Pecuária no Sul do Brasil
O padre Antonio Sepp
von Rechchegg, jesuíta da província espanhola do território
das Missões (onde hoje está o Rio Grande do Sul), deixou
em fins do século XVII um testemunho sobre suas atividades missionárias.
Neste trecho, refere-se à pecuária, principal atividade exercida
pelos habitantes da região, em sua maioria índios guarani.
[...] A terra, nota
bene, é tão fértil, que por toda a parte encontrarás
uns 12 a 15 mil bois e vacas, dos maiores e mais bonitos, deitados no capim
ou pastando. São livres e não fazem parte de nenhum rebanho.
Se te aprouver carnear uma rês, basta ires ao campo, atirar-lhe uma
corda pelos chifres, trazê-la para casa; pertence-te. Nosso colégio,
recentemente, mandou reunir 20 mil cabeças de gado e o vendeu por
12 mil talers. Portanto, a cabeça sai mal por um gulden. Não
seria isto um alto negócio para os mercadores de gado e corretores
da Europa! Nestes bois e touros, que são extraordinariamente crescidos
e todos brancos, a gente só considera o couro e quiçá
também a língua. A carne, que sobrepuja a das reses húngaras,
deixa-se abandonada no campo, como pasto para as aves de rapina e cães
selvagens. [...] Nota bene: há aqui índios e negros (ambos
bons católicos) e espanhóis. Os índios só comem
carne de rês, sem pão e sem sal, e quase crua. No campo aberto,
atiram o laço em direção de um boi, com uma faca bem
grande cortam-lhe um nervo na pata traseira, de modo que o animal tem que
cair. Depois, cravam a faca referida na cabeça do animal, atrás
da nuca. Após o terceiro golpe, a rês deixa de viver. Cortam-lhe,
então, o pescoço, atiram-lhe a cabeça fora e a estripam.
Isso tudo é
feito rapidamente, numa metade de um quarto de hora. Nesse meio tempo,
outros índios fazem um fogo de arbustos de cardos, e enquanto aqueles
estripam o animal, estes já cortam, com suas facas compridas, pedaços
de carne daqui e dali, espetam-na em varas de pau, mantêm-na um pouco
sobre a fumaça e o fogo, mal deixam que ela esquente e já
a enfiam na bocarra voraz, devorando-a de tal modo que o sangue escorre
por toda parte. E tão voraz é este povo selvagem indígena,
que, enquanto um quarto de boi vai assando de um lado, vão cortando
pedaços do outro. Assim, o assado já é devorado enquanto
se assa. Dois índios devoram com facilidade um boi todo, em uma
ou duas horas. [...]
Pelo meio-dia, à
tardinha e à meia-noite, não se vê da minha aldeia
outra coisa senão um campo infinitamente extenso, bem liso e plano,
sobre o qual rebanhos incontáveis de gado pastam o capim verde.
Não temos estrebarias, mas deixamos o gado, inverno e verão,
dia e noite, no campo, tampouco ceifamos e não fazemos feno, mas
o capim de quase um côvado serve o ano todo de pastagem. Também
não precisamos de pastores ou guardas, porque aqui não há
ladrões. Se o cozinheiro quer ferver um pouco de leite - costumamos
dar aos doentes diariamente um prato de leite fervido - é só
mandar o primeiro índio para o campo à frente de minha casa.
[...]
Há tantos bois,
vacas, terneiros e cavalos em nossos campos, que tu em muitos lugares nada
mais vês, de tanto gado gordo e bonito. As vacas maiores custam aqui,
quando muito, quinze kreuzers, não em dinheiro, mas em valor monetário.
Entende-se que essas vendas só se fazem de uma aldeia para outra
ou para os espanhóis, porque dentro dos aldeamentos o padre missionário
distribui, gratuitamente, duas vezes ao dia, a carne que os índios
precisam. [...]
Há pouco, minha
aldeia saiu campo afora para arranjar vacas para a alimentação
diária deste ano. Em dois meses reuniram 50 mil vacas e as trouxeram
para o meu aldeamento. Tivesse eu mandado, eles também teriam trazido
70, 80 ou até 90 mil. Para esses 50 mil animais não gastei
um ceitil. O maior trabalho e arte consiste em que os índios reúnam
tão jeitosamente os animais, que nenhum estoure e dispare. O que
conto desta minha aldeia também vale para as 26 outras reduções.
O benévolo leitor
poderá calcular facilmente quantas reses se gastam aqui ao todo,
quando eu só já consumo tantas, e quantas ainda ficam sobre
os campos infinitos do Paraguai, para a procriação indispensável.
Nossos três navios levaram 300 mil couros para a Espanha, mas não
de vacas, e sim de touros mais crescidos. Aqui, um couro sai a quinze kreuzers,
que vem a ser o salário para o serviço de tirá-lo.
Na Europa, no entanto, em qualquer parte, vende-se um couro de boi como
este por seis e mais reichstaler. Daí poderá o benévolo
leitor mais uma vez fazer nova conta, calculando o lucro indizível
que os espanhóis tiram só do couro. São as verdadeiras
minas indígenas de ouro e prata de Sua Majestade Real. Porque, de
resto, não se encontra ouro nem prata entre os índios, e,
até o nome de dinheiro lhes é inteiramente desconhecido.
Quando os índios compram algo dos espanhóis, fazem-no em
troca de mercadorias, não passando de mero negócio de troca,
distando muito e muito do verdadeiro comércio de compra e venda.
E a palavra usada é só esta: Se tu me deres tantos bois e
tantas vacas, dar-te-ei tantos e tantos côvados de tecido de linho;
se me deres tua faca, dar-te-ei meu cavalo. Desta maneira, os índios
tornam verdade o anexim usado pelas crianças européias, quando
dizem "dar um cavalo por um apito", porque, na realidade, aqui um apito
vale mais do que o melhor e mais lindo cavalo, por causa da superabundância
de cavalos e da carência de apitos. [...]
Também não
faltam galinhas, leitões, cordeiros, ovelhas, cabras. A aldeia de
São Tomé já há anos contava com mais de 40
mil ovelhas.
Aldeamento que não
fosse capaz de criar de 3 a 4 mil cavalos de montaria seria considerado
pobre. Particularmente apreciadas são as mulas, possuindo eu também
um animal bem criado. Um cavalo vale, quando muito, um taler, não
em dinheiro, mas em fumo, mate, agulhas, facas ou anzóis.
O Continente do Rio
Grande. Estancieiros e Peões
No sul do continente
americano, o gado foi introduzido pelos jesuítas espanhóis
em suas missões religiosas às margens do rio Uruguai. Com
os ataques realizados pelos bandeirantes paulistas apresadores de indígenas,
as missões foram destruídas e o gado ficou solto pelos pampas,
os campos do "Continente". Esse rebanho reproduziu-se rapidamente, passando
a viver em estado selvagem.
No final do século
XVII e início do século XVIII, os paulistas começaram
a se interessar por esse gado. A necessidade de carne e couro para abastecer
a região mineradora incentivou o deslocamento para os campos do
sul. Formaram-se duas correntes de penetração: uma pelo litoral,
a partir de Laguna, e outra pelo interior, percorrendo os campos do planalto
que unem Curitiba ao Sul.
Ao contrário
do sertão nordestino, o sul apresentava condições
muito favoráveis à criação: relevo plano, pastagens
de boa qualidade, clima ameno e um grande número de rios e riachos.
Nas extensas planícies do Continente do Rio Grande a pecuária
desenvolveu-se rapidamente. Nem os conflitos com os índios, nem
os problemas de fronteiras entre portugueses e espanhóis conseguiram
deter sua expansão.
Desejando garantir
a posse do território, numa região submetida a constantes
lutas fronteiriças, a Coroa portuguesa distribuiu muitas sesmarias,
o que determinou a concentração de terras nas mãos
de alguns poucos colonos. Formaram-se imensas propriedades: as estâncias.
Como no sertão
nordestino, também no Sul uma sesmaria deveria ter três léguas
(cada légua corresponde a 6600 metros). No entanto, esse limite
nem sempre foi obedecido. Algumas chegavam a alcançar mais de vinte
léguas. Os colonos acabavam ganhando muito mais, porque pediam terras
em nome dos filhos. Alcides Lima, em "História Popular do Rio Grande
do Sul", relata que um observador próximo dos acontecimentos escrevia
em 1808: "Requeriam-se sesmarias não só em nome próprio,
mas no das mulheres, filhos e filhas, de crianças que ainda estavam
no berço e das que ainda estavam por nascer". No final do século
XVIII já havia mais de 500 estâncias na Capitania do Rio Grande
de São Pedro, atual estado do Rio Grande do Sul.
Nas estâncias
o rebanho vivia solto e sem grandes cuidados. Como nas fazendas do Nordeste,
não havia serviço permanente para a maioria das pessoas.
Os peões pastoreavam o gado sob as ordens do capataz. Eram trabalhadores
livres, brancos, índios ou mestiços, sempre prontos a se
defender de ataques dos espanhóis, dos índios não
submetidos, dos contrabandistas e dos ladrões. É essa a origem
do gaúcho, misto de vaqueiro e soldado, sempre montado a cavalo.
Em caso de necessidade,
como por ocasião da inspeção, marcação
e castração do gado, eram recrutados peões extras
entre a população nômade que circulava na campanha.
No início do
século XIX, o viajante Saint-Hilaire dizia: "A pecuária nesta
região pouco trabalho dá. O único cuidado que reconhecem
necessário é acostumar os animais a ver homens... a fim de
que não fiquem completamente selvagens, deixem-se marcar quando
preciso for e possam ser laçados os que se destinarem ao corte ou
à castração. Para tal fim o gado é reunido,
de tempos em tempos, em determinado local. A essa prática chamam
"fazer o rodeio" e ao local onde prendem os animais dão o nome de
rodeio".
O rodeio, realizado
duas vezes por ano, era dia de diversão. Nele não faltavam
as carreiras de cavalos, o churrasco e o chimarrão, até hoje
elementos incorporados aos costumes do Rio Grande do Sul.
Inicialmente a principal
atividade era a produção de couro, exportado em grande escala.
Freqüentemente abatia-se o animal apenas para tirar-lhe a pele. Como
no sertão nordestino, também para o gaúcho o couro
foi muito importante, a ponto de o historiador Capistrano de Abreu afirmar
que no sul também houve uma "época do couro".
As Charqueadas
Com o surgimento da
indústria do charque modificou-se esse quadro. As charqueadas permitiram
o aproveitamento da carne até então sem valor de mercado.
A primeira charqueada foi realizada em 1780, pelo cearense José
Pinto Martins, nas margens do rio Pelotas. As instalações
eram simples constando de um galpão onde se preparava e salgava
a carne e dos secadores ao ar livre.
As charqueadas representaram
uma verdadeira revolução no panorama pastoril do Rio Grande
do Sul, integrando a região ao abastecimento das populações
coloniais, principalmente da região mineradora. No final do século
XVIII a indústria do charque conheceu rápido desenvolvimento.
Em 1797 a capitania já exportava 13 mil arrobas (cada arroba corresponde
a aproximadamente 14,7 kg de charque). A carne era enviada ao Rio de Janeiro,
Bahia, outros portos do litoral e até exportada para Havana, em
Cuba.
Enquanto na atividade
criatória os trabalhadores eram homens livres, como no sertão
nordestino, nas charqueadas o escravo negro foi usado com freqüência.
A capitania do Rio Grande foi considerada o "inferno dos negros", pois
lá tratavam os escravos rudemente, como bem retrata a lenda do Negrinho
do Pastoreio.
No final do século
XVIII, as diversas regiões da Colônia estavam ligadas entre
si pelos "caminhos do gado". Avançando por quase toda a extensão
do território, o gado abriu caminhos que formaram as bases de muitas
ferrovias e rodovias. Criou-se um mercado interno, promovendo-se intenso
comércio: gado e escravos do Nordeste e reses e mulas do Rio Grande
do Sul. Apesar de ter sido uma atividade secundária, a pecuária
desenvolveu o mercado interno, possibilitando que a maior parte dos lucros
gerados por ela ficassem na Colônia.
Enquanto no Nordeste
a colonização progredia com a atividade açucareira,
a capitania de São Vicente vivia uma economia de subsistência.
Distantes de outras capitanias e da Metrópole, os habitantes vicentinos
subiram a Serra do Mar, estabelecendo-se na vila de São Paulo, originária
do colégio que os jesuítas haviam fundado no planalto de
Piratininga. Dessa vila partiram as bandeiras. Avançando pelo sertão
os bandeirantes atacaram as missões jesuíticas, descobriram
o ouro e criaram pousos que deram origem a inúmeras vilas.
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