Contestado - A Guerra do Paraíso
Um morto
comandou uma das guerrilhas mais importantes da história do Brasil
por mais de quatro anos, de 1912 a 1916. Numa região disputada por
Santa Catarina e pelo Paraná (o Contestado), milhares de jagunços
obedeciam as suas ordens, que vinham dos ''céus'', e chegaram a
dominar 25 mil km2 - quase a área do Estado de Alagoas -, instalando
poderosos quartéis-generais. Matavam e morriam em nome de Deus e
da redenção final; queriam o paraíso na terra. Tiveram,
porém, de enfrentar 80% do Exército brasileiro. E, pela primeira
vez na América Latina, empregou-se a aviação para
matar pessoas. Eram jagunços corajosos. Enfrentavam os soldados
de peito aberto; preferiam lutar com espada ou faca, corpo a corpo. Não
tinham medo de ficar em minoria: acreditavam que, como estava previsto,
exércitos de anjos viriam ajudá-los. As derrotas não
eram lamentadas. Apenas achavam que não tinham tido a fé
necessária para vencer a batalha. Não temiam a morte. Talvez
nem mesmo acreditassern que ela existia. Aqueles que morressem continuariam
com vida. Passariam para o lado do "monge" José Maria, seu líder
e enviado de Deus.
Miguel
Lucena de Boaventura, o "monge" José Maria, foi morto em setembro
de 1912, pelas forças militares comandadas pelo capitão João
Gualberto, no primeiro combate com os revoltosos. Mas quase ninguém
ficou triste com a morte do "monge". Em sua profecia, isto estava previsto.
Passado um ano de sua partida, voltaria. Tanto assim que sobre seu corpo
foram colocadas apenas algumas pedras. Até 1916, quando essa guerra
santa acabou, o "monge" não tinha voltado.
Canudos
do Sul
Era o fim
de mais um movimento messiânico no Brasil, algo comum em nossa história,
presente desde o descobrimento. Até os índios tinham essas
visões místicas. Os guaranis, por exemplo, estavam convictos
de que chegaria o dia em que os brancos seriam seus escravos. De todos,
o movimento que mais sobressaiu foi o de Canudos, liderado por Antônio
Conselheiro, no Nordeste. Muitos historiadores acham que esse prestigio
histórico precisa ser revisto. O Contestado, segundo eles, foi muito
mais importante, uma batalha mais árdua; houve mais de 20 mil mortos.
Apenas não teve como narrador o gênio de Euclides da Cunha.
O assunto apenas ganhou maior notoriedade com o filme
A guerra dos pelados,
de Sílvio Back, um especialista do Contestado.
Como Antônio
Conselheiro, o "monge" José Maria, desertor do Exército e
processado por ter seduzido uma menor, encontrou no sertão campo
fértil para sua pregação mística. Havia o abandono,
o desespero. Alguns poucos latifundiários dominavam as terras de
ervais, e só. Mais que isso, o Governo Federal concedia terras a
grupos de colonizadores estrangeiros, desalojando o sertanejo. Uma estrada
de ferro foi construída e atraiu milhares de pessoas. Mais tarde,
acabado o trabalho, eles ficaram vagando sem emprego.
Em meio
a tudo isso, a terra era povoada por lendas, monges, curandeiros, feiticeiros;
as soluções estavam nos poderes desconhecidos, divinos. E
bem no começo do século apareceu na região o monge
João Maria, aquele que iria inspirar Miguel Lucena de Boaventura.
Os caboclos juravam que o monge tinha o poder de curar. Ele andava sobre
as águas, os índios não lhe faziam mal, a chuva não
caia onde estivesse, fontes brotavam no lugar onde passava a. noite. Por
isso, as árvores sob as quais dormia se transformavam em pontos
de romaria.
Falava-se
também que a caixa em que o monge João Maria levava as imagens
de santos era pesadíssima para um adulto, mas qualquer criança
inocente poderia carregá-la.
"Fazei
penitência", conclamava, enquanto descrevia para milhares de sertanejos
como seria o cenário do fim do mundo: o sol ficaria escuro por três
dias, as colheitas seriam arrasadas por nuvens de gafanhotos, muitas cidades
desapareceriam. Era preciso rezar; vivia-se sob intenso pecado. Ainda mais
na república, que era, segundo ele, "um regime pervertido". Em 1910,
novamente o sertanejo ficou órfão, com a morte do monge João
Maria.
Novo
santo
Em 1911,
porém, começou a aparecer o substituto do monge. Em Palmas,
no Paraná, Miguel Lucena de Boaventura, que ninguém sabia
de onde viera, desertor do 14º Regimento da Cavalaria de Curitiba,
dava conselhos e receitas para doentes. Era mestiço de índio,
moreno, cabelos compridos, lisos, barba comprida e emaranhada. Quase sem
dentes, de pescoço curto e grosso, mancava da perna esquerda. Falava
bem e com desenvoltura.
Miguel
Lucena foi preso em Palmas, acusado de ter seduzido uma garota de doze
anos. Recebia centenas de camponeses na prisão. O prefeito preferiu
soltá-lo para não ter problemas com seu prestígio.
Ele, que dizia chamar-se José Maria, ser irmão do monge João
Maria e seu enviado, foi para Taquarussu, no Município de Curitibanos,
Santa Catarina, ergueu uma igreja e formou sua guarda de honra com base
na história de Carlos Magno (personagem muito popular no Contestado).
Na sua guarda havia 24 cavaleiros. Eram os doze pares da França;
o "monge" José Maria entendia par como dois.
Ele ordenou
que os pares se exercitassem com espadas de pau, simulando combates. Revivia-se
a época carolíngia. Os tempos das lutas dos heróis
contra os infiéis. Estabeleceu ali a monarquia - que era o "regime
de Deus, santificado" -, proclamou um corpo de ministros e determinou que
um velho fazendeiro analfabeto fosse o imperador. Em 1912 o "monge" já
tinha cerca de setecentos seguidores.
Pelados
x peludos
Antes disso,
há registro de conflitos. Certa vez, por exemplo, prenderam um adepto
de José Maria. Rasparam sua cabeça. A partir daí,
os partidários do "monge" passaram a chamar-se de pelados e os inimigos,
peludos. Mas eram atritos esporádicos. A vida monárquica
voltava-se ao misticismo e cultivava a alegria. Havia animadas refeições
coletivas. Aliás, era uma espécie de comunismo místico.
O comércio era proibido. Todos tinham de repartir o que possuíam
com os outros.
José
Maria reinava absoluto. Dava bênçãos, fazia casamentos
até de crianças, ouvia confissões. Tinha a confiança
total do povo. Dormia com três virgens que o assessoravam. Quem duvidasse
da pureza desse relacionamento seria sangrado. E as lendas corriam; histórias
fantásticas. Diziam que, certa tarde, o céu ficou encoberto
e não havia proteção para todos contra a chuva. O
"monge" chamou o povo: "Vem chuva forte. Quem não estiver perto
de mim vai molhar-se". A chuva veio. E quem não estava de seu lado
ficou encharcado. Falava-se até mesmo que, como Jesus Cristo e João
Maria, ele andava sobre as águas. Era, enfim, o salvador, aquele
que iria lutar contra as forças do mal.
Morte
ao dragão
A devoção
era total; Quando contrariado, o "monge" ameaçava ir para
os céus e gritava: "Eu vou voar". Os crentes imploravam para que
permanecesse entre eles, agarravam sua roupa. E José Maria ficava.
Não havia limites para a adoração. Um jovem, por exemplo,
que pretendia ser um par da França, pediu ao "monge" que o aceitasse
e recebeu a seguinte missão: "Traga cinqüenta orelhas de peludos".
A mãe do jovem intercedeu, propondo que seu filho matasse o "dragão
que aterroriza o sertão". José Maria concordou.
O jovem
partiu a cavalo. Durante meses, percorreu o sertão á procura
do dragão de fogo. Cansado, faminto, enfim encontrou o rastro do
dragão.
Satisfeito,
iniciou a derradeira perseguição. À noite, enfim colocou-se
diante do animal. O dragão vinha veloz em sua direção.
Ele preparou a espada, firmou-se na sela e lançou-se no escuro:
o trem passou por cima de seu frágil corpo.
Todas essas
histórias de fanatismo preocupavam as autoridades da região
e do país. O "monge" e sua gente foram expulsos de Taquarussu e,
em pouco tempo, montaram novamente a monarquia em Irani, que ficava ao
sul do Município de Palmas. O Governo do Paraná, suspeitando
que José Maria estava a serviço de Santa Catarina, mandou
um destacamento de quatrocentos homens, comandados pelo capitão
João Gualberto, dispersar os fanáticos ou prendê-los.
Foi o primeiro combate. João Gualberto morreu. José Maria
também. A primeira parte da profecia estava cumprida. Em um ano,
o "monge" voltaria para liderar o advento do império santo. A república
seria abolida e surgiria em todo o mundo a monarquia, que significa a lei
de Deus.
Virgem
vidente
Menos de
um ano, entretanto, foi o prazo para o "monge" manifestar-se. Uma de suas
virgens, Teodora, teve uma visão: José Maria esperava apenas
a reorganização de seu exército. Queria a reedificação
do acampamento de Taquarussu. Todos acharam normal a ordem - afinal, Teodora
era a virgem preferida do "monge".
Os pares
da França foram novamente ativados e elegeram Manuel, um rapaz de
dezoito anos, para comandar o acampamento, onde milhares de pessoas das
redondezas se reuniam, deixando as cidades vizinhas praticamente vazias.
Mas Teodora não convencia como vidente - aliás, mais tarde,
ela confessaria que tudo não passava de uma farsa. Em seu lugar
assumiu Manuel, que, diariamente, "se encontrava" com José Maria,
a fim de receber suas ordens. Esperava-se a batalha final. Pelo acampamento,
anunciava-se: "Os velhos vão ficar jovens. Todos vão ser
felizes".
Manuel
não ficou muito tempo na liderança porque, certa vez, voltou
de seu encontro com José Maria trazendo a seguinte ordem: também
deveria dormir com três virgens,' como o "monge", a fim de receber
através delas a mensagem divina. Seriam apenas trinta dias. O povo
aceitou. No fim, um escândalo: as jovens haviam sido seduzidas.
Um garoto
de onze anos, Joaquim, assumiu o lugar de Manuel, em quem deu uma surra
de marmelo para tirar-lhe de vez a santidade. Mandou bater em sua avó
e pôs o avô de castigo por quinze dias, deitado de bruços.
Disse: "São ordens de José Maria".
O Governo
de Santa Catarina ficava cada vez mais preocupado com o crescimento do
que já chamavam "vila santa". Falava-se em subversão contra
a república. Foram então enviados duzentos soldados no dia
29 de dezembro de 1913. Joaquim, que nesse dia ganhara o apelido de "Menino
de Deus", comandou pessoalmente a expulsão dos soldados, que fugiram
em pânico. Meses depois, houve novo ataque. E, desta vez, Taquarussu
foi exterminado. Mas tudo havia sido previsto. Joaquim profetizara: "A
cidade santa será destruída". E, antes que os soldados do
Governo chegassem, houve uma debandada para outro lugar, Caraguatá,
onde foi construído novo acampamento. Em Taquarussu ficaram oitocentas
pessoas, seiscentas das quais eram mulheres e crianças.
Começa
a guerra santa
A partir
daí, os jagunços decidiram usar a violência. Em Caraguatá,
por exemplo, a líder espiritual era a virgem Maria Rosa, também
chefe militar. Montada em seu cavalo, ia á frente dos jagunços.
Trazia uma espada na cinta e uma espingarda na sela. Muitas flores nos
cabelos, um longo vestido branco, até os pés. Seu cavalo
era branco, com arreios de veludo. Tinha apenas quinze anos. Ela liderou
as tropas contra os soldados de Santa Catarina. Causou pavor. Seus homens,
ágeis na mata, eram imbatíveis. A essa época já
existiam no Contestado trinta redutos com 6 mil homens armados. As tropas
federais entraram em ação. Foi enviado o general Setembrino
de Carvalho à frente de 7 mil homens, o que significava 80% do Exército
brasileiro. Recorreram até mesmo a aviões, chamados pelos
jagunços de "gaviões voadores". A violência explodiu
no Contestado. A virgem Maria Rosa mandou "limpar" as cidades vizinhas
a fim de purificar o ambiente para a volta do "monge". Então os
jagunços passaram a saquear e matar sertanejos pacíficos.
Os soldados davam cabo do que sobrava: violavam mulheres, atacavam casas.
Outro líder, Deodato, também conhecido por "São Joaquim
das Palmas", era o mais cruel: chegava a desenterrar os corpos dos inimigos,
pois acreditava que assim sua alma não iria para o céu. Diziam
que matava o marido e, se a esposa chorava, matava também a mulher.
Mesmo enfrentando
dificuldades, o Governo foi acabando com os redutos. Sobrou um, o de Santa
Maria, que, depois de alguns meses, também não resistiu.
Havia um adversário mais forte que as armas: a falta de comida,
além das doenças. Deodato eliminava muitos companheiros,
para diminuir o número de bocas a alimentar. Certo dia, conta-se,
uma menina pediu-lhe um pedaço de carne. Deodato deu, mas disse-lhe
que não contasse a ninguém. Ela trouxe uma amiga para pedir
um pouco de comida. Deodato mandou que ficassem de costas e juntas, para
ver qual era a mais alta. Com um tiro só, matou as duas.
Em meio
ao tifo, os homens disputavam qualquer alimento. Brigavam por um pedaço
de tripa. Disputavam até o couro dos arreios que, assado, devoravam
com prazer. Nas ruas, mulheres, velhos e crianças morriam com febre.
Nos campos de batalha, os homens eram mortos a facadas, a tiros e na explosão
de bombas. Eles talvez não se surpreendessem com a tragédia
- todos esperavam o fim do mundo. O momento havia chegado. O final, porém,
deveria ser outro: os anjos não vieram socorrê-los e as "forças
do mal" venceram.
Revista
Visão, 4 de outubro de 1982
Gilberto Dimensteinwww.freespeech.org/berrante/textos/contestado/contestado.htm