Alcides Castilhos Maya, jornalista,
político, contista, romancista e ensaísta, nasceu em São
Gabriel, RS, em 15 de outubro de 1878, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ,
em 2 de outubro de 1944. Eleito para a Cadeira n. 4, na sucessão
de Aluísio Azevedo, em 6 de setembro de 1913, foi recebido pelo
acadêmico Rodrigo Octavio em 21 de julho de 1914.
Seu pai, Henrique Maya de Castilho,
era funcionário federal e de origem citadina. O vínculo com
o pago e o sentimento gaúcho, que marcariam a ficção
do futuro escritor, vieram-lhe através da linha materna. Carlinda
de Castilho Leal, sua mãe, era filha de Manoel Coelho Leal, dono
da estância de Jaguari, no município de Lavras do Sul, e ainda
de duas frações de campo em São Gabriel, chamadas
Tarumã e Guabiju. Alcides Maya passou a infância na estância
de Jaguari, cenário de muitas de suas páginas regionalistas,
sobretudo no romance Ruínas vivas, que é, de certo modo,
a visão nostálgica da estância avoenga. Antes de ter
concluído os estudos primários, Alcides foi levado para Porto
Alegre, onde fez os estudos de humanidades. Em 1895, quando contava 18
anos, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. A sua verdadeira
vocação, porém, eram as letras e o jornalismo, por
isso abandonou o curso de Direito. Retornando a Porto Alegre em 1896, entregou-se
à prática do jornalismo militante, atividade que ele exerceria
ao longo de toda a vida.
No jornalismo distinguiu-se sempre pela
preocupação eminentemente cultural e pelo engajamento político.
Iniciou em A Reforma, órgão federalista, mas logo foi "lutar
ao lado dos batalhadores da República". A partir de 1897, passou
a integrar a redação de A República, órgão
da dissidência republicana, e chegou a ocupar a direção
do jornal. Aos 19 anos estreou em livro com Pelo futuro. Seus artigos de
jornal de 1898 a 1900 foram reunidos em livro sob o título de Através
da imprensa. Além da vivência nas redações de
jornais, teve contato, em Porto Alegre, com o celebrado polígrafo
Apolinário Porto Alegre, cujo retiro da Casa Branca era "a verdadeira
sede da atividade espiritual do Rio Grande".
Em 1903, Alcides Maya fez sua primeira
viagem ao Rio de Janeiro, onde seu nome já era bem conhecido. A
partir de então, passou a viver e a desenvolver atividades, alternadamente,
ora no Rio de Janeiro, ora em Porto Alegre. Homem de caráter e refinado
esteta, era o tipo de intelectual talhado para sentir-se à vontade
na capital do país. Seu gauchismo sem jaça era a expressão
da autenticidade do seu nacionalismo atuante. Suas idéias anti-separatistas
estão contidas no livro O Rio Grande independente. No Rio, residia
numa "república de intelectuais", situada na rua das Laranjeiras,
onde recebeu um dia a visita de Machado de Assis. Desde então, foi
levado a entrar na intimidade do mundo machadiano.
A partir de 1905, passou a militar na
imprensa carioca, profissionalmente, colaborando em O País, O Imparcial,
Correio da Manhã e Jornal do Commercio. Assinava artigos também
com o pseudônimo Guys. Em 1908, voltou para Porto Alegre, levado
por uma motivação bastante ambiciosa: a fundação
de um matutino, o Jornal da Manhã. Durou apenas um ano, mas ficou
na sua coleção uma parte valiosa do acervo jornalístico
de Alcides Maya. De volta ao Rio, viveu os melhores anos de sua carreira
jornalística e literária. Em 1910, publicou seu único
romance, Ruínas vivas, que irá compor, com os livros de contos
Tapera (1911) e Alma bárbara (1922), a sua trilogia regionalista,
que reflete a poesia dos pampas, buscando no passado as raízes do
seu povo. Outros grandes momentos de sua carreira deram-se em 1912, com
a publicação do ensaio Machado de Assis (algumas notas sobre
o humour), e, no ano seguinte, com a sua entrada na Academia Brasileira
de Letras, como o primeiro rio-grandense a ter ingresso na Casa de Machado
de Assis. Por essa época, era o bibliotecário do Pedagogium.
Representou o Rio Grande do Sul na Câmara
dos Deputados, no período legislativo de 1918 a 1921. Embora integrado
na representação do Partido Republicano, a sua atividade
parlamentar se fez sentir pela preocupação com os problemas
da educação e cultura. De 1925 a 1938, residiu em Porto Alegre,
com breve incursão ao Rio, decorrente de sua participação
no movimento revolucionário de 30. Lá dirigiu o Museu Júlio
de Castilhos, até se aposentar, e colaborou no Correio do Povo.
Levado por uma inquietação de toda a vida, retornou ao Rio,
onde viveu os últimos anos de sua vida (1938-1944), escrevendo para
o Correio do Povo e freqüentando a Academia Brasileira de Letras quando
podia. Mas sempre sentindo saudades do Rio Grande, da sua querência.
Para lá voltou, cinco anos após sua morte, quando seus restos
mortais foram trasladados para o Panteon Rio Grandense, em Porto Alegre.
Obras: Pelo futuro, ensaio (1897); O
Rio Grande independente, ensaio (1898); Através da imprensa (1898-1900),
jornalismo (1900); Ruínas vivas, romance (1910); Tapera, contos
(1911); Machados de Assis - Algumas notas sobre o humour, ensaio (1912);
Crônicas e ensaios, jornalismo (1918); Alma bárbara, contos
(1922); O gaúcho na legenda e na história, ensaio (1922);
Lendas do Sul, folclore, publicadas na Ilustração Brasileira
(1922); Romantismo e naturalismo na obra de Aluísio Azevedo (1926).
Alma Bárbara
" - Me fui ao chão, caramba (eu, domador!),
em riba mesmo de um zorrilho, que me seringou
inté nas barbas da cara. Desgrácia! Nem baile, nem china:
os outros tomaram conta... Passei
mais de uma semana me aliviando daquele cheiro."
"Pedro Antunes, inté parecia baiano:
só andava de carro nas viagens, usava calça, botim e um pala
de seda que nunca enfiava, não comia carne de brasa, nem de espeto,
careteava para o
chimarrão e nos passeios (o que é o mundo: um homem de
fortuna como aquele!) escarranchava-se no lombo de uma mula paulista e
lá se ia mui concho..."
"Um mês decorreu sem recebermos notícias;
do exército sabíamos pelos jornais e por uma ou outra correspondência
da cidade; mas, os chasques não saíam da estrada, entre a
nossa e as
estâncias vizinhas, cujos donos também tinham parentes
na luta."
"Ordinariamente não via os lugares:
estava sempre entregue a si próprio, absorto nos seus
cálculos e devaneios, de olhos semicerrados ao aspirar fumaças
do crioulo, que, sem
interrupção enrolava, afrouxava, apertava, acendia e
reacendia..."
"Prefiro o ar livre, os capões de fresca
alfombra sob os sóis pampeanos, e, à noite, para sair de
madrugada, um fogão de gaúchos, com viola e farroma, sob
ramadas abertas."
HISTÓRIA GAÚCHA
A Astrogildo Teixeira de Mello.
Lá a história, patrício,
que vai contar? Como a de todos, cousa que vinha de longe, uma vingança
no mais... Meu pai era filho do índio mais cru das costas do Ibicuí
e, como tapejara, no seu tempo, não tinha parceiro, nem aqui, nem
em Cima da Serra.
Muita gente cruzou com ele estas campanhas,
sem nunca perder o tino, quando inda não se via sombra de pousada
por onde hoje em dia se atropela todo esse povaréu. Foi ele quem
levou à Laguna os Farroupilhas; mas não fez querência,
que, dali pra diante, era homem de a pé. Ao demais, o tal Garibaldi
principiou a paletear a indiada, e muito gaúcho mesquinhou daquele
capincho metido a duro e toda partista. Depois, quem sabe se o pobre não
andava com o pensamento na china e nos filhos, nós dois, eu e o
Adão, já cresçudos! Que isso de bater mundo é
bom pra quem nasceu; mas tudo cansa e dias hai em que um se alembra mesmo
do seu ranchito nos pagos! A cousa foi que o índio se boleou serra
abaixo, sem avisar ninguém...
Fez a sua desgracia, le digo, que, na
viagem, topou um piquete camello e teve que vaquear essa gente, senão
lo matavam. Era gauchada recém-bandeada pra os legais, e, desde
entonces, foi o meu pai que les amadrinhou as cruzadas, quase sempre na
calada das noites. Se era cotuba no rumo, homem ladino! Eu, não
é por ser filho, mas, onde ele passava (pergunta aos antigos!) nem
os quero-queros cantavam! Ora, os Farrapos souberam e, como andavam sem
galho de pau, juraram no mais tirar vingança. Diziam que fora traição...
Qual! Aquilo era um ofício, se importa lá o vaqueano com
o resto! Mas, o que é, é que estavam galguinchos pra pegar
um inimigo e tanto gatearam o índio, coitado! que ele, um dia, caiu
na volteada. Não chegou pra todos e, ao despois, largaram os pedaços
no campo, de isca à cachorrada chimarrona, que era mato... Bicharia
baguala! Tinham faro de légua e, achando carniça, não
deixavam nada pra os corvos. Mas, aqui está o que le quero provar,
moço, e a’ora fixe como vim dar com os costados nesta urupuca.
Meu avô, bugre linguará,
morreu de velho, com os colmilhos gastos e os olhos que nem retovo de bolas.
Ele andou com os pampas, ’teve com os frailes nas Missões, e sabia
mais cousas que muito doutor. Queria que visse o ervaçal seco que
juntava no rancho: era pra um tudo e inté o bicharedo curava. Cobra
chegava andar atrás dele, que era barbaridade; não se arreceava
de almas e todos assuntavam ser feiticeiro. Uta índio! De noite,
parecia um tigre bombeando; lagarteava o dia inteiro, pitando, quieto,
no sol; quando não bebia cana, bebia mate; mascava, mascava, e no
churrasco, nem se falar! Ao demais, probezito, só as garras de montaria
e um couro pra dormir e o chiripá e o poncho; mas guardava uma adaga
que era como um tesouro...
Arma linda! Relampeava de alto a baixo
e tinha no cabo de prata floreado uma figura de mulher nua, com uma serpente
enrolada desde as cadeiras inté a tábua do pescoço,
lá nela. E não era dor o que a maldita sentia: parecia no
mais uma china se derretendo com o dianho... Isto na frente, que, do outro
lado, era um animal esquisito, como inda não vi, meio bode, meio
homem, todo ele peludo, de pata rachada e com dois chifrezinhos de carneiro
novo. E a folha, amigo, mudava de cor, me desdiga, que muito manoteei aquel’ferro!
Quando me apertenceu, já estava fino e dançava na bainha,
mas inda mostrava u’a mancha no alto, que certos dias parava negra e, de
outras feitas, cor de sangue ainda vivo.
Pois, o bugre velho, meu avô,
deu ela a meu pai quando deixou de gauderiar e se parou nos fogões.
Não disse nada, nem percisava, que aquela já se sabia donde
vinha vindo... E, a’ora, arrepare no que assucedeu. Meu pai, moço,
des’que atravessou a adaga na cinta, mudou de jeito, deu pra rixento, largou
a se traguear, e, de folgozão que era, andava que nem carancho em
tonqueira. Mas a morte, caramba! lo respeitava! Não havia bala,
nem golpe, nem veneno pra ele. Os arroios podiam estar pelos galhos, que,
vestido mesmo, bandeava serenito a correnteza; e, pousasse no mato, sem
fogo, ou estendesse o poncho em meio o campo, dormia no mais à vontade
que nem onça, nem jararaca se achegavam. Inté o raio afrontava,
que uma tarde, já à boca da noite, em viagem, caiu-lhe um
quase em riba, lascou o umbu onde se abrigava, matou o cavalo a meio tiro
de laço e ele, nem nada. Inda, mode o pingo, de estimação,
olhou de frente o céu, com uma praga, e acendeu no mais o pito,
sem tremor. No jogo, enquanto ia orelhando a sota, a faca estava fincada
no chão, se era acampamento haragano, ou em cima da carpeta nas
vendas. E os patacões vinham vindo, e as gateadas iam-se amontoando.
Cuê-pucha, se não varejasse longe o ganho, se parava um rei
de tanta plata! Mas perdia tudo com as chinas, pelas vendas e em carreiras,
pois já se sabia que a arma le dava liga e era lei de parada não
estar com ela que, estando, ganhava na certa.
Ora, uma noite em que bebeu demais e
pegou a dormir numa pulperia, roubaram-le a adaga. Foi negaça dos
maulas e, três dias depois, pondo-se outra vez em marcha, lo charquearam.
E a’ora passe um cigarro e ouça o resto.
Lo charquearam, amiguito, e eu, que,
nesse tempo, já quebrara o chapeú de lado e, em agachada,
era como biguá dentro d’água, pois sempre saía enxuto
quando os mais iam sangrando, jurei que havia de ficar a manos na pendência
e me pus a pastorejar, os malevos, que um dia vem depois do outro e dois
dos assassinos eram conhecidos velhos. Um deles, matreiro de fama, tinha
cisma com o índio mode uma questão de cancha e o outro muito
amargo tomara na nossa ramada e chegaram a dizer... Mas, isso era voz do
povo, que minha mãe, e desafio foi china de condição!
A guerra estava no fim, não tardou Porongos, e a farrapada se viu
pelas caronas. Não me condene sem me escuitar: le digo, eu, por
mim, sempre fui contra os gallegos; mas, porém, este caso é
de sangue, me compreende?
Foi na Palma, numas carreiras, logo
depois de Ponche Verde, que nos pechemos. Lá andavam os dois acolherados,
onde um ia, o outro ia e, por que não sei, mas não se largavam
nem à mão de Deus Padre. Se um falava, o outro coçava
as armas; se um se mexia, o outro também, os dois atavam por um
só e, segundo voz do mundo, na mesma china se rascavam...
E aqui principiou a maçaroca.
A piguancha era linda e valia solita a pena de uma rascada. Mas eu ali
me arraposei e o que mirava era pegar os dois de um em um. Plata, a falar
a verdade, foi cousa que sempre mermou na minha guaiaca: estava limpo;
mas, tira laço, bota laço, como se diz, o pealo foi meu.
Ao demais, a chinoca (terneiria linda!) ficou mesmo pelo beiço e
nos arreglemos.
O que eu quero, disse-le, é que
me desarmes um deles. O outro pode atirar-se de faca e trabuco, tenho medo,
e, inda que caiam os dois, les mostrarei! Se te agrada vires comigo pra
o meu rancho, e tenho promessa de capataz, esconde a adaga de prata que
o Felisberto carrega. O Neco, esse que velhaqueie à vontade... Por
Deus! que u’a mulher é pra um homem e tu como que nasceste pra mim...
A rapargia consentiu, dei-le umas boquinhas
(ah! tempo!) e, à meia-noite, atei o ca’alo na frente e empurrei
na porta um manotaço. Um aviso... Inda o bruto não tinha
saltado do catre e já eu penetrava no rancho. Derrubei a relho aquel’tebas!
Quando o companheiro acudiu, já eu fazia relampear a adaga do bugre,
minha herança de fado, que outro bem nunca tive, mas esse me apertencia.
Lascou-me fogo e errou (havia de ser!) e ali mesmo lo acuchilhei, como
rês, no sangradouro... E nem alimpei o ferro: de vereda, fui-me ao
primeiro, que se boqueava no chão, e le taquei um tiro no ouvido,
mas bem dentro, bem no fundo... Não se abichorne, moço, que
a vida é assim... Vocemecê queria, ’tá ouvindo. E dê-me
no mais do seu místico, que o meu isqueiro se quebrou e este pito
está manheirando...
Mulher, sempre tive na idéia,
é ente de traça e precatado. A Carmen, sem eu dizer, tinha
adivinhado a vingança e, quando me despachei, já vinha de
mala feita. O meu flete era ca’alo manteúdo e unhemos a todo trapo,
eu levianito e mui concho, que tinha alimpado o meu nome e inda levava
de mota, na garupa, aquela florzita. Quando o dia apontou, já o
Taquarembó ficava pra trás, muito longe, e, atalhando, atalhando,
pelas sangas co’o sol, a trote de noite, não tardemo em chegar à
fronteira. Foi entonces que me arrodeei de guascaria alçada e me
parei nuvem. Eh! Mano! gente entonada, a daquelas bandas! Muita tora tiremo
e sempre tocavam buzina bom este gaúcho sem mancha. Castelhanos?
Me conheceram...
Mas, des’que passei na cintura a minha
adaga, tinha que ser! Era destino, era sangue! E olhe que, às vezes,
queria mudar de vida: inté carreteiro me fiz, cheguei a entrar de
peão, fui agregado sem inhapa. Mas trabalhava e não me davam
nada, quase nem desencilhava e sempre maltratado. Ao despois, pra que lutar,
era briga na certa: com o peso da adaga, me sentia outro, sacudia o poncho
pra todos, dei em beber e nunca mais me aquietei. Dizer-le que estava em
mim seria mentir. Ficava cego! Pois, amigo, tudo isso era pouco e veja
no mais o que é ser um triste de condição! Se houvesse
cana aqui!
Foi um dia de azar, quando varando o
Uruguai, com uns contrabandos, topei na barranca com o Juca Ribas, um índio
dos meus e que me disse à queima-bucha, endireitando o barbicacho,
como sempre falava: Mire, amigo, te embolaram... O gado é assim
feito: cada ponta tem um touro, e chinas, pelo mesmo conseguinte. Quando
um não pode é largar a querência ao que tem mais força.
Que eu te digo, a comadre Carmen anda metida com o Anselmo, e antes boi
de verdade que outra cousa...
Puxa, seu! Nem tinha escuitado e descasquei
logo o facão e, logo, le mandei que se explicasse. Contou-me tudo
e, entonces, le tornei:
Olhe, Juca: vou bombear a minha china
e, se você me corneteou os ouvidos, havemos de nos encontrar. Guarde
bem!
Daí me cortei que nem tento e,
nessa noite mesmo, peguei os dois nos meus pelegos... Verdade! A china
só de me ver ficava louca e, como eu parava pouco em casa, me punha
a pensar que muito pode a saudade... Pois, se juntos estavam, juntos ficaram,
o homem baleado no coração, à beira da cama, a china
retalhada, sem se mexer tanto me conhecia! Morreu que nem ovelha... isso
despois que, por desprezo no mais, degolei o outro, já defunto,
de orelha a orelha...
E não foi só: tenho comigo
muitos sangues... Nessa manhã, eu não era eu, nem sou agora.
Se me visse! O que sei é que já ia muntando e vi pela frente
o Juca Ribas, com um ca’alo a cabresto, me percurando, quem sabe? Pois,
lo derrubei a bala, um irmão! Saí no tranco, enxergava tudo
vermelho, mas tudo, e me perdi lá por longe... Quando voltei, trazia
uma escolta de muitos homens me perseguindo, e duros que nem soga, amigo!
Velhas cousas, moço, cousas à-toa,
não val’ contar! Saiba no mais que daquela apertura só me
salvou o meu rabicho pela diaba de prata, de umbigo de fora, com a cobra
grande à roda do seio e a mancha alastrando no corpo, que era toda
a folha faceada. Não me duvide: aquela arma era pra se beijar no
perigo... Cantava na bainha, se mexia no ar e, em muita peleia braba, eu
disse comigo:
Este facão veve!
E, cada vez, me arriscava mais e sentia
mais gana contra todos. Já tinha pena dos meus pingos; perdi a tiro
os meus melhores ca’alos e nunca tive um arranhão...
Pois, patrício, dia veio em que
inté essa me traiu! Eu dormia com ela nos arreios, não me
apartava nunca da sua vista e, mesmo assim, se perdeu. Pode que esteja
aonde o bugre velho sabia... E pra que encompridar? Somente direi que aquilo
me aplastou, me encaiporei e, tendo-me desguaritado dos camaradas, a polícia
me pisou no rastro e passou-me o maneador. Era sorte...
Ruínas Vivas
"Vagaroso, escarvando o chão a espaços,
um grande touro avançou, farejou a terra, e, de
pescoço estendido, como se fitasse, evocativo, as sombras nutantes
sobre os longes da noite,
atroou o escampo com um longo mugido repassado de angústia.
Outras reses acudiram, em
tropel, ao berro trágico e principiou, indescritível,
cheio de amargura, inarticulado, porém
expressivo, no silêncio do plaino, sob o crescente pálido,
o coro funerário dos irmãos do
pampa à vítima do homem.
Litania selvagem, de vozes incompreendidas,
dir-se-ia haver naqueles sons, ora esmorecidos em infinita solidão,
suaves de soluço, ora ameaçadores, em despedaçadas
explosões brutescas, mais do que um ato instintivo, - um adeus amigo,
uma solidariedade consciente, uma desordenada revolta contra o destino
implacável. Era como se imprevista vibração de ignoto
e de saudade abalasse aquelas consciências obscuras numa primeira
intuição, rompendo subitânea à luz de incerta
religiosidade, a treva densa, imperscrutada, misteriosa, do ser animal.
E era como se o amor, um amor fraterno inteligente, puríssimo, todo
de alma, unisse no mesmo culto mortuário, em face do acampamento
mudo, os feros corações dos touros xucros..."
"Era a despedida: desejava irritar até o fim aquele venta-rasgada e passou pelo sítio de rédea curta, moderando a marcha, a assobiar o Boi-Barroso..."
"Mas a alucinação foi-se, depressa,
e, batendo as pálpebras, aturdido, surpreso, o gaúcho
relanceou ao aposento seus grandes olhos aguilenhos, esgaziados de
febre."
"...balanceava o zaino nas rédeas, bancava, de arranque, para empiná-lo, obrigando-o a priscar, brioso, curveteante, largava-o de novo a galope."
"...e duas mantas de carne fresca estalejavam chamuscadas, fumarentas, ao espeto. O churrasco perfumava o rancho com o cheiro ativo dos tecidos sangrentos mal tostados."
MIGUELITO
Às quatro horas principiaram as
saídas do zaino e do Pampeiro. Este, um mouro "pé de estribo
e mão do lança", era montado por um compositor da capital,
chamado expressamente para corrê-lo, e vaidoso nos seus trajos de
jockey, jaqueta curta, calções brancos, boné azul.
Estranho ao meio, afeito à linha dos prados, certo da sua superioridade
como profissional, o Melado, alcunha com que o caricaturaram os campeiros,
observava correto, a "guascaria", convencido de bastar-lhe um hop! enérgico,
ao partir, para vencer aquele pequira, nervoso, vivo, mas sem a elegância
fria, a elasticidade e a rijeza de músculo dos cavalos de raça.
Excepcional, a carreira mantinha em dúvida, silenciosa, a própria
gauchada que se interessava pelo parelheiro do André Madruga. Tratava-se
de um produto de coudelaria, elogiado nos jornais, segundo dissera solenemente
o Aires, e as apostas corriam frouxas, garantindo quase todos a vitória
do mouro.
A Miguelito, impacientavam-no deveras
tais vaticínios: tinha confiança no crioulo, não se
lhe dava de arriscar nele qualquer quantia, e, como houvesse recebido do
negociante, à véspera, o dinheiro do seu gado, e um caixeiro-viajante
dissesse, perto, que, na situação do Madruga, "pagaria depósito",
pois "aquilo nem ia ser uma corrida".
Não sabem o que é ca’alo!
bradou, mirando atravessado o "pracista" Tenho cem mil réis no parelheiro
zaino! Pra quem quer!
Sobre boa, era intencional a parada,
uma resposta, um desafio, e ao conspecto do gaúcho, bem vestido
à camponesa, com um belo pingo recamado de lindos aperos, o moço
aceitou o jogo.
Pago, disse com deferência, tentando
desfazer, amável, a má impressão possível das
palavras precedentes.
As saídas, entretanto, continuavam,
intermináveis.
O corredor do Madruga, seu afilhado
e protegido, piá, dezoito anos, farejara o competidor: toda aquela
fleugma presunçosa não resistiria à primeira decepção.
Deliberou irritá-lo, obrigando-o a arrancar muitas vezes, sempre
mal, e começou a cortar partida, com tanto êxito que os juízes,
apesar da intenção velhaca, percebida logo, de relance nada
podiam dizer. A expectativa tornou-se angustiosa; havia, em derredor, sobrolhos
franzidos, rostos carregados, peitos opressos; e, atendendo a que os parelheiros
se não acertavam, alguém propôs "soltá-los de
tronco". Aceito o alvitre, um dos juízes, tomando de ambos os cavalos
pela rédea, dirigiu-se ao laço, largou-os.
Foi e os dois saíram acolherados,
a bater orelhas, apenas pisando a liça. Desencadeou-se, então,
o que o Tico Azambuja denominara com propriedade "a ventania da cancha".
Houve uma como vertigem; abalaram-se todos; a multidão vibrou de
ponta a ponta, sufocada, entusiástica, fremente. Gaúchos
galopavam "a toda", seguindo a raia; sujeitos ficavam roucos de gritar;
outros exaustos de correr; alagados outros em suor; e muitos como abombados,
sorrindo alvarmente...
Juntos à primeira, à segunda,
à terceira quadra, ao fim da quarta, o zaino adiantou-se do Pampeiro,
"de fiador", entrou com avanço maior na quinta e atingiu num grande
salto, o laço de chegada, vencendo de pescoço. O veredictum
foi unânime, não podia haver contestação, e
o triunfo estrondeou.
Miguelito delirava de júbilo
e foi ele quem se apoderou do parelheiro crioulo para tratá-lo.
O "cavalinho", ótimo em tiro curto, não resistiria mais trinta
passos a par do derrotado, e arfava a cair, espumando, suarento...
Do arroio, onde lhe deu um banho, guiou
Miguelito, entre victores, para a taberna; divulgada, popularizara-o a
sua aposta; e o Madruga, satisfeito, oferecera-lhe um churrasco e um copo
de cerveja.
Quando voltou ao campo, trasmontava
o sol. Nuvens amantelavam-se formidáveis no ocaso, escorrendo sangue,
vomitando chamas, numa cromatização grandiosa, superpostas,
em escarpas, turriformes; não soprava mais aragem; a noite ameaçava
ser quente; e, do pessoal, uns ausentavam-se, estrada além, poncho
dobrado à garupa, outros debandavam pelo comércio, pelas
barracas, pelo salsal. Sobre o âmbito do acampamento, pássaros
quebravam, retorciam o vôo, demorados, como se fossem curiosos da
agitação humana; às barrancas do arroio, surgiam as
árvores em dois tons, doiradas as grimpas e de corpo cosido numa
extensa, alta muralha escura; relinchos prolongavam-se, ecoantes, longe;
e na cancha, ora quase deserta, alguns jogadores tiravam o tempo de um
cavalo, para as carreiras do dia seguinte.
Miguelito, que bebera em demasia, e
sentia às fontes um calor latejante, maneara o tordilho no pátio
da venda para empreender uma caminhada a pé através o campo.
Perdera de vista o Aires, desde a corrida do zaino; não avistava
nenhum conhecido; andou a esmo. Transviando passos, num mal-estar crescente,
foi ter a uma espécie de praça, formada por carretas, a curto
espaço da baiuca.
Heterogênea e brutal era ali a
reunião da gauchada; havia gente de todas as profissões,
de todas as cores, de várias raças; e a sua reunião
afastava, repelia, prudentemente aos transeuntes.
Miguelito, porém, estacou, satisfeito:
entre os presentes avistara Jango Sousa, vestido como outrora, forte e
frio, afastado, indiferente, como de pedra, com a mesma linha impassível
de sempre...
Fenômeno curioso: nada o ligava
aquele vagabundo dos campos, de reputação suspeita, e, no
entanto, ao pensar no pago, era a dele uma das figuras mais simpaticamente
evocadas.
Por quê?
Talvez que a destemida figura hirsuta,
ruiva e grande, esgrouviada, do campeiro de casasse, ressurreição
dos velhos tempos, com as que recebera nos seus antigos sonhos de guerra
caudilhesca; talvez algum dia pensasse em se lhe aligar à vida solta;
talvez apenas por uma camaradagem agradável de galpão...
De um modo ou de outro, tendia irresistivelmente
para o gaúcho; sabia ser estimado por ele; e, vendo-se agora, ambos,
de impulso próprio, se procuraram, um com toda a sua exuberância
própria, outro temperando com uma fugitiva expressão de alegria
a sua característica indiferença pelas pessoas e pelas coisas.
Seu Jango!
Miguelito!
Abraçaram-se. O Jango explicou
que estava ali "por estar:" viera para assistir à carreira do dia;
tinha que fazer, fora; e, se não fosse o convite de um dos carreteiros
para churrasquearem juntos, já estaria na estrada... Miguelito devia
ficar: seriam companheiros no mais...
Miguelito ficou.
(Ruínas vivas,
capítulo VI, 1910.)
A CARNEAÇÃO
Iam carnear. A rez, vaquilhona osca
de uns dois anos, boa de carnes, comprada ao Bento, já estava presa
pelas aspas; escolheram o Jango para matá-la; porém os cinchadores
não conseguiam esticar convenientemente os laços e a cena,
complicada pelos acidentes do terreno, ia além da expectativa, impacientando
a todos, gulosos de carne fresca a chiar ao fogo.
Embolada, a cabeça gacha, de
um lado, a língua pêndula, a babar-se em longos fios prateados,
ela berrava escornando desajeitadamente o ar. Jango Sousa, que a rodeava,
de mangas arregaçadas e de faca em punho, a bainha de couro preto
tenteado a bater contra o tirador de vaqueta, reluzente ao sol a folha
bem afiada, tinha no rosto, não obstante o hábito, um ligeiro
rictus desmentindo-lhe a fleugma. E não se ajeitava, adiantando-se,
retrocedendo, passando por debaixo das tranças do couro, indo a
ferir e fugindo, à espera de momento oportuno para bem golpear.
A uma ordem sua, um dos laçadores passou a trama ao tronco de uma
árvore; o outro paleteou o cavalo: as duas cordas vibraram, tensas,
no espaço, e a novilha parou, firmando as patas na grama revolta.
Decorreu um instante de suprema imobilidade e apenas leves frêmitos
percorriam os laços, animando-os de ondulações serpentinas.
Queda, a terneira deu azo a que se lhe conchegasse o gaúcho, desgarronando-a,
seguro à ponta da cola. Um dos cavalos, arisco, desviando-se, suxou
o laço e a osca, apoiada na perna sã, de pêlo desenrugado
sobre a giba, à arqueadura da espinha, atirou uma violenta marrada,
e só depois do cavaleiro dominar a besta foi possível a sangria.
Mas, se o homem medira com certeza o jarrete, errou no golpe ao pescoço:
ferida, a vaca ainda se manteve em pé, balouçando os cornos
entre os laços remitidos e tentando escoucear com a perna retalhada,
cujos músculos vãmente retesava; e só ao tirão
seco de num dos ginetes abateu, escabujando, um jorro de sangue borbulhante.
Devia-se renovar o corte; preparava-se já para fazê-lo Jango
Sousa; porém Miguelito, que despira, num ápice, o casaco,
achegou-se com surpresa de todos, pois não o conheciam, curvou-se
sobre o corpo estertorante e, friamente, suavemente, afundou-lhe o facão
no sangradouro, torcendo-o para tassalhar o músculo cardíaco.
Era decisivo, esse: à dor, convulsou-se a vítima num sobressalto
de morte, encolhendo-se toda, com um mugido soluçado, num respiro
ortopnéico de ar. As bordas sangrentas do talho, unindo-se, apertaram
a lâmina cravada, cujo cabo repuxou a mão trigueira que o
premava com os dedos recurvos, como grampos. Arrancada a folha enrijecida,
gotejante, saiu ringindo nas cartilagens espedaçadas, de onde, mais
grosso, aos coágulos, golfejou um resto de cruor. Limpou-a Miguelito
passando-a algumas vezes no couro arrepiado: luzia-lhe cerrada, por entre
os lábios entreabertos, a dentadura forte, muito alva; e saíra-lhe
à cara o gozo íntimo, inconscientemente feroz, algo de sensualidade
profunda, ancestral e sinistra. A novilha, entretanto, agonizava, extinta
a consciência num último impulso baldado de fuga espavorida.
Sacudiu-a o derradeiro arquejo; inteiriçou-se, rígida; a
língua, de lixa, esbranquiçada, caiu mais, para fora, endureceu
de um lado e os olhos foram-se embaciando aos poucos, refletindo na retina,
como em uma guache minúscula, o espetáculo da planície
com os salsos próximos e a figurilha do matador, inclinado, o braço
estendido, a suster a arma, em que os raios de luz morrediça do
ocaso deixavam agora, vez por outra, postremos revérberos. Um cachorro
lambia docemente, às costelas, o sangue colado à pele, e,
sobre a sangueira que empapava as ervas, o leitão de um dos carreteiros
fuçava cheio de verocidade, coinchando. Foi além, avizinhou-se,
introduziu o focinho, de cerdas úmidas de grúmulos rubros,
na golpada hiante, bafejando-a, arreganhando-a, remorado a princípio,
numa garícia de gula mansa, depois rapidamente, a grunhir, sôfrego,
às cabeçadas. Espantaram-no para tirarem o couro. Os tecidos,
quentes, riscados, fundo, pelas facas, estremeciam ainda, meio vivos; feveras
crispavam-se; havia repuxamentos demorados de músculos, remexer,
contrações de nervos...
Uma irradiação postreira
incendiava de todo cabo, no poente, as nuvens amontoadas; era mais terreno,
atmosfera acima, atmosfera abaixo, o girar dos corvos contornando a carretama;
adensava-se, da parte do arroio, o muro de sombra das árvores, de
ramaria fundida na mesma soturna massa, impenetrável ao esguardo;
e, à aproximação da treva, subia de ponto no acampamento
o resfolego de prazer da gente solta. Na praça formada pelos carros,
acendera-se uma fogueira; negros, caboclos, homens brancos apertavam-se
ao redor, atraídos pelos assados; manuseavam-se espetos; o bucho
da rez, arrojado aos cães, exalava um cheiro acre de ervas esmoídas;
e continuamente ressoava, entre risos, o lique-lique seco, áspero
e frio das lâminas das facas passadas com rapidez nas chainas de
aço.
...
Ruínas vivas, capítulo VI, 1910.
VII
Toda uma ponta de gado, aquerenciada
nos arredores, se reunia em frente às carretas, no acampamento adormecido,
ao luar. Da novilha carneada só restavam no solo úmido de
sereno as guampas, o couro estaqueado, os cascos, e a se desprender, sutil,
das ervas, um vago cheiro de sangue morto, em coalhos. Comuníssima
na campanha, a cerimônia foi simples e tocante. Vagaroso, escarvando
o chão a espaços, um grande touro avançou, farejou
a terra, e, de pescoço estendido, como se fitasse, evocativo, as
sombras nutantes sobre os longes da noite, atroou o escampo com um longo
mugido repassado de angústia. Outras vezes acudiram, em tropel,
ao berro trágico e principiou, indiscritível, cheio de amargura,
inarticulado, porém expressivo, no silêncio do plaino, sob
o crescente pálido, o coro funerário dos irmãos do
pampa à vítima do homem.
Litania selvagem, de vozes imcompreendidas,
dir-se-ia haver naqueles sons, ora esmorecidos em infinita mansidão,
suaves de soluço, ora ameaçadores, em despedaçadas
explosões brutescas, mais do que um ato instintivo, um adeus amigo,
uma solidariedade consciente, uma desordenada revolta contra o destino
implacável. Era como se imprevista vibração de ignoto
e de saudade abalasse aquelas consciências obscuras numa primeira
intuição, rompendo subitamente, à luz de incerta religiosidade,
a treva densa, imperscrutada, misteriosa, do ser animal. E era como se
o amor, um amor fraterno inteligente, puríssimo, todo de alma, unisse
no mesmo culto mortuário, em face do acampamento mudo, os feros
corações dos touros xucros.
Tapera
"Mas, depois, viera a guerra e Máximo,
protegido de um chefe governista, incorporou-se às
forças republicanas, ao passo que o pai, acompanhando o estancieiro
em cujo campo morava,
alistou-se na gente de Juca Tigre, sucumbindo logo em seguida no Inhanduí,
quando numa
atropelada tentava tomar a tiro de laço um canhão do
inimigo."
"E a vozeria reboava, ecoava o tropel, boleadeiras silvavam, brilhavam lâminas, trocavam-se tiros, ginetes e animais tombavam de roldão, ou eram pingos em arremessada carreira após a queda dos cavaleiros."
"...vagamente ciosa das remembranças de amor que, brandas, ressoavam na singelez nostálgica das doces músicas crioulas."
"- Haviam de ver! ... Ou bem se faz ou não
se faz; e aquela intrigante e linguaruda ia ficar
sabendo como se prepara um festo..."
"É a nossa única estação
de matiz e crepúsculo: adoçam-se os tons violentos, a névoa
azulece e doira-se."