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Raul Bopp


       Repórter pergunta à Tarsila do Amaral.
       A sra. goi a origem do movimento antropofágico?
       - O Raul Bopp ahou que devíamos fazer um movimento em torno desse Abaporu, achou esquisitíssimo, ele gostou muito e depois escreveu um livro interessantíssimo sobre o linguajar indígena do Amazonas. Todos começavam a dizer que o Oswald é quem tinha feito o Abaporu e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que dissessem que era de autoria dele, achou interessante. Revista Veja, fevereiro de 1972.
 
 
 
 
       O injusto esquecimento de um grande poeta
       A obra poética de Raul Bopp é pequena, mas mesmo assim necessita de uma reavaliação

       Uma obra esquecida. Resumindo, é isso. E no caso de Raul Bopp, o esquecimento é injusto neste país de tantas injustiças. A trajetória de Bopp é cercada de períodos de desânimo diante da literatura. Talvez tenha escolhido o melhor ao optar pela carreira diplomática. Uma atitude prática. O poeta é tido como autor de um livro só. Não é autor de um livro só, mas sua obra poética é pequena e, mesmo assim, necessita de uma avaliação mais consistente.
       Carlos Drummond de Andrade definiu bem essa poesia que Bopp produziu: “O que interessa nas Poesias de Raul Bopp não é o estado de espírito ‘antropofágico’ em que foram concebidas; é precisamente o terem subsistido a esse estado.” Murilo Mendes arremata: “A idéia de um poema especificamente brasileiro, tanto do ponto de vista do tema como da linguagem, foi, a meu entender, realizado em todo o seu vigor pelo poeta Raul Bopp, em Cobra Norato, que poderia ser teoricamente considerado como paralelo em verso de Macunaíma, rapsódia em prosa.”
       A obra de Raul Bopp está toda no livro Poesia Completa, com organização e comentários de Augusto Massi, que assina no volume um ensaio competente sobre a obra e a vida desse poeta que participou do modernismo sem querer ser vedete de nada. Massi observa: “A crescente importância desta obra-prima tornou difícil uma visão abrangente da trajetória do poeta.
       Na carta-prefácio de Urucungo (1932), Bopp se refere ao seu Cobra Norato que até hoje percorre edições sucessivas e que saiu pela primeira vez em 1931. O livro saiu e foi só. Alguns poucos elogios cordiais. Para Bopp, Cobra Norato causou certa tristeza diante da cena literária de então: “Não reneguei Norato, apesar do seu fracasso, porque para mim ele vale como a tragédia da maleita, cocaína amazônica. Com toda a indiferença que teve (salvo um grupo num perímetro pessoal) ela é meu Don Quixote de la Mancha.” Essa advertência, no entanto, de nada valeu: Urucungo fez aumentar o desapontamento pela indiferença.
       Raul Bopp nasceu em Pinhal, município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em 4 de agosto de 1898. Morreu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1984. Suas viagens famosas começaram já na adolescência, em Tupancireta, onde cresceu. O curso de Direito completou em cidades diferentes: Porto Alegre, Recife, Belém e Rio. Participou da Semana de Arte Moderna, em 1922. Depois integrou o grupo paulista Verde-Amarelo. De 1926 a 1929, fez parte do movimento antropofágico, junto com Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e alguns outros. Viajou pelo Extremo Oriente, Europa e América Latina. Ingressou na carreira diplomática em 1932, dela saindo 30 anos depois. Serviu em Cobe, Iocoama, Los Ângeles, Barcelona, Viena, Lima, Guatemala, Berna, Zurique e Lisboa. A carreira diplomática deixou a literatura num plano inferior. Augusto Massi tem absoluta razão quando diz que ninguém revelou como a experiência de viagem sempre esteve ligada à gênese do seu fazer poético: “O que parecia motivação existencial aca bou por determinar, no nível dos temas e das formas, uma configuração estrutural da obra.
       Poesia Completa de Raul Bopp é um documento literário. O poeta foi o último dos modernistas a ter sua obra poética reunida num único volume, trazendo, além de narrativa em prosa, os Versos Antigos (1916-1930), Cobra Norato (1931), Urucungo (Poemas Negros) (1932), Poemas Brasileiros, Diábolus e Parapoemas, além do texto “Como se vai de São Paulo a Curitiba” (1928), uma espécie de crônica jornalística poética com uma linguagem econômica e rápida.
       Disso tudo ainda salta o Cobra Norato, um longo poema escrito inicialmente para crianças e que, aos poucos, foi se tornando literatura para adultos. O poema foi idealizado em 1921, escrito em 1928 e publicado em São Paulo em 1931 pelos amigos Jaime Adour da Câmara e Alberto Pádua de Araújo, com capa de Flávio de Carvalho. Urucungo (Poemas negros) foi publicado no Rio de Janeiro numa edição promovida por Luis Vergara, Jorge Amado, Carlos Echenique Jr., Manlio Giudice e Danton Coelho, com capa de Santa Rosa. A publicação dos livros era tarefa dos amigos.
       Como escreveu Lígia Morrone Averbuck (Cobra Norato e a Revolução Caraíba, 1985), até agora a obra poética de Raul Bopp não foi objeto, por parte da crítica brasileira, senão de estudos mais ou menos breves, ou de trabalhos puramente comparativos, que colocam Cobra Norato ao lado de outros textos modernistas, especialmente Macunaíma, de Mário de Andrade, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, formando o que Lígia Morrone chamou de “tríade mítica do Modernismo”.
       Descendente de alemães, Raul Bopp mergulhou na Amazônia e encontrou o que chamou de “estranha fascinação”. Escreveu: “A floresta era uma esfinge indecifrada. Agitavam-se nas vozes anônimas do mato. Inconscientemente, foi sentindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A própria malária, contraída em minhas viagens, acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo surrealista, com espaços imaginários.”
       Confessou que foi na Amazônia que começou o esboço de Cobra Norato, sentindo claramente – como observou – o desgaste das antigas formas poéticas, de vibrações silábicas em uso, que foram sendo substituídas por maneiras mais simples de expressar. Foi na Amazônia que aprendeu a sentir o Brasil.
       Para melhor situar na figura de Bopp, Augusto Massi reuniu no volume alguns pequenos ensaios quase afetuosos sobre o poeta. Oswald de Andrade escreveu: “Em Cobra Norato, pela primeira vez, se realizou a poesia brasileira grandiosa e sem fraude. Bopp fez o que Gonçalves Dias não conseguiu e o que mais um modernista, viciado nos conchavos eleitorais do talento, teima em fracassar.
       Carlos Drummond de Andrade foi além, referindo-se ao Cobra Norato: “É possivelmente o mais brasileiro de todos os livros de poemas brasileiros escritos a qualquer tempo. Nele a influência erudita européia, de caráter satírico, que ainda se faz sentir no monumental Macunaíma, de Mário de Andrade, por exemplo na ‘Carta prás Icamiabas’, torna-se praticamente nula.
       Murilo Mendes: “Na linguagem, Bopp, forjador de um léxico saboroso, fundiu sabiamente vozes indígenas e africanas, alterando a sintaxe, sem cair nos exageros e preciosismos de Mário de Andrade.
       Raul Bopp dedicou Cobra Norato a Tarsila do Amaral, dizendo que o longo poema apenas faria parte da “bibliotequinha antropofágica”. O poeta passou praticamente a vida inteira fazendo correções no texto, uma insatisfação nunca explicada.
       No centenário de seu nascimento, Raul Bopp estava a merecer a homenagem da reunião de sua obra poética. Não só como homenagem. Este país, invertido em seus valores e diante do jogo literário brutal e desonesto, costuma não apenas esquecer, mas ignorar nomes como o do poeta. Poesia Completa de Raul Bopp é um documento ilustrado por fotos, com projeto gráfico de Victor Burton e apresentação de Ferreira Gullar. E é Gullar quem observa: “Esta edição é um serviço prestado à literatura brasileira.” Ele tem razão. E é bom saber que nem tudo se perdeu. Ainda.

       Poesia Completa, de Raul Bopp. José Olympio, 348 págs., R$ 29,80.
        Álvaro Alves de Faria é jornalista, poeta e escritor
        www.jt.estadao.com.br/noticias/98/09/12/sa9.htm
 

       Com o pé na estrada da literatura
       Pela primeira vez, a poesia do modernista Raul Bopp é reunida em livro, uma bela homenagem ao seu centenário de nascimento

       Na vida do escritor gaúcho Raul Bopp (1898-1984), a literatura e as viagens se combinaram numa espécie de alquimia criadora. Não que ele viajasse em busca de inspiração para escrever. Antes de mais nada, ele tinha um gosto incontrolável pela aventura e uma imensa curiosidade de conhecer o mundo. Mas muito do que viu e viveu em suas viagens pelos quatro cantos do Brasil acabou servindo de matéria-prima para sua obra, inclusive para o seu livro mais famoso, Cobra Norato, hoje um clássico da poesia modernista. Nele, Bopp utiliza lendas e vocábulos típicos da região amazônica, recolhidos desde o tempo em que estudava Direito em Belém, no Pará.
       Aliás, sua trajetória universitária teve a marca de sua personalidade nômade. Os dois primeiros anos de faculdade ele cursou em Porto Alegre; o terceiro, no Recife; o quarto, em Belém, e o quinto no Rio de Janeiro.
       Caindo no mundo
       Mas suas andanças começaram muito antes. Aos 16 anos conseguiu unir o útil ao agradável, ou seja, o desejo de fugir de casa com a vontade de rodar o mundo. Fez a trouxa e seguiu para Assunção, no Paraguai, primeiro a cavalo, depois de balsa para atravessar o rio Uruguai, por fim de todos os meios de transporte possíveis, trem, barco, carro de boi. Na hora de voltar ao Brasil, achou monótono refazer o caminho da ida. Acabou dando em São Paulo, onde esperou que a família lhe enviasse dinheiro para regressar à cidade natal, Tupanciretã, no Rio Grande do Sul. Com dinheiro na mão, aproveitou para visitar o Rio de Janeiro, onde viu o mar pela primeira vez, tomou um navio e partiu rumo a Buenos Aires. Dali voltou de trem até o lugar onde havia deixado seu cavalo. Chegou em casa do mesmo modo que saiu, a galope, depois de oito meses de aventura.
       Como se vê, o garoto prometia. Tanto que mais tarde, já adulto, repetiu a proeza, viajando dois anos sem parar pelo mundo todo. Visitou a Ásia, África, Polinésia, Indochina e Mongólia, apesar de afirmar anos mais tarde: "A maior volta do mundo que eu dei foi na Amazônia". Por tudo isso, não espanta que ele, em 1932, abraçasse a carreira diplomática, indo para Kobe, no Japão. Foi o mesmo talento para a aventura que o conduziu à trilha modernista. Depois de formado, mudou-se, em 1926, para São Paulo, onde aceitou o convite da Associação Paulista de Boas Estradas para viajar num automóvel Studebaker até Curitiba, por caminhos que ele deveria descobrir, pois, na época, apenas 100 quilômetros eram de estrada regular. Dessa proeza nasceu Como se Vai de São Paulo a Curitiba, onde Bopp pôs em prática o texto telegráfico e os versos livres, tão apregoados pelos modernistas.
       Aventura antropofágica
       Em São Paulo, cuja vida cultural ainda vivia os efeitos da turbulenta Semana de Arte Moderna de 1922, Bopp conheceu o escritor Oswald de Andrade e a pintora Tarsila do Amaral. Integrou, ao lado deles, o Movimento Antropofágico, que entre outras coisas assumia a condição brasileira de engolir e digerir a cultura estrangeira, do mesmo modo que os índios devoraram o Bispo Sardinha à época do Descobrimento. "Tupy or not Tupy", pregava Oswald no Manifesto Antropofágico. Por sua vez, foi um quadro de Tarsila, intitulado O Antropófago, que deu nome ao movimento. Estimulado pelas discussões antropofágicas, Bopp deu os últimos retoques em seu poema Cobra Norato, publicando-o em 1931.
       Curiosamente, o escritor gaúcho acabou ficando menos conhecido do que outros autores vinculados ao chamado modernismo primitivista, como Mário de Andrade, com Macunaíma, e Oswald, com a poesia Pau Brasil. No máximo ele é lembrado por Cobra Norato, como se fosse autor de um só livro. Entretanto, a qualidade poética de Bopp está presente em outras obras, como Urucungo (1932), por exemplo. Uma das explicações para esse esquecimento, segundo Augusto Massi, professor de literatura brasileira da USP e organizador de sua poesia completa, está na opção pela carreira diplomática, que o próprio Bopp apelidou de "desquite amigável" com a literatura. Os anos passados no Exterior acabaram afastando-o do público brasileiro. Outra coisa que pouca gente sabe é que foi o diplomata Raul Bopp quem introduziu a soja no Brasil. As primeiras sementes vieram da Manchúria através do Itamarati e em poucos anos transformaram o país num dos maiores produtores de soja do mundo. Já os frutos de sua literatura podem ser colhidos apenas agora, em suas poesias finalmente reunidas em livro.

       Cobra Norato e outros poemas. Poesia Completa de Raul Bopp - Organizado e comentado por Augusto Massi; 343 págs.; José Olympio / Edusp; 011/818-4150 e 021/509-6939; 29,80 reais.
       Inclui: Versos Antigos (1916-1930); Como se Vai de São Paulo a Curitiba (1928); Cobra Norato (1932); Poemas Brasileiros; Diábolus; Parapoemas. Há ainda perfis do poeta feitos por Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Sérgio Buarque de Holanda e José Paulo Paes, entre outros. Por Cláudio Fragata Lopes
       http://galileu.globo.com/edic/88/cultura1.htm
 

      Cobra Norato
      (fragmentos)

        I

     Um dia
     ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.

     Vou andando, caminhando, caminhando;
     me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
     Depois
     faço puçanga de flor de tajá de lagoa
     e mando chamar a Cobra Norato.

     — Quero contar-te uma história:
     Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
     Faz de conta que há luar.

     A noite chega mansinho.
     Estrelas conversam em voz baixa.

     O mato já se vestiu.
     Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
     e estrangulo a cobra.

     Agora, sim,
     me enfio nessa pele de seda elástica
     e saio a correr mundo:

     Vou visitar a rainha Luzia.
     Quero me casar com sua filha.

     — Então você tem que apagar os olhos primeiro.
     O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.

     Um chão de lama rouba a força dos meus passos.
 

        II

     Começa agora a floresta cifrada.
     A sombra escondeu as árvores.
     Sapos beiçudos espiam no escuro.

     Aqui um pedaço de mato está de castigo.
     Árvorezinhas acocoram-se no charco.
     Um fio de água atrasada lambe a lama.

     — Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

     Agora são os rios afogados,
     bebendo o caminho.
     A água vai chorando afundando afundando.

     Lá adiante
     a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.

     — Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!

     Mas antes tem que passar por sete portas
     Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
     guardadas por um jacaré.

     — Eu só quero a filha da rainha Luzia.

     Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
     Tem que fazer mironga na lua nova.
     Tem que beber três gotas de sangue.

     — Ah, só se for da filha da rainha Luzia!

     A selva imensa está com insônia.

     Bocejam árvores sonolentas.
     Ai, que a noite secou.  A água do rio se quebrou.
     Tenho que ir-me embora.

     E me sumo sem rumo no fundo do mato
     onde as velhas árvores grávidas cochilam.

     De todos os lados me chamam:
     — Onde vai, Cobra Norato?
     Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.

     — Não posso.
     Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.
 

        IV

     Esta é a floresta de hálito podre,
     parindo cobras.

     Rios magros obrigados a trabalhar.

     A correnteza arrepiada junto às margens
     descasca barrancos gosmentos.

     Raízes desdentadas mastigam lodo.

     A água chega cansada.
     Resvala devagarinho na vasa mole
     com medo de cair.

     A lama se amontoa.

     Num estirão alagado
     o charco engole a água do igarapé.

     Fede...

     Vento mudou de lugar.

     Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
     Um assobio assusta as árvores.

     Silêncio se machucou.

     Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
     Pum

     Um berro atravessa a floresta.

     Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
     Amarram as árvorezinhas contrariadas.

     Chegam vozes.

     Dentro do mato
     pia a jurucutu.

     — Não posso.
     Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.
 

        XXXII

     — E agora, compadre,
     eu vou de volta pro Sem-Fim.

     Vou lá para as terras altas,
     onde a serra se amontoa,
     onde correm os rios de águas claras
     em matos de molungu.

     Quero levar minha noiva.
     Quero estarzinho com ela
     numa casa de morar,
     com porta azul piquininha
     pintada a lápis de cor.

     Quero sentir a quentura
     do seu corpo de vaivém.
     Querzinho de ficar junto
     quando a gente quer bem, bem;

     Ficar à sombra do mato
     ouvir a jurucutu,
     águas que passam cantando
     pra gente se espreguiçar,

     E quando estivermos à espera
     que a noite volte outra vez
     eu hei de contar histórias
     (histórias de não-dizer-nada)
     escrever nomes na areia
     pro vento brincar de apagar.

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