazer mira, acertaram o alvo! O primeiro tiro atingiu o guerrilheiro de Alegrete na cabeça; o segundo atingiu-lhe a carótida; o terceiro abriu um rombo do tamanho de uma laranja na testa do cavalo de Batista Luzardo. A queda dos dois homens e do animal foi simultânea.
    O chefe do Estado Maior da Coluna Honório Lemes, com agilidade insuspeita para sua compleição robusta, abrigo-se mais do que depressa por trás de sua montaria, e usou a carcaça à guisa de sua trincheira. A fuzilaria em sua direção era intensa: visavam aquele maragato de dragonas e lenço colorado, atirando contra ele do alto, dos lados e da frente. Ele conseguiu silenciar o atirador que o derrubara, com um tiro de revólver 45 que sacara logo depois da queda do seu cavalo. Partiu dele a ordem de avançar. E as centenas de homens foram ultrapassando os obstáculos, um a um, em meio ao alarido dos defensores, dos gritos das mulheres e das crianças precariamente abrigadas nas residências invadidas, dos gemidos agonizantes traçados a punhal ou a espada, fuzilados ou degolados sem quartel.
    O Dr. Carlos Gomes - o "covarde" de São Francisco para os críticos de São Vicente e de Santa Maria- era um leão que, de pé, a peito descoberto, distribuía munição para seus defensores nas ruas e os animava nas trincheiras, juncadas de cadáveres. Ele viu, no fundo de uma vala, o velho correligionário, Major Estêvão Brandão, cujo o braço que segurava a espada fora decepado de um talho pelo adversário. Deixemos que Antero continue: "Atacando nas ruas, nas esquinas, por detrás dos muros, de dentro das casas, já agora de cima dos telhados, o que restava dos defensores Heróicos foi obrigado a saltar das trincheiras, e procurou abrigo por trás dos troncos das árvores da praça e no edifício da prefeitura. E a resistência continuou.
    A casca de quase todos troncos ficou furada, esfiapada, rustida de balas, e os combatentes foram rolando, nos passeios e nos canteiros, feridos e mortos. Um último magote de homens atingiu a prefeitura e lá se entrincheirou. Ao alcança-la tombaram ainda muitos, entre eles o subdelegado do município, o valente João Manoel Marques." Foi aí que o famoso Cel. Pimba e o Major Álvaro Alves conseguiram que se rendessem garantindo-lhes a vida a custo, uma vez que alguns maragatos desejam sacrifica-los de qualquer maneira. Hortêncio Rodrigues e sua tropa, punhal na mão, eram de uma ferocidade espantosa. Para Luzardo, aquele foi o pior, o mais encarniçado, cruel e sangrento combate que presencio em toda sua existência.
    Coube ao chefe do Estado- Maior da coluna ordenar o recolhimento dos corpos dos mortos e dos feridos para o recinto da igreja principal. Foi quando Hortêncio, fogo nos olhos, vendo tudo vermelho, entrou no templo, mandando passar a faca nos que ainda estavam vivos. - Aí eu me meti, porque aquela gente não era os mercenários de Nepomuceno Saraiva-diz Luzardo.- Foi um custo, mas o Hortêncio me atendeu - aos demais ele não ligava. O General Honório não estava ali, de maneira que eu era o segundo chefe da coluna e tinha a meu favor os meus antecedentes e a minha conduta na tropa. Mas ele estava louco... E retorna ao velho assunto: - Sobre minha palavra de honra, nem no Poncho Verde, nem aí, nem em qualquer outra luta, participei de degolamentos. Nunca, nunca.
   Eu tinha outras responsabilidades, outra compreensão do que estava fazendo ali. E de quem eu era. Tenho para mim que o próprio Flores não acreditava muito nessa minha participação. Ele me respeitava, sim... ( Por volta de 1928, o jornalista Paulo Filho publicou no Correio da Manhã um artigo em que narrava um episódio que testemunhara pessoalmente. Uma feita , quando a Câmera dos Deputados ainda funcionava no edifício da Cadeia Velha, Paulo Filho se encontravam na Sala do Café conversando com vários deputados. Luzardo estava numa mesa com João Mangabeira, de quem era muito amigo. Flores, em outra, com vários parlamentares e mais o jornalista.
    De repente a mesa da Câmara convocou Batista Luzardo para a tribuna. Este saiu. Flores voltou-se então para a sua roda e disse: "Tenho paciência: eu vou ouvir o que esse camarada vai dizer, porque com este não se brinca: o que ele diz na tribuna reproduz aí fora."No artigo, que seria republicado três vezes ao longo de sua passagem pelo matutino carioca, Paulo Filho arremata com outra afirmação de Flores da Cunha sobre Luzardo: "Este foi um dos gaúchos bravos que conheci na minha vida...") Carlos Gomes morreu lutando, atingido por tiros de fuzil e depois apunhalado.
    Testemunhas oculares contaram a Antero Marques o seguinte sobre seus últimos momentos: "A casa da família do intendente estava situada na esquina da Praça Manoel Viana, junto de uma das escavações. No mais aceso da luta e em pleno tiroteio cerrado, percorria ele as trincheiras a animar seus companheiros, distribuindo-lhes munição. De vez em quando entrava em casa pela porta, que distava poucos metros do valo fundo, reunia os filhos pequenos e se abraçava com eles, chorando. De um jardim próximo, ao lado, os atacantes o observavam nas suas idas e vindas. E foi numa dessas vezes que os tiros o prostraram..." O grande brigador republicano, o mais brilhante dos combatentes situacionistas, o homem que verdadeiramente poderia passar a alguém o crédito da bravura ou a acusação de covardia, diria o seguinte sobre São Francisco: "Não foi sem profunda mágoa que, dia imediato, penetrei em São Francisco de Assis!
    Com a desolação estampada em todos os semblantes pude, em inspeção direta, certificar-me das conseqüências da sangrentíssima luta ali travada." "O antigo e pequeno povoado, por muitos chamado São Chico, apresentava ainda o aspecto tétrico da carnificina de que fora cenário! O sangue espadanara por toda parte: manchando trincheiras, calçadas, portas, telhados das casas e o próprio Salão da Intendência. Ali morreram, como bravos, o intendente municipal, Dr. Carlos Gomes; o delegado de polícia, Estevão Brandão e o subdelegado Marques. Houve ainda muitas outras vítimas, de parte a parte, mas em menor número do lado dos rebeldes."
    A reduzida guarnição republicana estava no dever de, sem desonra, retirar em ordem para Santiago ou Jaguari, Quando teve conhecimento de que os revolucionários começavam a atravessar o Ibicuí. Preferiu, entretanto, combater e sucumbir as armas dos rebeldes! Já rendi-lhe, eu renovo agora, o preito de minha admiração muita sincera baldado mais heróico esforço ficou como símbolo da impavidez e do sacrifício!" Autor dos conceitos acima: José Antônio da Cunha, fogoso, brioso,corajoso, crítico de autoridade sobre bravura ou covardia, e mesmo assim comandante inteligente que sabia a hora de atacar e retirar, sem desonra... São Francisco não deixou de ser uma vitória pesada para a coluna Honório Lemes.
    Aníbal Cassal, com exagero, chega a dizer que os maragatos perderam 100 homens, o que, evidentemente, não corresponde aos fatos, que apontam o total de 120 pra ambos os contendores, com grande predomínio, nesse cômputo, dos derrotados. Nas proximidades do Arroio Santa Rosa,Honório recebeu a incorporação de mais de 200 revolucionários missioneiros, sob o comando do Coronel Mario Garcia, de Santiago do Boqueirão, seguindo depois para São Luiz Gonzaga, "cidade que atingiu mas não ocupou por ter havido oposição do comandante da guarnição federal"( -versão de Artur Ferreira Filho.
    Vejamos agora a versão libertadora, através de Antero Marques: "Depois do combate de São Francisco, marcharam os revolucionários incorporados pela estrada geral desde o Inhacundá a Santiago do Boqueirão. Adiante desta localidade, no Capão do Mandiju, Honório divide a coluna em duas partes- uma, comandada pelo velho Cel. Rafael Giordano Filho, passou a ponte Igoariaçá, atravessou o campo nacional de São Gabrielzinho e acampou do outro lado da ponte do Icamaquã. Quando descia a ponte do Igoariaçá, avistou um piquete governista, comandado por Estevão Rocha e constituído por gente de São Borja: não houve tiroteio." "A parte da coluna sob o comando de Giordano esteve acampada três dias sobre a ponte do Icamaquã. Faziam a ligação com a outra parte da coluna um médico militar e o Capitão Ruy Zubaran, da guarnição da Fazenda Nacional, o qual esteve no acampamento levando consigo 3000 tiros." "Esta segunda parte da coluna- uns 600 homens aproximadamente -, ao atingir a estrada, que desse de São Luiz a São Borja, teve notícias de que o Corpo Provisório dessa primeira cidade ( uns 300 homens ) já tinha passado para atacar os revolucionários acampados na ponte do Icamaquã.
    Honório seguiu então o rastro desse corpo inimigo, mandando prevenir disso os companheiros pelo referido médico da guarnição de São Gabrielzinho, deixando a força republicana entre dois fogos, quando estendeu linha para atacar: o Provisório debandou sem um tiro, atirando-se à água no Piratini, cheio, perecendo numerosos soldados afogados. Houve, assim, junção das duas partes da coluna, as quais ficaram ali acampadas dois dias. Daí marchou até a ponte do Piratini, onde ficou três dias, ao fim dos quais entrou em São Luiz a convite da guarnição federal, que se tinha revoltado contra o seu comandante, prendendo-o." "A coluna desfilou em o parada pela cidade: falaram nessa ocasião vários oradores, entre os quais Batista Luzardo, Barros Cassal e Heitor Guimarães, procurando obstar a adesão da guarnição militar federal, que era franca." Barros Cassal, em sua narrativa, nos da outros pormenores preciosos do episódio de São Luis: o vigário local procurou a coluna acampada n pública tudo exposto ao apetite voraz dos revolucionários." A resposta do maragato foi incisiva: as recomendações do Governo Federal eram determinantes quando à entrega das cidades que se encontrassem em condições semelhantes a de São Luis. E que a Coluna Lemes era constituída de homens dignos e patriotas, e não de mercenários, como os de Nepomuceno Saraiva, com quem o cel. Azambuja se encontra dias antes "ágape".
    Essa resposta altiva foi dada em presença dos seguintes oficiais: Tenentes Reichneider, Azambuja Brilhante e Aníbal Benévolo, que apoiaram o revolucionário, reconhecendo à saída, que o coronel Netto exorbitara de suas atribuições. A soldadesca, vendo passar a representação maragata, prorrompeu em aplausos, o que animou a coluna a entrar na cidade, na manhã seguinte, em ordem e rigorosa disciplina, indo acampar nas imediações da invernada militar. Honório comunicara o sucedido ao Ministro da Guerra, General Setembrino de Carvalho, a esse tempo já no sul, em missão pacificadora confiada por Bernardes. O ilustre chefe militar, em resposta, passou o seguinte telegrama: "General Honório Lemes,onde estiver. Cumprimento prezado e distinto patrício pela sua atuação na campanha, valente na ação e magnânimo na vitória. Tomei conhecimento situação aí. Continue evitando qualquer interferência de elementos do Exército na revolução. Cordiais saudações."
    Setembrino, simpático à causa libertadora por índole e por vez por autorização do presidente da República dava a entrever a Honório feliz desfecho aos revolucionários. Por essa razão é que, com habilidade, Batista Luzardo e seus companheiros demoveram o regimento de São Luis- que a esta altura já se achava com todos seus apetrechos no acampamento revolucionário, pronto para engajar - do seu intento adesista.
    A coluna se via obrigada a dispensar novos simpatizantes, principalmente do Exército, pois- compreendia - isso mudaria o aspecto político da Revolução, ampliando-a, talvez prematuramente, a âmbito nacional e alimentando blocos inconformistas que ameaçavam rebentar em vários Estados. De São Luis, onde entrara a 5 de outubro de 1923, Honório seguira em direção a São Borja, atravessando os belos campos de Itaroquém. Pretendia Honório bater forças sobre o comando do Dr. Getúlio Vargas, que estacionavam sobre a ponte do rio Piratini, nas proximidades de São Borja. Esse objetivo foi cumprido à risca, pois as forças foram completamente dispersadas, quase sem combater.
    Narra Aníbal Barros Cassal: "Diante do inopinado ataque desfechados nas duas cabeceiras da ponte, pois Honório destacara a brigada do Cel. Vergílio Viana para, cruzando o rio na retaguarda do inimigo, cercá-lo e atacá-lo ao mesmo tempo da investida do grosso revolucionário, a força borgista mau teve tempo de correr em completo desbarato, desordenadamente, fugindo em todas as direções. Entre os numerosos prisioneiros havia um tenente do Corpo Provisório de São Luis, que retiramos d'água, agarrado que estava nuns igarapés, com risco de afogar-se. Depois de vestir roupas enxutas, esclareceu- nos na inquirição, que sua força se compunha de dois batalhões, de São Luis e de São Borja." Houve um episódio- de certa maneira vexatório- nessa ocasião que a força borgista foi dispersada: a Cruz Vermelha, que se apressara em percorrer o campo de batalha, não encontrou um morto ou um ferido para recolher.
   Fonte: Batista Luzardo, O Último Caudilho, Glauco Carneiro, Ed. Nova Fronteira, 1977.
 

Flores da Cunha

       São Francisco de Assis
       Não foi sem profunda mágoa que de imediato, penetrei em São Francisco de Assis! Com a desolação estampada em todos os semblantes pude, inspeção direta, certificar-me das conseqüências a sangretíssima luta ali travada.
    O antigo e pequeno povoado, por muitos chamado de São Chico, apresentava ainda o aspecto tétrico da carnificina que fora cenário! O sangue espadanara por toda a parte: manchando trincheiras, calçadas, portas, telhados das casas e o próprio salão da Intendência! Ali morreram, como bravos, o intendente municipal, Dr. Carlos Gomes; o delegado de polícia, Estevão Brandão e o Sub delegado Marques. Houve, ainda, outras vítimas, de parte a parte, mas em menor número do lado dos rebeldes.
    A reduzida guarnição republicana estava no dever de, sem desonra, retirar em ordem para Santiago ou Jaguari, quando teve conhecimento de que os revolucionários começavam a atravessar o Ibicuí. Preferiu entretanto, combater e sucumbir às armas dos rebeldes! Já rendi-lhe, e o renovo agora, o preito de minha admiração muito sincera: baldado, mas heróico esforço, ficou com símbolo de impavidez e sacrifício! Não pude permanecer mais tempo na contemplação do espetáculo doloroso: afastei-me e fui acampar do outro lado do Inhacundá, pouco além da povoação! Ordenei, dali, a meu irmão, coronel Chico Flores, assumisse o comando do grosso e da retaguarda da coluna e marchasse e se incorporasse a mim do rumo dos limites dos Município de São Francisco de Assis e Santiago. Levantamos acampamento da fazenda da família Vasconcellos e avançamos em demanda das margens do Itu.
    No segundo dia de marcha,atingimos o Passo do Farinheiro. Mandei provar o nado e verificar se dava passagem. Encarregou-se disso, comigo ali presente, o Capitão Mário Paniagua, cujo o cavalo, logo cair nágua adernou e foi arrastado pela correnteza. Tive de desistir da tentativa e procurar, mais acima, os Três Passos, por onde atravessei sem dificuldade. Nesse lugar se nos juntaram os contingentes há dias lançados para a frentee o grosso da coluna, atrasado na marcha, pelas difíceis condições em que teve de transpor o Ibicuí. Vieram igualmente, nessa altura, unir-se a nós, vários grupos de correligionários, orientados: o de São Francisco de Assis, pelo Dr. Ramão Trois; o de São Vicente, pelo Dr. Armando Vitorino Prates, e o de Santiago, pelo capitão Mateus Tarragó. Temendo afastar-me excessivamente das costas do rio Uruguai, por onde poderiam os rebeldes escapar, esgueirando-se entre mim e as cidades de São Borja e Itaqui, ladeei, pela esquerda, a serra do Iguariaçá e rumei para o capão do Inhandiju. Ali recebi um chasque do Dr. Protásio Vargas. Era o tenente Falkemback, que me trazia a correspondência e notícias do adversário. Informou-me ainda que o corpo provisório do coronel Raimundo Gomes Neto havia sido batido pela gente de Honório Lemes e acurralado entre os rios Camaquã e Uruguai, em cujas águas perdera muitos homens.
    Aproveitei-me do portador para enviar ao Doutor Borges de Medeiros longo telegrama em que, entre outras providências, pedia-lhe a de mandar guarnecer a descida da região serrana, de Tupaceretã a São Pedro, pois tinha a esperança de, antes de uma semana, forçar o inimigo a combater ou abandonar aquela região. Ao Dr. Protásio Vargas agradeci os lisonjeiros termos de sua carta e indiquei o caminho a seguir pela Brigada de Oeste. Sabedor, pelas comunicações acabadas de receber, de que o marechal Setembrino, Ministro da Guerra, chegando ao Rio Grande do Sul, marcara a Honório Lemes uma conferência a se realizar em Santo Ângelo, tracei logo o meu plano. Daí em diante, o itinerário seria este: deixar os rios Camaquã e Itacurubi à esquerda, atravessar o Piratinim, no Passo da Guerreira, e encaminhar-me ao local marcado para a entrevista ministerial, que eu estava firmemente disposto a evitar ou a interromper! Nesse sentido, nenhuma sugestão tinha-me sido feita.
    Conhecendo, porém, suficientemente, os pródromos do movimento revolucionário, podia dela prescindir para, por mim mesmo, deliberar e agir! Valendo-me de bons vaqueanos, meti mãos à obra para a realização do plano. De início, determinei ao major Laurindo Ramos, comandante interindo do 5º corpo, na ausência do Dr. Osvaldo Aranha que, enfermo, seguira para Uruguaiana, fosse com cem homens até a ponte do Piratinim, na estrada que liga São Borja a São Luiz. Natural daquelas paragens, estava naturalmente indicado para a missão. Levava ordem expressa de fazer uma simples demonstração, sem combater e, mesmo, forçar a passagem da ponte.
    Deveria, ao anoitecer, retirar-se e vir reincorporar-se à coluna. Queria desse modo, mascarar o movimento das forças. O expediente teve o êxito esperado: Honório Lemes, na convicção de que o nosso propósito, para atacá-lo, era o de utilizar aquela estrada, pôs fogo à ponte! Quando atravessava o Passo da Guerreira, recebi, da retaguarda, um aviso de que chegara à coluna o Dr. Leite Veloso, médico militar servindo na guarnição de São Luiz. Desmontei e fiquei aguardando-o. Não tardou muito em aparecer. Ainda que nascido no Norte, casara-se em Uruguaiana e adotara, com facilidade, os nossos costumes. Perfeito campeiro, apresentou-se bem montado e vestido de trajes gaúchos.
    Fora chamado para atender a um doente daquelas redondezas e voltava, nessa mesma tarde, para São Luiz. Informou-me, lealmente, que, na véspera, a gente de Honório Lemes estava ainda acampada entre aquela cidade e a ponte já referida. Perguntei-lhe, diante disso, se do lugar onde estávamos não havia um caminho mais curto para ir a São Luiz, sem necessidade de fazer o percurso por São Miguel? Respondeu-me existir a estrada da Laranja Azeda, contornando as ruínas de São Miguel pela direita e rumando para o arroio Santa Bárbara. Parecendo excelente a informação, deixei-o ali mesmo almoçando o meu escasso farnel (rabada assada com o couro, envolta em farinha de mandioca) e galopei para fazer a vanguarda desandar o caminho e endereçar-se para o atalho. Foi um grande erro, como se verá mais adiante, que aquele bom amigo, na melhor das intenções, nos fez cometer!
   Fonte: A Campanha de 23, Flores da Cunha, Ed. Brasília, 1979.

La Hire Guerra

       Na audiência de hoje do Juiz da Comarca o Dr. La Hire Guerra fez inserir no protocolo o seguinte: Pelo Dr. Juiz da Comarca foi dito que ficasse consignado nos protocolos da presente audiência, um voto de intensíssimo pesar pela morte do Dr. Carlos Oliveira Gomes e do Major Estevão Brandão, intendente e delegado de polícia de São Francisco de Assis, termo da Comarca, assim como pelos companheiros que juntamente com ele pereceram, todos massacrados na ocasião de defenderem aquela vila do nefando assalto de hordas sediciosas.
    E que esta sincera expressão de dor pelo desaparecimento daquelas dignas e excelentes autoridades, fosse ao mesmo tempo uma homenagem de entusiástica admiração pela descomunal heroicidade e bravura demonstrada por todos esses abnegados defensores da ordem e da legalidade, que resolutamente se voltaram a um sacrifício certo e a verdadeiro martírio, enfrentando inabaláveis, um inimigo vinte vezes mais numeroso em holocausto ao puro sentimento do dever cívico e patriótico.
    Que ficasse também consignado aqui a idéia de se render a esses heróis beneméritos um preito de natureza imperecível, fazendo-se inscrever os seus nomes par espelho da posteridade, em monumento erguido na praça pública de São Francisco de Assis, teatro dessa exemplar e memorada façanha."
Jornal: "A Federação", 16/10/1923 Pg.: 3 Pág 164
   Fonte: São Francisco de Assis no seu Primeiro Centenário de Emancipação Política-Econômica-Administrativa 1884 - 1984. Hugo - Iolete - Renato, Ed.NBS.
   Anotações: Quatro anos depois Tyrteu Rocha Vianna dedica o livro Saco de Viagem a este Juiz.
 
 
 
 

Antero Marques


 
 

Osório Santana Figueiredo

       Tomada de São Francisco de Assis
       Os lances épicos de grandeza moral, os rasgos de herísmo individual e o desprendimento viril de alguns, que transcedem do comum para o extraordinário, são fenômenos do espírito, revelados por homens singulares em atos de renúncia pessoal.
    Foi o que aconteceu quando uma força revolucionária, numericamente superior cercou e atacou a então vila de São Francisco de Assis, convertida num baluarte governista e defendida por um punhado de bravos, tendo à frente o valoroso e intrépido intendente Dr. Carlos de Oliveira Gomes.
    Em abril de 1923, o coronel Hotêncio Rodrigues, com uma força rebelde de 300 homens, invadiu aquele município, mas antes que chegasse as portas da vila o intendente Carlos Gomes retirou-se com a pequena guarnição que não ia além de vinte homens, temendo represálias. Dirigiu-se a São Vicente e Santa Maria em busca de auxílios, mas não foi bem recebido e nem compreendido pelos seus correlegionários. Ao contrário. Foi ridicularizado, menosprezado e até acusado de covarde, porque diziam que que ele teria de ter ficado, resistido, peleado. Os da oposição local também fizeram coro com os governistas, acoimando-o de pusilânime e fraco.
    Ao regressar a São Francisco, constrangido, abalado, mas consciente de ter agido certo, reassumiu a Intendência, quando teria dito: "- passar pelo que passei, daqui jamais retirarei". E preparou a resistência. Mandou cavar valos, simulacros de trincheiras, nas esquinas da praça e a frente da Intendência (Prefeitura). Ao todo dezesseis. E reuniu o quanto pôde de homens dispostos a uma luta temerária de vida e morte. Não conseguiu 80 combatentes, armados com setenta e poucos fuzis velhos, descalibrados, com escassa munição. E aguardou o inimigo com a firme decisão de defender São Francisco de Assis até a última gota de sangue, de cuja disposição estavam também imbuídos todos os seus homens, cada qual mais destemido e corajoso.

       O Ataque
       No dia dois de outubro de 1923, a vila vinha amanhecendo cercada por uma força calculada em 600 homens, sob o comando do impetuoso coronel Hortêncio Rodrigues, incluindo a brigada do coronel Otaviano Fernandes, de Dom Pedrito, e mais o "Regimento Vasco Alves" do major Aldemar Alves Pereira.
    Hortêncio que enviara à noite um ultimatum ao Dr. Carlos Gomes, aguardava a resposta até aquelas horas, quando o azar de um cavalo xucro, disparando encilhado da banda dos sitiados, pôs em polvorosa as linhas rebeldes que, julgando um ataque vindo do lado da Intendência abriram fogo. Ao descobrirem o engano já era tarde. O tiroteio estava cerrado. Os que avançavam fuzilavam com arrojo os defensores, e estes respondiam com o mesmo denodo.
   Aos poucos a luta foi tomando caráter de ferocidade e generalizou-se com rasgos de bravura inexcedíveis; gritos, ameaças, lamentos, xingações, vozes de comando, entre o delírio arrebatador de uma peleia feroz e cruel.
   O anel de fogo foi se fechando em torno dos valentes do intrépido Intendente.
   O combate era desigual para os defensores da vila, mas igualva-se em coragem e ardor dos combatentes audazes. Combatiam de rua em rua, de casa em casa, de frente a frente. Os maragatos avançavam por cima dos telhados, de onde alvejavam com tiros certeiros os pica-paus do Dr. Carlos que foram recuando, peleando, atirando, tombando. Muitos bravos tiveram de ser desalojados de suas trincheiras a arma branca, a facão, a adaga, numa carnificina medonha. Em uma delas morreu o velho major Estevão Brandão, que teve um braço decepado quando manejava a espada. O terreno foi conquistado palmo a palmo dos que vendiam caro a defesa de seus postos de honra.
   As ruas foram ficando juncadas de cadáveres e de feridos, uns por cima dos outros, dos que recuavam, dos que avançavam matando, morrendo como feras ensandecidas, que só no ato de matar satisfazem o desejo reprimido de vingança. Assim recuaram até a Intendência, seu reduto final, onde encurralaram. Ali ainda brigaram, esbanjando coragem, num despedício injudtificável de tantas e tão preciosas vidas humanas.
    Após 2 horas e 40 minutos de combate cerrado, foi silenciando a resistência dos destemidos defensores da valorosa São Francisco de Assis. Apenas um pequeno grupo se refugiara na Intendência e organizara para prosseguir a luta. Já havia tombado o Dr. Carlos Gomes em momento que distribia munição e animava seus homens no ardor da peleja. Caia tamnbém o arrojado subdelegado do município João Manoel Marques. Exauria-se a resistência. Dentro da Prefeitura, uns poucos, acuados, cercados, ameaçados, rendiam-se afinal. Foi verdadeiramente um episódio patético e único, dos mais chocantes de quantos registra a história rio-grandense, pelo barbarismo da ação.
   Mesmo distante, nimguém pode negar o que de horror foi esse combate. Sabe-se por tradição oral que a força defensora foi quase dizimada e o número de prisioneiros reduzidos em vista das perdas. Entre os mortos revolucionários, citam ainda, o capitão Manoel Dornelles da Cunha e o tenente Teleforo Riter, e como registrou o Dr. Antero Marques, o coronel Trajano Rodrigues Vargas.

    O Herói Esquecido
   A atitude heróica do Dr. Carlos Gomes, caindo em holocausto ao dever da defesa da sua comuna, é o mais eloqüente ato de renúncia e estoicismo, que clama aos céus e ao coração da sua gente a restauração da sua memória sepultada no tempo. Foi um bravo entre os mais bravos.
   Na história dos povos não é abundante fatos desta natureza, onde a condução e o sentimento do dever, com desprezo a morte, são postos à prova, como exemplos marcantes na constelação de valores. O homem no seu ser impressionista, sempre foi o mesmo em todas as épocas. Sentimento e valor, abnegação e sacrifício, generosidade e pudor, são atributos imperecíveis que ornam o caráter humano na saga da humanidade.
   Distante nas eras vamos encontrar similitude com Leônidas, rei de Esparta, imolando-se heroicamente com os seus 300 legendários no desfiladeiro das Termópilas para cobrir a retirada dos exércitos gregos. Na frase que deixou, paira uma sentença ditada a todas civilizações da terra:
   "Viandante, vai dizer a Esparta que nós aqui morremos para cumprir sua Leis".
   O Dr. Carlos Gomes, dentista, culto, inteligente e de trato amável, intendente (prefeito) borgista, foi um homem destemeroso e de coragem espartana. Também firmou sua sentença de morte em defesa do compromisso extremo: "Passar pelo que passei, daqui jamais retirarei". E não se retirou. E também como Leônidas ele teve um Efialtes que o traira, conduzindo Hidarnes do exército de Xerxes, por um caminho oculto contornando suas posições e atacando-o pela retaguarda. Em São Francisco de Assis, alguns assisistas foram ao encontro de Hortêncio para indicar-lhe as trincheiras do Intendente, assim como para ensinar-lhe um caminho entre matos, não guarnecido, nos fundos da Intendência. Por ele atacou o coronel Maneco Cunha com seus homens, fechando o cerco e obrigando os legalistas a capitulação.
    Considerando as épocas e as circuntâncias proporcionada desde os exércitos numerosos, do destacamento de fronteiras, do general e do tenente até o civil comandante, vamos encontrar uma fiel semelhança na virilidade do homem e na coincidência determinante de um holocausto ditado pelo patriotismo, no cumprimento do dever em exaltação a honra, que estava acima da própria vida O jornal "Correio do Pampa" (Diário Republicano) editado em São Gabriel, de 4 de outubro de 1923, publicou um artigo dramático, com o título: "Os 70 Bravos de São Francisco de Assis", não obstante os rancores daqueles período de beligerância interna, extremamente partidarista, tece uma comovente glorificação aos vencidos. Recolhemos alguns tópicos: "Invencíveis republicanos! Invencíveis companheiros de São Francisco! Espartanos de São Francisco, briosos de abnegação incomparável, queremos que a nossa dor se desate em lágrimas que orvalhem sentidamente a tumba que se abriu aos restos de heróis! E o fazemos daqui com respeito e profunda mágoa.
    Não se apagará jamais para os republicanos castilhistas o exemplo de martírio dos 70 bravos de São Francisco de Assis resumidos na figura estóica do Dr. Carlos Gomes, intendente municipal, o chefe daquele pujilo de bravos que preferiu a morte a capitulação.
   Glórias aos heróis!
   O heroísmo dos combatentes de São Francisco de Assis não é uma lenda, uma invencionisse, nem uma mera fantasia criada pela imaginação doentia de alguns. É um fato acontecido que a história registra e merece ser lembrado, como exemplo às gerações atuais e para reflexão do que pode a paixão política quando se inflama e explode numa luta inútil e desnecessária.
   Um povo que esquece seus heróis não merece a reverência dos seus pósteros, nem a glorificação do seu passado.
   Fonte: As Revoluções da República, Osório Santana Figueiredo. Ed. Pallotti, 1995.

 
Valdreani de Carvalho Porto

   A Chegada dos Revolucionários
   Ocorreu, em final de setembro, uma de suas maiores façanhas na Revolução de 1923 conhecida como "Volta da Serra", desempenhada pelo general Honório Lemes quando, em pleno tiroteio, depois de ter saído da Serra do Caverá, passou para a margem direita do rio Ibicuí, local conhecido como Jacaquá, no Passo do Catarina, fugindo de tropas republicanas, comandadas por Flores da Cunha. Antero Marques descreve detalhadamente essa passagem:
    "...passou, assim, a coluna para a margem direita do Ibicuí, no "Passo do Catarina", em Jacaquá. Vinha de escapada e conseguiu isso, iludindo a vigilância do coronel Flores da Cunha e de outras forças do Governo. Passou tiroteando e manteve à sua retaguarda, no passo para sustar na marcha do inimigo, enquanto ganhava distância uma força apreciável..." da obra Mensagem a poucos.
   Após essa passagem do Ibicuí, que ocorreu no dia 29 de setembro, Honório com um grupo de mais ou menos cem homens, ficaram acampados na propriedade rural de Henrique Gregório Haigert, pai do coronel Pimba, do capitão João Virgílio Haigert e do tenente Amarino Haigert, enquanto o restante, pouco mais de 200 homens, ficou sob o comando do coronel Hortêncio Rodrigues e seguiu em direção a vila de São Francisco de Assis, distante uns 19 km do Passo do Catarina. O senhor Anany Haigert, filho mais velho do coronel Pimba, contou que seu pai, no dia anterior ao combate, passou em sua casa para dizer que estavam acampados por perto e que se preparassem para qualquer coisa, e, ainda relatou que naquela ocasião, do lado de fora da casa, alguém socava no pilão e sua mãe mandou que essa pessoa entrasse, pois temia uma bala perdida.
   Desta vez o Intendente da vila, Dr. Carlos Gomes, ao saber da aproximação da tropa revolucionária, embora aconselhado a retirar-se para Santiago ou Jaguari, resolveu preparar-se para enfrentá-la, manifestando que desta vez ficaria, porque não queria sofrer mais humilhações e que mostraria para o pessoal de São Vicente do Sul e Santa Maria quem era o covarde. Com pouco mais de 80 homens, mal armados e mal municiados, com trincheiras em forma de meia lua que foram cavadas ao correr das ruas e contornando a praça (localizada em frente à Intendência, com trincheiras de sacos de areia e cercas de arame farpado, o Intendente e seus companheiros armaram-se como puderam.
   Segundo o Dr. Manoel Viana Gomes, filho do Intendente Carlos Gomes, os republicanos assisenses não tiveram um número maior de combatentes devido a falta de armas, pois o seu próprio pai distribuía munição completamente desarmado.
   Apesar do pouco armamento que possuíam, na noite do dia 1º de outubro,véspera do combate, ouviam-se tiros na Intendência, pois os republicanos assisenses estavam testando suas armas e munições, segundo relato da senhora Esmeralda Estivalet Cáceres, que morava, na época, próximo a praça, complementou dizendo que era um barulho horrível, como se estivessem atirando em latas.
    Assim, os republicanos assisenses ficaram a espera do inimigo bastante conhecido, pois ambos nasceram no mesmo lugar, cresceram brincando sob o mesmo chão, talvez até juntos em alguns casos, mas a política tem suas artimanhas, suas armadilhas, seus encantos, conseguindo inclusive isso, a rivalidade, o ódio, entre os filhos da mesma terra, levando-os, inclusive, à morte se preciso fosse em defesa de seus ideais. Como disse o Sr. Basileu Estivalet: "A política é uma coisa triste e apaixonante".
   Os revolucionários também procuravam se armar para eventual combate. Para tanto, o senhor Manoel Grenalvo Rodrigues Rosback, ordenança e sobrinho do coronel Hortêncio Rodrigues (para quem deixou todos os seus objetos pessoais como: fotos, álbum dos bandoleiros, arreios, faca de prata e até o "copo de arreio", copo de guampa, estes últimos usados durante a revolução), foi mandado ao comércio local com o fim de arrematar tesouras de tosquia e de costura para fazerem lanças, pois as armas que tinham eram poucas e a munição menos ainda. Outros tipos de lança eram confeccionadas por um ferreiro que trabalhava do outro lado do arroio Inhacundá.
    A importância desse combate já era reconhecida por alguns historiadores como por exemplo, Arthur Ferreira Filho que, ao mesmo tempo que homenageia os defensores republicanos, descreve em poucas linhas o que houve aquela manhã de 02 de outubro de 1923.
   "Em fins de setembro, o caudilho do Caverá, a quem Flores da Cunha não dava quartel, empreendeu uma incursão pela zona missioneira, transpondo Ibicuí no Passo do Catarino. Sua vanguarda comandada pelo coronel Hortêncio Rodrigues, atacou a  vila de São Francisco de Assis, guarnecida apenas pela polícia municipal. O intendente desse município Dr. Carlos Gomes, tendo reunido alguns correligionários, ofereceu aos atacantes uma resistência espartana, digna de figurar entre os mais belos feitos da história rio-grandense", na obra História Geral do Rio Grande do Sul.
    Assim como o Intendente e seus companheiros ficaram sabendo da proximação da força revolucionária toda a população assisense também ficou a par do fato, o que causou pavor, medo, desespero e pânico nos moradores da vila, pois além do risco que corriam, muitos deles tinham seus familiares comprometidos, fosse com as forças republicanas, fosse com as revolucionárias. Mães e esposas faziam de tudo o que podiam para convencer seus filhos e esposos, que ainda não estavam envolvidos na revolução, a viajar para os países ou estados vizinhos, ou simplesmente se esconder, por algum tempo, ao menos enquanto algumas das forças estivesse por perto, pois se fossem companheiros, poderiam ser convocados a participar dessa e caso fossem inimigos, tudo poderia acontecer. Desta forma, era comum quando as tropas aproximavam-se os filhos esconderem-se nos matos, "campo a fora", levando um pouco de comida e seus melhores cavalos para evitar que os levassem e após a passagem da tropa eles voltavam as suas tarefas cotidianas, porém preparados para esconderem novamente.
   Era comum pontos comerciais serem atacados, principalmente os de  mantimentos comestíveis, por ambos os lados. A senhora Edelweis Carvalho Cáceres contou que, durante o combate de São Francisco de Assis, seu pai ficou em Porto Alegre e sua loja, na rua 13 de janeiro, permaneceu fechada assim como todo o comércio. O senhor Leopoldino Cidade relatou que o seu cunhado Newton Leitão gerenciava o Banco Nacional do Comércio, na época, e por temer que os revolucionários tentassem apropriar-se do dinheiro do banco, entregou as chaves da agência a sua família que enterrou-as no galinheiro e de lá somente foram retiradas depois que a situação normalizou-se.
    Algum tempo depois de ter atravessado o Passo do Catarina, o coronel Hortêncio Rodrigues, juntamente com o coronel Otaviano Fernandes de Dom Pedrito, e com o coronel Batista Luzardo de Uruguaiana, mandaram o ultimatum para o Intendente e sua pequena força dizendo para se retirarem, pois eles iriam tomar a vila.
   O ultimatum foi levado por Dedé Ribeiro conhecido por Zêra Ribeiro, que, na tarde anterior, quando consertava a rede de fios da telefônica local (que era de seu pai), na estrada do Jacaquá, no lugar chamado "Os Apertados", foi preso pelos revolucionários. Outro jovem assisense, Franklin Bastos de Carvalho, também foi preso pelos rebeldes neste local. Enquanto Zêra Ribeiro dirigiu-se até a vila cumprir o que lhe tinha sido destinado, Franklin acabou ficando sob os cuidados
dos revolucionários e só foi solto após o final do combate, sem que nada de mal lhe tivesse acontecido. Sua mãe, ao saber do ocorrido com o filho, sentiu-se mal e desmaiva a todo instante.
    Apesar da decisão do Intendente, a maioria das autoridades assisenses estava pensando na possibilidade de se renderem e aguardavam o amanhecer para que o emissário dos revolucionários, Zêra Ribeiro, levasse a resposta, que ainda não estava decidida.
   Mas o que era temido aconteceu, contam que, de repente, um forte barulho, um bater de cascos veio em direção a uma das trincheiras causando grande susto aos que nela estavam posicionados. Imaginaram que fosse o inimigo, alguém disparou o primeiro tiro. É claro que o adversário respondeu da mesma forma e assim teve início o combate.
   Aproximava-se das seis horas da manhã e ali travou-se um combate por de duas horas e meia, considerado um dos mais violentos por Glauco Carneiro, quando disse:
   "Estava para acontecer, no novo teatro de operações a batalha mais pungente de 1923.".
   Batista Luzardo declarou o que presenciou: "E as centenas de homens foram ultrapassando os obstáculos um a um, em meio a alarido dos defensores, dos gritos das mulheres e das crianças precariamente abrigadas nas residências invadidas, dos gemidos dos agonizantes traçados a punhal ou a espada, fuzilados ou degolados sem quartel.".
    Depois de dado o primeiro tiro, na manhã do dia 02 de outubro de 1923, a vila de São Francisco de Assis virou um cenário de guerra, onde só o que se
ouvia eram gritos, tropel de cascos de cavalos, estouro das espadas e estampido das balas, que segundo um morador, o senhor Tarquinio Azzolin, eram balas explosivas, (novidade na época, assim como as metralhadoras).
   Diante de todo aquele horror, os moradores da vila permaneciam dentro de casa e, enquanto os adultos rezavam e faziam promessas, as crianças, sem entender exatamente o que estava acontecendo, ficavam ajoelhadas ao lado de suas mães ou deitadas no chão, obedecendo-as. Outras, no entanto, aproveitavam para, sorrateiramente, fazer o que não lhes era permitido em dias normais, como por exemplo, esconderem-se na despensa para comerem pedras de açúcar (açúcar usina) como fazia o senhor Leopoldino Cidade e seu irmão Ênio.

Fonte:São Francisco de Assis, Palco de um Combate, Valdreani de Carvalho Porto, Ed.Grafoeste, 2000.

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