Uma
obra esquecida. Resumindo, é isso. E no caso de Raul Bopp, o esquecimento
é injusto neste país de tantas injustiças. A trajetória
de Bopp é cercada de períodos de desânimo diante da
literatura. Talvez tenha escolhido o melhor ao optar pela carreira diplomática.
Uma atitude prática. O poeta é tido como autor de um livro
só. Não é autor de um livro só, mas sua obra
poética é pequena e, mesmo assim, necessita de uma avaliação
mais consistente.
Poesia
Completa, de Raul Bopp. José Olympio, 348 págs., R$ 29,80.
Com
o pé na estrada da literatura
Na
vida do escritor gaúcho Raul Bopp (1898-1984), a literatura e as
viagens se combinaram numa espécie de alquimia criadora. Não
que ele viajasse em busca de inspiração para escrever. Antes
de mais nada, ele tinha um gosto incontrolável pela aventura e uma
imensa curiosidade de conhecer o mundo. Mas muito do que viu e viveu em
suas viagens pelos quatro cantos do Brasil acabou servindo de matéria-prima
para sua obra, inclusive para o seu livro mais famoso, Cobra Norato,
hoje um clássico da poesia modernista. Nele, Bopp utiliza lendas
e vocábulos típicos da região amazônica, recolhidos
desde o tempo em que estudava Direito em Belém, no Pará.
Cobra
Norato e outros poemas. Poesia Completa de Raul Bopp - Organizado e
comentado por Augusto Massi; 343 págs.; José Olympio / Edusp;
011/818-4150 e 021/509-6939; 29,80 reais.
Cobra Norato
I
Um dia
Vou andando, caminhando,
caminhando;
— Quero contar-te
uma história:
A noite chega
mansinho.
O mato já
se vestiu.
Agora, sim,
Vou visitar a
rainha Luzia.
— Então
você tem que apagar os olhos primeiro.
Um chão
de lama rouba a força dos meus passos.
II
Começa
agora a floresta cifrada.
Aqui um pedaço
de mato está de castigo.
— Eu quero é
ver a filha da rainha Luzia!
Agora são
os rios afogados,
Lá adiante
— Agora sim, vou
ver a filha da rainha Luzia!
Mas antes tem
que passar por sete portas
— Eu só
quero a filha da rainha Luzia.
Tem que entregar
a sombra para o bicho do fundo
— Ah, só
se for da filha da rainha Luzia!
A selva imensa
está com insônia.
Bocejam árvores
sonolentas.
E me sumo sem
rumo no fundo do mato
De todos os lados
me chamam:
— Não posso.
IV
Esta é
a floresta de hálito podre,
Rios magros obrigados
a trabalhar.
A correnteza arrepiada
junto às margens
Raízes
desdentadas mastigam lodo.
A água
chega cansada.
A lama se amontoa.
Num estirão
alagado
Fede...
Vento mudou de
lugar.
Juntam-se léguas
de mato atrás dos pântanos de aninga.
Silêncio
se machucou.
Cai lá
adiante um pedaço de pau seco:
Um berro atravessa
a floresta.
Correm cipós
fazendo intrigas no alto dos galhos.
Chegam vozes.
Dentro do mato
— Não posso.
XXXII
— E agora, compadre,
Vou lá
para as terras altas,
Quero levar minha
noiva.
Quero sentir a
quentura
Ficar à
sombra do mato
E quando estivermos
à espera
Repórter pergunta à Tarsila do Amaral.
A sra. goi a origem do movimento antropofágico?
- O Raul Bopp ahou que devíamos fazer um movimento em torno desse Abaporu, achou esquisitíssimo, ele gostou muito e depois escreveu um livro interessantíssimo sobre o linguajar indígena do Amazonas. Todos começavam a dizer que o Oswald é quem tinha feito o Abaporu e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que dissessem que era de autoria dele, achou interessante.
Revista Veja, fevereiro de 1972.
O injusto esquecimento de um grande poeta
A
obra poética de Raul Bopp é pequena, mas mesmo assim necessita
de uma reavaliação
Carlos
Drummond de Andrade definiu bem essa poesia que Bopp produziu: “O que
interessa nas Poesias de Raul Bopp não é o estado de espírito
‘antropofágico’ em que foram concebidas; é precisamente o
terem subsistido a esse estado.” Murilo Mendes arremata: “A idéia
de um poema especificamente brasileiro, tanto do ponto de vista do tema
como da linguagem, foi, a meu entender, realizado em todo o seu vigor pelo
poeta Raul Bopp, em Cobra Norato, que poderia ser teoricamente considerado
como paralelo em verso de Macunaíma, rapsódia em prosa.”
A
obra de Raul Bopp está toda no livro Poesia Completa, com
organização e comentários de Augusto Massi, que assina
no volume um ensaio competente sobre a obra e a vida desse poeta que participou
do modernismo sem querer ser vedete de nada. Massi observa: “A crescente
importância desta obra-prima tornou difícil uma visão
abrangente da trajetória do poeta.”
Na
carta-prefácio de Urucungo (1932), Bopp se refere ao seu
Cobra Norato que até hoje percorre edições
sucessivas e que saiu pela primeira vez em 1931. O livro saiu e foi só.
Alguns poucos elogios cordiais. Para Bopp, Cobra Norato causou certa
tristeza diante da cena literária de então: “Não
reneguei Norato, apesar do seu fracasso, porque para mim ele vale como
a tragédia da maleita, cocaína amazônica. Com toda
a indiferença que teve (salvo um grupo num perímetro pessoal)
ela é meu Don Quixote de la Mancha.” Essa advertência,
no entanto, de nada valeu: Urucungo fez aumentar o desapontamento
pela indiferença.
Raul
Bopp nasceu em Pinhal, município de Santa Maria, no Rio Grande do
Sul, em 4 de agosto de 1898. Morreu no Rio de Janeiro em 2 de junho de
1984. Suas viagens famosas começaram já na adolescência,
em Tupancireta, onde cresceu. O curso de Direito completou em cidades diferentes:
Porto Alegre, Recife, Belém e Rio. Participou da Semana de Arte
Moderna, em 1922. Depois integrou o grupo paulista Verde-Amarelo. De 1926
a 1929, fez parte do movimento antropofágico, junto com Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral e alguns outros. Viajou pelo Extremo Oriente,
Europa e América Latina. Ingressou na carreira diplomática
em 1932, dela saindo 30 anos depois. Serviu em Cobe, Iocoama, Los Ângeles,
Barcelona, Viena, Lima, Guatemala, Berna, Zurique e Lisboa. A carreira
diplomática deixou a literatura num plano inferior. Augusto Massi
tem absoluta razão quando diz que ninguém revelou como a
experiência de viagem sempre esteve ligada à gênese
do seu fazer poético: “O que parecia motivação
existencial aca bou por determinar, no nível dos temas e das formas,
uma configuração estrutural da obra.”
Poesia
Completa de Raul Bopp é um documento literário. O poeta foi
o último dos modernistas a ter sua obra poética reunida num
único volume, trazendo, além de narrativa em prosa, os Versos
Antigos (1916-1930), Cobra Norato (1931), Urucungo (Poemas
Negros) (1932), Poemas Brasileiros, Diábolus e Parapoemas,
além do texto “Como se vai de São Paulo a Curitiba”
(1928), uma espécie de crônica jornalística poética
com uma linguagem econômica e rápida.
Disso
tudo ainda salta o Cobra Norato, um longo poema escrito inicialmente
para crianças e que, aos poucos, foi se tornando literatura para
adultos. O poema foi idealizado em 1921, escrito em 1928 e publicado em
São Paulo em 1931 pelos amigos Jaime Adour da Câmara e Alberto
Pádua de Araújo, com capa de Flávio de Carvalho. Urucungo
(Poemas negros) foi publicado no Rio de Janeiro numa edição
promovida por Luis Vergara, Jorge Amado, Carlos Echenique Jr., Manlio Giudice
e Danton Coelho, com capa de Santa Rosa. A publicação dos
livros era tarefa dos amigos.
Como
escreveu Lígia Morrone Averbuck (Cobra Norato e a Revolução
Caraíba, 1985), até agora a obra poética de Raul
Bopp não foi objeto, por parte da crítica brasileira, senão
de estudos mais ou menos breves, ou de trabalhos puramente comparativos,
que colocam Cobra Norato ao lado de outros textos modernistas, especialmente
Macunaíma, de Mário de Andrade, e Martim Cererê,
de Cassiano Ricardo, formando o que Lígia Morrone chamou de “tríade
mítica do Modernismo”.
Descendente
de alemães, Raul Bopp mergulhou na Amazônia e encontrou o
que chamou de “estranha fascinação”. Escreveu: “A
floresta era uma esfinge indecifrada. Agitavam-se nas vozes anônimas
do mato. Inconscientemente, foi sentindo uma nova maneira de apreciar as
coisas. A própria malária, contraída em minhas viagens,
acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo surrealista,
com espaços imaginários.”
Confessou
que foi na Amazônia que começou o esboço de Cobra
Norato, sentindo claramente – como observou – o desgaste das antigas
formas poéticas, de vibrações silábicas em
uso, que foram sendo substituídas por maneiras mais simples de expressar.
Foi na Amazônia que aprendeu a sentir o Brasil.
Para
melhor situar na figura de Bopp, Augusto Massi reuniu no volume alguns
pequenos ensaios quase afetuosos sobre o poeta. Oswald de Andrade escreveu:
“Em Cobra Norato, pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira
grandiosa e sem fraude. Bopp fez o que Gonçalves Dias não
conseguiu e o que mais um modernista, viciado nos conchavos eleitorais
do talento, teima em fracassar.”
Carlos
Drummond de Andrade foi além, referindo-se ao Cobra Norato:
“É possivelmente o mais brasileiro de todos os livros de poemas
brasileiros escritos a qualquer tempo. Nele a influência erudita
européia, de caráter satírico, que ainda se faz sentir
no monumental Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo
na ‘Carta prás Icamiabas’, torna-se praticamente nula.”
Murilo
Mendes: “Na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso,
fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe,
sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade.”
Raul
Bopp dedicou Cobra Norato a Tarsila do Amaral, dizendo que o longo
poema apenas faria parte da “bibliotequinha antropofágica”.
O poeta passou praticamente a vida inteira fazendo correções
no texto, uma insatisfação nunca explicada.
No
centenário de seu nascimento, Raul Bopp estava a merecer a homenagem
da reunião de sua obra poética. Não só como
homenagem. Este país, invertido em seus valores e diante do jogo
literário brutal e desonesto, costuma não apenas esquecer,
mas ignorar nomes como o do poeta. Poesia Completa de Raul Bopp
é um documento ilustrado por fotos, com projeto gráfico de
Victor Burton e apresentação de Ferreira Gullar. E é
Gullar quem observa: “Esta edição é um serviço
prestado à literatura brasileira.” Ele tem razão. E é
bom saber que nem tudo se perdeu. Ainda.
Álvaro Alves de Faria é jornalista, poeta e
escritor
www.jt.estadao.com.br/noticias/98/09/12/sa9.htm
Pela
primeira vez, a poesia do modernista Raul Bopp é reunida em livro,
uma bela homenagem ao seu centenário de nascimento
Aliás,
sua trajetória universitária teve a marca de sua personalidade
nômade. Os dois primeiros anos de faculdade ele cursou em Porto Alegre;
o terceiro, no Recife; o quarto, em Belém, e o quinto no Rio de
Janeiro.
Caindo
no mundo
Mas
suas andanças começaram muito antes. Aos 16 anos conseguiu
unir o útil ao agradável, ou seja, o desejo de fugir de casa
com a vontade de rodar o mundo. Fez a trouxa e seguiu para Assunção,
no Paraguai, primeiro a cavalo, depois de balsa para atravessar o rio Uruguai,
por fim de todos os meios de transporte possíveis, trem, barco,
carro de boi. Na hora de voltar ao Brasil, achou monótono refazer
o caminho da ida. Acabou dando em São Paulo, onde esperou que a
família lhe enviasse dinheiro para regressar à cidade natal,
Tupanciretã, no Rio Grande do Sul. Com dinheiro na mão, aproveitou
para visitar o Rio de Janeiro, onde viu o mar pela primeira vez, tomou
um navio e partiu rumo a Buenos Aires. Dali voltou de trem até o
lugar onde havia deixado seu cavalo. Chegou em casa do mesmo modo que saiu,
a galope, depois de oito meses de aventura.
Como
se vê, o garoto prometia. Tanto que mais tarde, já adulto,
repetiu a proeza, viajando dois anos sem parar pelo mundo todo. Visitou
a Ásia, África, Polinésia, Indochina e Mongólia,
apesar de afirmar anos mais tarde: "A maior volta do mundo que eu dei
foi na Amazônia". Por tudo isso, não espanta que ele,
em 1932, abraçasse a carreira diplomática, indo para Kobe,
no Japão. Foi o mesmo talento para a aventura que o conduziu à
trilha modernista. Depois de formado, mudou-se, em 1926, para São
Paulo, onde aceitou o convite da Associação Paulista de Boas
Estradas para viajar num automóvel Studebaker até Curitiba,
por caminhos que ele deveria descobrir, pois, na época, apenas 100
quilômetros eram de estrada regular. Dessa proeza nasceu Como se
Vai de São Paulo a Curitiba, onde Bopp pôs em prática
o texto telegráfico e os versos livres, tão apregoados pelos
modernistas.
Aventura
antropofágica
Em
São Paulo, cuja vida cultural ainda vivia os efeitos da turbulenta
Semana de Arte Moderna de 1922, Bopp conheceu o escritor Oswald de Andrade
e a pintora Tarsila do Amaral. Integrou, ao lado deles, o Movimento Antropofágico,
que entre outras coisas assumia a condição brasileira de
engolir e digerir a cultura estrangeira, do mesmo modo que os índios
devoraram o Bispo Sardinha à época do Descobrimento. "Tupy
or not Tupy", pregava Oswald no Manifesto Antropofágico. Por
sua vez, foi um quadro de Tarsila, intitulado O Antropófago, que
deu nome ao movimento. Estimulado pelas discussões antropofágicas,
Bopp deu os últimos retoques em seu poema Cobra Norato, publicando-o
em 1931.
Curiosamente,
o escritor gaúcho acabou ficando menos conhecido do que outros autores
vinculados ao chamado modernismo primitivista, como Mário de Andrade,
com Macunaíma, e Oswald, com a poesia Pau Brasil.
No máximo ele é lembrado por Cobra Norato, como se fosse
autor de um só livro. Entretanto, a qualidade poética de
Bopp está presente em outras obras, como Urucungo (1932),
por exemplo. Uma das explicações para esse esquecimento,
segundo Augusto Massi, professor de literatura brasileira da USP e organizador
de sua poesia completa, está na opção pela carreira
diplomática, que o próprio Bopp apelidou de "desquite amigável"
com a literatura. Os anos passados no Exterior acabaram afastando-o do
público brasileiro. Outra coisa que pouca gente sabe é que
foi o diplomata Raul Bopp quem introduziu a soja no Brasil. As primeiras
sementes vieram da Manchúria através do Itamarati e em poucos
anos transformaram o país num dos maiores produtores de soja do
mundo. Já os frutos de sua literatura podem ser colhidos apenas
agora, em suas poesias finalmente reunidas em livro.
Inclui:
Versos Antigos (1916-1930); Como se Vai de São Paulo a Curitiba
(1928); Cobra Norato (1932); Poemas Brasileiros; Diábolus; Parapoemas.
Há ainda perfis do poeta feitos por Oswald de Andrade, Carlos Drummond,
Sérgio Buarque de Holanda e José Paulo Paes, entre outros.
Por Cláudio Fragata Lopes
http://galileu.globo.com/edic/88/cultura1.htm
(fragmentos)
ainda eu hei
de morar nas terras do Sem-Fim.
me misturo rio
ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga
de flor de tajá de lagoa
e mando chamar
a Cobra Norato.
Vamos passear
naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta
que há luar.
Estrelas conversam
em voz baixa.
Brinco então
de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo
a cobra.
me enfio nessa
pele de seda elástica
e saio a correr
mundo:
Quero me casar
com sua filha.
O sono desceu
devagar pelas pálpebras pesadas.
A sombra escondeu
as árvores.
Sapos beiçudos
espiam no escuro.
Árvorezinhas
acocoram-se no charco.
Um fio de água
atrasada lambe a lama.
bebendo o caminho.
A água
vai chorando afundando afundando.
a areia guardou
os rastos da filha da rainha Luzia.
Ver sete mulheres
brancas de ventres despovoados
guardadas por
um jacaré.
Tem que fazer
mironga na lua nova.
Tem que beber
três gotas de sangue.
Ai, que a noite
secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me
embora.
onde as velhas
árvores grávidas cochilam.
— Onde vai, Cobra
Norato?
Tenho aqui três
árvorezinhas jovens, à tua espera.
Eu hoje vou dormir
com a filha da rainha Luzia.
parindo cobras.
descasca barrancos
gosmentos.
Resvala devagarinho
na vasa mole
com medo de cair.
o charco engole
a água do igarapé.
Um assobio assusta
as árvores.
Pum
Amarram as árvorezinhas
contrariadas.
pia a jurucutu.
Eu hoje vou dormir
com a filha da rainha Luzia.
eu vou de volta
pro Sem-Fim.
onde a serra
se amontoa,
onde correm os
rios de águas claras
em matos de molungu.
Quero estarzinho
com ela
numa casa de
morar,
com porta azul
piquininha
pintada a lápis
de cor.
do seu corpo
de vaivém.
Querzinho de
ficar junto
quando a gente
quer bem, bem;
ouvir a jurucutu,
águas
que passam cantando
pra gente se
espreguiçar,
que a noite volte
outra vez
eu hei de contar
histórias
(histórias
de não-dizer-nada)
escrever nomes
na areia
pro vento brincar
de apagar.