Ilmo. e Exmo. Sr.
As repetidas ordens e providências com que os nossos Augustos e Soberanos
tem sempre recomendado aos governantes do Brasil a conciliação
e bom tratamento dos índios, formaram desde o princípio do
meu governo os meus maiores desejos de atrair as nações selvagens,
que confinam com este país; com feito do auto incluso, que por cópia
tenho a honra de apresentar a Vossa Excelência, com jeito e promessas,
consegui por um Cacique [96r.] dos índios charruas, por nome D.
Gaspar, viesse pessoalmente a esta capital implorar a proteção
de Sua Alteza Real e pactuasse aqueles ajustes que julguei mais vantajosos;
persuado-me que um semelhante passo não deixará de ser considerado
sobre maneira útil e importante por todos os lados, pois não
só se irão assim reduzindo ao premio da nossa sana religião
estes infiéis ha tantos séculos sepultados na cegueira do
paganismo, mas ainda de baixo mesmo do ponto de vista político,
uma tal aliança é de sumo interesse ao Estado em ocasião
de um rompimento com a nação confiante, sendo estes indivíduos
os mais destros no manejo dos cavalos e os mais práticos desta
campanha, por cujos motivos, se tem pelo sempre temer e recear dos espanhóis,
que ansiosamente desejam sua total extinção, e assim no tempo
da paz servindo-nos de uma formidável barreira contra qualquer
surpresa dos nossos vizinhos, na guerra sem despesas à Real Fazenda
aumentarão o número dos hostilizadores.
Desejarei que estas medidas, cogitadas pelo meu zelo em defensa e
abono deste governo sejam igualmente dignas da aprovação
de Vossa Excelência. Porto Alegre, 25 de Setembro de 1806.
Ilmo. e Exmo. Sr. Luís de
Vasconcelos e Sousa
Ilmo. e Exmo. Sr. Visconde de Anadia
Ilmo. e Exmo. Sr. Conde de Vila
Verde
[a] Paulo José da Silva Gama
[96v.] N.B. Segue-se a cópia do auto que trata o oficio retro.
Cópia
Aos dezoito dias do mês de Julho de 1806, nesta Vila de Porto Alegre,
na sala da residência deste governo, onde se achava o Ilmo. e Exmo.
Sr. Governador desta capitania Paulo José da Silva Gama, acompanhado
da principal nobreza desta vila, compareceu um Cacique dos povos charruas,
que habita no sítio chamado Vararaviai ao Sul do Rio Ibicui, perto
da guarda portuguesa Nhandai e então em idioma guarani, que se fazia
entender por meio do seu Língua ou intérprete Agostinho Martins,
disse que ele se chama D. Gaspar, que era Chefe de um toldo ou povo, que
constava de 50 indivíduos de armas e entre todos (incluindo um e
outro, sexo e menores), 150 pessoas, que vinha procurar a proteção
do dito Sr. Governador para viver em paz e sossego, no mesmo sítio
em que se achava, de baixo do amparo e abrigo da nação portuguesa,
com quem só ter amizade, permitindo que nem sua gente, nem suas
mulheres, nem filhos fossem jamais perseguidos ou deteriorados; o que sendo
ouvido lhe respondeu o Exmo. Sr. Governador, que em nome do Príncipe
Regente Nosso Senhor, Nosso Augusto Soberano, prometia a ele e a seus [97r.]
subordinados toda a proteção e amparo e que sempre achariam
na nação portuguesa a melhor amizade, contanto porém
que eles nos correspondessem em todos os tempos com iguais provas de amizade
e boa fé e aliança, conservando-se em sossego e sem perturbarem
e roubarem as estâncias e estabelecimentos da nação
espanhola, enquanto com esta tivessemos paz, mas que em tempo de guerra
se uniriam as tropas portuguesas e seriam obrigados a dar-lhes todo gênero
de auxílio e socorro; que praticando assim lhes protestava, que
se algum vassalo português levemente os ofendesse e insultasse, seria
exemplarmente punido.
O que tudo sendo prometido pelo mencionado Cacique D. Gaspar mandou o dito
Exmo. Sr. e alguns dos principais Assistentes. Eu o Tenente de Dragões
Manuel Lopes de Carvalho, que sirvo de Secretário deste Governo,
o escrevi.
[a] Paulo José da Silva Gama
[a] Agostinho Antônio de Farias
[a] Luis Corrêa Teixeira de Bragança
Intendente da Marinha
Ouvidor Geral da Comarca
[a]José Feliciano Fernandes Pinheiro
[a] Francisco das Chagas Santos
Juiz e Ouvidor da Alfândega desta
Capitania Tenente Coronel Engenheiro
[97v] [a] Joaquim Felix da Fonseca
[a] Feliz José Matos Pereira
Sargento Mor da Artilharia da Corte
Sargento Mor de Infantaria e Artilharia
Fonte: Anais do Arquivo Histórico do RS Vol.10
Narrativas sobre os Charruas
Falando sobre os Charruas, vem muito a propósito as narrativas de
que passamos a nos ocupar.
Entre dois afluentes do rio Ibyrocai, município de Alegrete, existe
uma boa extensão de campo de lindas pastagens, onde erram, ainda
hoje, grandes bandos de avestruzes e grupos de garbosos veados brancos,
achando-se o dito campo, atualmente de propriedade do sr. Olinto Nunes,
bem povoado de gados, principalmente vacum, cavalar e lanígero.
Nesse campo, próximo ao afluente do rio Ibyrocai, que corre ao sul,
de leste para oeste, deve existir ainda um serrito agudo, denominado serro
dos Charruas, nome que lhe vem das duas tribos dessa nação
indígena, que por ali erravam, sobre o dorso de briosos corcéis,
armados de lança, flechas e boleadeiras, diferindo das do gaúcho
por serem de pedras sulcadas, por onde se atavam as guascas dos extremos
da soga e não serem retovadas ou cobertas de couro, franzido no
extremo do feixamento do retovo onde são presas as sogas, como são
as do gaúcho, tendo três pedras, sendo uma menor, chamada
manicla.
Esses índios, guerreiros indômitos, viviam ali da caça
aos quadrúpedes silvestres, tais como veado, o cervo, o porco-do-mato,
de aves, tais como avestruz de gado vacum e cavalar.
Diversas vezes tinham fortes refregas com os espanhóis da banda
oriental ou da região plantina e algumas com portugueses, pela maior
parte açorianos, primeiros povoadores do Rio Grande do Sul.
Passava-se o ano de 1805, quando o falecido Gaspar Nunes de Miranda, natural
do Rio Pardo, avô materno do sr. dr. Álvaro Nunes Pereira
e tio avô do autor destas linhas, aventurou a empresa de explorar
os campos entre o Uruguai e o Ybyrapuytan, sendo ele um dos primeiros fundadores
do Alegrete.
Desde as primeiras excursões que fez, levava consigo, como companheiros,
um preto velho e um índio manso.
Ao chegar Gaspar Nunes naquelas paragens, com habilidade rara e perseverança,
conseguiu logo fazer boa amizade com o cacique de uma das duas tribos,
e assim também com ela própria, não conseguindo outro
tanto com a outra tribo, que não o via com bons olhos.
O explorador referido tratou logo de se estabelecer no dito campo, onde
construíra uma casa coberta de palha fortificou-a, como pôde,
sendo ali o começo da estância qua deixou aos seus numerosos
decendentes.
Nesse sítio viveu Gaspar Nunes rodeado de feras e de índios
selvagens, Charruas e Minuanos. Os tigres ali andavam aos grupos não
pequenos, perseguindo as grandes varas de porcos do mato, que existiam
abundantemente naquele sítio.
Ao estabelecer-se, empreendeu ele negócio com os Charruas amigos;
comprava destes couros de gado, de tigre e dos demais quadrúpedes,
e outros produtos indígenas, e vinha vendê-los em Rio Pardo.
Desta cidade levava ele diversos artigos de primeira necessidade, fazendas,
facas, machados, aguardente, fumo, açúcar, ervamate e miçangas,
que vendia aos índios a troco dos citados artigos.
O transporte para esse fim era feito em numerosos cargueiros.
Essa vida cheia de aventuras e sobressaltos levava Gaspar Nunes, quando
rebentou a guerra com os espanhóis do Prata. Com este acontecimento,
juntou-se ele às forças do denodado general Abreu e com elas,
no posto de tenente de milícias, meteu-se operações
militares.
Certo dia, andando ele em um grande esquadrão que deliberou atacar
os Charruas da tribo amiga, ao dar-se o tiroteio preliminar da carga, o
tenente Nunes avançou e parou-se entre a força atacante e
os índios.
Nesse momento, os outros oficiais da força lhe perguntaram: “mas
que é isto, Nunes? Queres te opor ao ataque contra estes índios
traiçoeiros?”
Em resposta lhes disse o tenente: “Este cacique não o matemos, é
meu amigo”. E assim retiraram-se os índios, salvos do ataque e da
morte.
Passados tempos, depois da guerra, voltando o nosso explorador à
viada campesina do trabalho e a negociar com os índios, um dia,
vindo ele com muitos cargueiros de sortimento e tendo feito presente de
aguardente ao cacique, este bebeu-a em demasia e caiu em um sono profundo.
Nesse ínterim, um índio subchefe, imediato do cacique, não
gostando de Nunes e aproveitando-se da circunstância de estar o cacique
dormindo, embriagado, intentou agredí-lo.
Começou por insultá-lo, mostrando o propósitos de
atacá-lo.
Nunes, porém, observando-o atentamente, e vendo que o índio
o agredia mesmo, mostrou-lhe a pistola e disse-lhe, em língua indígena,
que ele conhecia perfeitamente: “Se te mexes dahi, eu vou ver o sol
do outro lado da tua cabeça”. Sem dúvida, com isto, querendo
dizer: varo-te a cabeça com uma bala.
Em dada fase da troca de palavras entre o índio e o tenente Gaspar
Nunes, eis que se acorda seu o cacique, seu amigo, do sono profundo em
que se achava, e levantando-se acometeu o índio com o cabo de ferro
de um relho, quebrando-lhe a cabeça e deitando-o por terra, ficando
ele, desta forma, impossibilitado de realizar o ataque na pessoa de Nunes.
Outra ocasião, andando o tenente Nunes em uma excursão, perdeu-se
no campo, tendo que dormir, por causa do intenso frio que fazia, em uma
cova de touro e de cobrir-se com macegas.
Ao amanhecer, sendo ele ali encontrado pelos índios da tribo inimiga,
já o iam estes matando, quando chegou o cacique amigo em seu socorro,
pondo-os em debandada e libertando-o.
Mais de uma vez assim deu-lhe o chefe Charrua provas de lealdade, pagando-lhe
na mesma moeda o risco a que tenente Nunes se expusera, à frente
da força atacante, em sua defesa e dos seus índios.
Notas do dia 26 de maio. Começaremos fazendo um pequeno aditamento
ao que ficou exposto em notas do dia 24 do corrente. E tem este aditamento
um duplo fim.
Primeiro – Havendo falado das diferentes tribos indígenas que povoavam
o Rio Grande do Sul e tendo cometido uma omissão, passaremos
a preenchê-la.
Queremos nos referir aos – Yaros, nação feroz, de costumes
semelhantes aos Charruas, cavaleiros como estes, e somos conduzidos a crer
que eles habitavam para as bandas do rio Quaraí, e mais, que o nome
do rei das campinas do sudoeste, o majestoso – Serro do Yaráo, ou
Serro Yaráo tem origem do nome dos ditos índios.
Segundo – Tendo dito acima que, conforme afirmação do P.
Teschauer, antes da conquista pelos portugueses, o Rio Grande do Sul figurava
nos mapas antigos como parte integrante do Paraguai e, desde 1617, do de
Buenos Aires. Referindo-se, portanto, a mapas históricos, fazem-no
sempre sob as demonstrações mencioinadas.”
E é como se explicam, nos séculos XVII e XVIII, as freqüentes
e prolongadas excursões no território que forma hoje nosso
Estado, pelos jesuítas do Paraguai e fora dos 7 povos de Missões,
fundadas por eles, na margem oriental do Rio Uruguai, mais a fundação
de outras reduções destruídas pelos portugueses conquistadores,
tais como o povo de Santa Tereza, na serra dos Tapes, e outras nas margens
do rio Jacuí.
João Cezimbra Jacques - Usos e Costumes do RS.
Dicionário Charrua
[segundo versões: 1) do "sargento mayor" Benito Silva (-), que estivera
refugiado entre os charruas e que os comandara como chefe militar durante
cinco meses, logo voltando a encontrar um grupo reduzido, em 1840, no Rio
Grande do Sul, permanecendo alguns dias em seus toldos; 2) de uma moça
do oficial Manuel Arias (x) - ambas versões recolhidas pelo Dr.
Teodoro Miguel Vilardebó, respectivamente em 1841 e em novembro
de 1842; 3) e as três palavras recolhidas pelo religioso jesuíta
Florian Paucke S.J. (*), em meados do séc. XVIII]
ADJETIVOS
* bilu - belo, formoso
CORPO HUMANO
x ej - boca
x isbaj - braço
x is - cabeça
- sepé - lábio
x guar - mão
x ibar - nariz
x ijou - olho
x imau - orelha
x itaj - cabelo
x atit - pé
FAUNA
x berá - avestruz
x jual - cavalo
* godgororoy - presumivelmente uma onomatopéia do grito do ganso silvestre
x mautiblá - mula
* lojan - cachorro
x beluá - vaca
NOMES SUBSTANTIVOS
x hué - água
- quícan - aguardente, cachaça
x it - fogo
x guidaí - lua
x itojmau - rapaz
x chalouá - moça
- sisi - mistura de pó de osso e de tabaco que os charruas mascavam
NÚMEROS
- yú x i-u - um
- sam x saú - dois
- deti x datit - três
- betum x betum - quatro
- betum yú x betum iú - cinco
- betum sam - seis
- betim detí - sete
- betum arrasam - oito
- baquiú - nove
- guaroj - dez
OBJETOS
- lai - bolas
- lai sam - boleadeira de duas bolas, para bolear avestruzes
- lai detí - boleadeira de três bolas, para bolear cavalos
- tinú - faca
ORAÇÕES
- misiajalaná - fique quieto
- andó diabun - vamos dormir
PARENTESCO
- guamanaí - cunhado
- inchalá - irmão
VEGETAIS
x lajau - "ombú"
VERBOS
- babulaí - boleado
x bajiná - caminhar
x ilabun - dormir
x basqüade - levantar-se
x aú - matar
- na - traz
Fonte: BARRIOS PINTOS, Aníbal. Los aborígenes del Uruguay : del hombre primitivo a los últimos charrúas. Montevideo: Librería Linardi y Risso, 1991. p. 62-4.http://orbita.starmedia.com/~i.n.d.i.o.s/charrua1.htm