Sofrimento
dos escravos
Sermão
décimo quarto do Rosário, pregado na Bahia, à Irmandade
dos pretos de um engenho, em dia de São João Evangelista,
no ano de 1633, pelo padre Antônio Vieira.
[...] Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada
ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima
Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça,
e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me:
vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam
a vida sem lume da fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão
depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão
para o inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda
a eternidade. E que perecendo todos eles, e sendo sepultados
no inferno como Coré, vós
que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu? Vede se é
grande milagre da Providência e Misericórdia divina: Factum
est grande miraculum, ut Core pereunte filii illius non perirent. [...]
Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado, Imitatoribus Christi
crucifixi, porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo
Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua Paixão. A sua cruz foi
composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três.
Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram
na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra
vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte
foi de noite sem dormir, parte do dia sem descansar, e tais são
as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos;
Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós
maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as
chagas, os nomes afrontosos, de tudo isso se compõe a vossa imitação,
que se for acompanhada de paciência, também terá merecimento
de martírio. [...]
E que coisa há na confusão desse mundo mais semelhante ao
inferno que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior
fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta
definição de quem chamou a um engenho de açúcar
doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridade da noite aquelas
fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que estão
saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas, por
onde respiram o incêndio: os etíopes, ou ciclopes banhados
em suor tão negros como robustos que
subministram a grossa e dura matéria
ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras
ou lagos ferventes com os cachões sempre batidos e rebatidos, já
vomitando espumas, exalando nuvens de vapores mais de calor, que de fumo,
e tornando-os a chover para outra vez os exalar: o ruído das rodas,
das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente,
e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso:
quem vir em fim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela
Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto
Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno.
Mas se entre
todo esse ruído, as vozes que se
ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios
Dolorosos, todo esse inferno se converterá em Paraíso; o
ruído em harmonia celestial; e os homens, posto que pretos, em Anjos.
[...]
Os mistérios Dolorosos (ouçam-me agora) os Dolorosos são
os que vos pertencem a vós, como os Gososos aos que devendo tratar-vos
como irmãos, se chamam vossos Senhores. Eles mandam, e vós
servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós
trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós
colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos
mais doces do que os de vossas oficinas; mas toda essa doçura para
quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos
non vobis mellificatis apes.
O mesmo passa nas vossas colméias. As abelhas fabricam o mel, sim;
mas não para si. E posto que os que o logram é com tão
diferente fortuna da vossa; se vós porém souberdes aproveitar
dela, e conformá-la com o exemplo e paciência de Cristo, eu
vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces,
como foram ao mesmo Senhor: Dulce lignum, dulces clavos, dulcia feren
pondera; e que depois (que é o que só importa) assim
como agora imitando a São João, sois companheiros de Cristo
nos mistérios Dolorosos de sua cruz; assim o sereis nos Gloriosos
da sua Ressurreição e Ascensão. [...]Assim como Deus
vos fez herdeiros
de suas penas, assim o sereis também
de suas glórias: com a condição porém que não
só padeçais o que padeceis, senão que padeçais
com o mesmo Senhor, que isso quer dizer, compatimus. Não
basta só padecer com Cristo, como São João.
Oh como quisera e fora justo que também vossos senhores considerassem
bem aquela consequência: Si tamen compatimur, ut et conglorificemur.
Todos querem ir à glória, e ser glorificados com Cristo;
mas não querem padecer, nem ter parte na cruz com Cristo.
Lei Áurea
A Questão Negra
A escravidão humana no mundo ocidental já vinha sendo questionada
desde o século XVIII . Os filósofos iluministas e posteriormente
os princípios jacobinos da Revolução francesa professavam
a igualdade de nascimento entre todos os homens. Com a Revolução
Industrial essas idéias ganharam um novo contorno. P fim da escravidão
e o assalariamento da mão-de-obra ampliavam os mercados consumidores,
muito disputados pelos grandes industriais, principalmente ingleses.
Durante a primeira metade do século XIX , o rápido desenvolvimento
industrial na Europa e nos Estados Unidos promoveu um movimento internacional
pelo fim da escravidão. Muitos falavam por questões humanitárias
, outros tantos por interesses meramente econômicos. Seja como for,
a tendência de fim da escravidão impunha-se sobre o mundo
ocidental.
No Brasil, essas pressões internacionais já podem ser percebidas
nos tratados de 1810 e no reconhecimento da independência junto a
Inglaterra. Em ambos os casos, o Estado brasileiro comprometeu-se em abolir
a escravidão a médio prazo , o que não aconteceu.
Em 1844 as relações entre
Brasil e Inglaterra acirraran-se ainda mais com a adoção
das tarifas Alves Branco. Era o limite. O Parlamento inglês em 1845
criava o Bill Alberdeen decretando a proibição internacional
do trafico negreiro.
No Brasil a reação dos senhores de escravos, principalmente
os produtores de café, foi uma enorme corrida pela compra de novos
contingentes de negros, o que aumentou ainda mais o trafico no Atlântico.
A resposta inglesa não tardou. A partir de 1848 a marinha inglesa
passou a afundar navios negreiros inclusive nas águas territoriais,
chegando em alguns casos e desembarcar em terras brasileiras.
Criava-se uma tensão pré-guerra entre o Brasil e a maior
potencia mundial que não podia continuar. Em 1850 o numero de escravos
que entrava no Brasil havia se reduzido muito por conta da repressão
e não havia condições diplomáticas para manter
o trafico. É nesse momento que o Estado brasileiro implementa a
lei Eusébio de Queirós abolindo o trafico negreiro. A partir
desse momento uma nova realidade se impôs ao tema da escravidão:
era uma questão de tempo para que ela acabasse. O Congresso Nacional
apressou-se em criar nos meses seguintes a Lei da Terra, criando a propriedade
privada da terra. Mediante o fato de que a propriedade de escravos , que
garantia o status quo das elites brasileiras , era ameaçada, eles
fundaram um novo mecanismo de controle social: o acesso à terra.
Outra conseqüência importante do fim do trafico negreiro foi
um aumento significativo no preço dos escravos, o que acabou promovendo
fluxos migratórios de negros , obviamente forçados, do Nordeste
e de outras regiões para a região do café. Esse movimento
migratório e os inúmeros escravos comprados até a
proibição foram suficientes para suprir as necessidades dos
barões do café por cerca de duas décadas . No final
da década de 1860 a falta de mão-de-obra nas fazendas de
café, principalmente nas novas fronteiras agrícolas no oeste
paulista, tornou-se crônica.
A adoção de mão-de-obra assalariada era a solução.
O problema era que o nosso país , a partir de 1865, se tornou o
único no mundo ocidental a possuir escravidão institucionalizada,
o que assustava os imigrantes que preferiram outras regiões da América.
Motivo principal para a incipiente imigração ( comparada
a outras regiões do continente ate 1888 ) . O movimento abolicionista
ganhou um forte aliado: parte da elites cafeicultoras.
Movimento abolicionista ? Que movimento era esse ?
Esse movimento era formado por todos aqueles que eram favoráveis
ao fim da escravidão. Dele participavam negros livres e escravos.
As fugas de cativeiros aumentaram o que acirrava a falta de mão-de-obra.
Muitos movimentos populares e médio-urbano apoiaram. Não
nos esqueçamos que varias rebeliões populares no período
regencial falavam em acabar com a escravidão.
Não entendi! Dirá você.
Os setores populares, vários setores médio-urbanos e ate
os setores mais ricos da elites brasileiras queriam a abolição
da escravidão. Porque então ela não acontecia?
Perceba uma coisa, alem desse apoio social
pro-abolição ainda existiam as pressões internacionas
o que reforçava muito esse movimento.
O problema era que as elites que controlavam o congresso nacional não
queriam abolição e o imperador apesar de não poder
faze-lo não fazia. Preferiram manter o escravismo ate o seu esgotamento
completo. Pensando em termos sociais essa questão clareia o comportamento
desse Estado com o povo. As elites que detinham o poder político
preferiram seus privilegios de donas de seres humanos, entravando inclusive
o desenvolvimento econômico de outros setores da elite econômica.
Tanto o Partido Liberal quanto o conservador tornaram-se defensores da
conservação da escravidão.
A posição do Estado brasileiro acabou por desgasta-lo favorecendo
sua crise. Um bom exemplo dessa crise pode ser verificada no surgimento
em 1870 do Partido Republicano que a partir de 1871, com a convenção
de Itu , tornou-se a voz dos cafeicultores. Imagine, as elites responsáveis
por quase metade das exportações Brasileiras falava em Republica.
Enquanto isso o Congresso Nacional controlado
pelos setores mais conservadores das elites brasileiras buscavam prorrogar
a escravidão. Criaram leis com objetivos de diminuir as pressões
internacionais (as chamadas "leis para ingles ver ") como a do ventre livre
( 1871) e das sexagenário (1885) mas se negaram a discutir o tema
central: a abolição.
O desgaste provocado no Estado Imperial
brasileiro pelas pressões internas e externas a favor da abolição
e sua relutância em faze-lo estão entre as principais causas
de sua crise e do advento da Republica.
A crise do Império e o advento da Republica, alem da questão
negra tratada anteriormente, estavam ligados a uma serie de outros fatores.
Dentre estes, um de extrema importância refere-se a política
externa do segundo reinado.
Com a estabilidade da unidade nacional brasileira, o fim dos movimentos
separatistas, somados ao crescimento econômico trazido pelo café,
o Estado nacional brasileiro, agora fortalecido, passou adotar uma política
externa mais agressiva e independente.
Essa nova postura do Estado brasileiro em parte explica os conflitos diplomáticos
entre Brasil e Inglaterra que acabou culminando com o rompimento das relações
entre nosso país e o maior Imperio do mundo naquele momento.
As relações entre Brasil e Inglaterra já não
vinham bem desde os anos 40 . As tarifas Alves Branco de um lado e o Bill
Aberdeen de outro são bons exemplos.
A questão cristie (1861-1865) como ficaram conhecidos os choques
diplomáticos entre o embaixador Willian Cristie e o estado brasileiro,
representou somente o estopim. O rompimento por quase 3 anos entre a diplomacia
dos dois paises so foi resolvido com a interferência da comunidade
internacional que deu ganho de causa ao Brasil. Ficava claro para o Estado
e a sociedade brasileira que o Brasil era reconhecido como nação
soberana pela comunidade internacional, mesmo em se tratando de um conflito
com maior potencia mundial.
O fortalecimento do Estado-nacao não era um privilegio exclusivo
do Brasil naquele momento. Quase todos paises da América Latina
passavam por algo semelhante. Algumas décadas após os movimentos
dos de Independência vários paises buscavam naquele momento
uma afirmação de seus interesses regionais, tanto em termos
políticos, quanto econômicos e militares.
Os conflitos fronteiriços multiplicavan-se e as diplomacias foram
se tornando tensas culminando com varias guerras. Dentre estas, os conflitos
platinos nos quais o Brasil se envolveu mereceram um grande destaque.
www.multirio.rj.gov.br