O caso dos crânios trocados - Equívoco ou má-fé?

 

"Este livro... apresenta uma pesquisa cabal de como surgiu a vida - e o que isto significa para o futuro."

Prefácio do livro A Vida - Qual a sua origem? (1985), publicado pela Sociedade Torre de Vigia

         

     Com estas palavras a Sociedade Torre de Vigia - entidade governante das Testemunhas de Jeová - apresenta ao público um compêndio ímpar, o livro "Origem", como é mais conhecido. A obra pretende, em tese, 'alçar vôos' no campo da ciência, escrutinando teorias, derrubando preconceitos e expondo conjecturas usualmente expostas ao público leigo como fatos estabelecidos. A área em questão - a pugna secular entre "evolucionismo" e "criacionismo". Desde que o naturalista Charles Darwin publicou sua obra Origem das Espécies, no final do século 19, os debates sobre a existência ou não de um desígnio por trás da origem da vida tomaram a cena em diversos fóruns pelo mundo. Muito embora o naturalista inglês não fosse ateu nem negasse a existência de Deus em sua obra - a qual tratava de ciência, e não de religião - diversos grupos religiosos sentiram-se ofendidos com sua teoria e passaram a combatê-la de modo bastante passional. O fundador do movimento das Testemunhas de Jeová, o 'pastor' Russel, logo incluir-se-ia entre aqueles que apaixonadamente defendiam o criacionismo tradicional, baseado na interpretação literal do relato bíblico de Gênesis. Em 1898, ele publicou o compêndio A Bíblia versus a Teoria da Evolução, no qual, entre outras coisas, defendia a estranha idéia de que certos ramos da raça ariana na Europa tinham sido "especialmente abençoados por Deus".

    O livro mencionado no início deste artigo não é, pois, pioneiro em seu propósito de combater o pensamento evolucionista. Na verdade, ele representa a continuação de seu predecessor, lançado 18 anos antes (1967). Publicado em formato de bolso, seu título era Veio o Homem a Existir por Evolução ou Criação?. Assim, o último livro lançado, a saber, A Vida - Qual sua Origem?... , é - ou pretende ser - em todos os sentidos, uma espécie de aprimoramento de seu antecessor. Como outras obras publicadas pela Sociedade Torre de Vigia, também essa tem estado sob a crítica de diversos pesquisadores, os quais classificam a obra de 'pseudocientífica' e acusam os autores por fazerem citações científicas fora de contexto. Não é objetivo deste artigo entrar no mérito da questão de modo abrangente. O que nos chama a atenção - e é o nosso objeto de exame - é um conjunto de gravuras apresentadas no capítulo sete, intitulado "Homens-Macacos - O Que Eram?". Na página 94, vemos a representação de três crânios justapostos - identificados como pertencendo a um ser humano da atualidade, a um chimpanzé e a um fóssil de hominídeo (australopithecide). A gravura visa a produzir no leitor a impressão de que o fóssil guarda relação estreita com o chimpanzé e não com o ser humano. Que critério levaria a esta conclusão? Para os escritores da Sociedade Torre de Vigia, uma comparação morfológica dos crânios pareceu fazer sentido . Eis a figura:

Gravura do livro Origem da Vida (1985) - Cópia adulterada do livro antecessor

        O autor do livro salienta que as características do australopithecus (à esquerda) eram 'sobrepujantemente simiescas'. Na forma como os crânios são colocados acima, um ao lado do outro, é realmente forte a impressão causada no leitor de que o fóssil tem parentesco com o chimpanzé (ao centro), dificilmente tendo alguma vinculação com o ser humano atual (à direita). Todavia, a gravura acima apresenta uma peculiaridade que facilmente escapa aos olhos do leigo. Queira observar a gravura abaixo, extraída do livro antecessor (Veio o Homem a Existir por Evolução ou Criação?), na pág. 85:

Gravura do livro "Veio o Homem a Existir..." (1967) - A representação original

         Parece-lhe familiar a representação acima? Na verdade, trata-se essencialmente da mesma figura publicada no livro de 1985. O layout gráfico foi melhorado, mas a figura é  indiscutivelmente a mesma. Observe o crânio no alto, à esquerda - identificado como "macaco extinto" e compare-o ao da gravura anterior, identificado como "crânio de chimpanzé". A semelhança não é coincidência - os crânios são idênticos. Neste caso, é apropriado perguntar: afinal, o crânio é de um chimpanzé ou de um macaco extinto? Bem, há duas possibilidades: o autor não conhecia o aspecto de um crânio de chimpanzé ou apoiou-se na ignorância do leitor, o qual dificilmente perceberia a alteração na identificação. Na verdade, o crânio em questão não é de um chimpanzé. Mas, que interesse teriam os editores do livro em adulterar o texto? Sobre isso pode-se apenas conjeturar. Contudo, vislumbra-se uma hipótese: a exposição de um genuíno crânio de chimpanzé poderia levar a dificuldades. Vejamos: os chimpanzés possuem grandes caninos, os australopithecus, não. Pode parecer um insignificante detalhe, porém a arcada dentária dos australopithecus - notavelmente semelhante à dentição humana - é um dos aspectos anatômicos que os coloca como candidatos a membros na linhagem de seres que conduziram ao homem. Comparemos agora um verdadeiro crânio de chimpanzé com os outros dois, conforme a figura abaixo:

 

Crânio de Chimpanzé 

A comparação que a Sociedade Torre de Vigia provavelmente quis evitar

     Vemos acima um quadro que pode levar a conclusões diferentes daquela sugerida pelo livro "Origem". Lancemos mão do mesmíssimo critério da Sociedade Torre de Vigia, ou seja, a comparação das características gerais. Primeiro, repare na dentição do chimpanzé, com seus grandes caninos, ausentes tanto no fóssil como no homem. Este exame das arcadas mostra uma correspondência maior entre o fóssil e o ser humano, não entre o fóssil e o chimpanzé. Em seguida, repare nas saliências sobre as órbitas oculares, mais proeminentes no chimpanzé e mais suaves no australopithecus e no homem, o que torna este segundo mais próximo do ser humano do que o primeiro. Observe também a região posterior (occipital) da caixa craniana do fóssil, mais proeminente que a do chimpanzé e, portanto, mais próxima à do ser humano. Por último, um dos principais pontos que levou os cientistas a considerar o fóssil como um hominídeo está na sua forma de se locomover - ele era quase bípede. As figuras acima - limitadas ao crânio - impedem esta comparação, algo, sem dúvida, conveniente aos autores do livro.

     Em suma, um breve exame da gravura corrigida poderia fazer alguns leitores facilmente suporem que o fóssil poderia representar um 'elo' intermediário entre o homem e o chimpanzé - uma conclusão, sem dúvida, indesejável para os editores da Sociedade Torre de Vigia. Embora tal conclusão não esteja em acordo com a ciência - pois tudo indica que o chimpanzé é uma aparição mais recente no planeta do que o homem - também é verdade que ela é bem diferente daquela que o livro procura induzir no leitor menos avisado, ao ser confrontado com uma gravura que não corresponde à realidade.

     Todavia, não é objetivo deste artigo discutir se o australopithecus é ou não parente da espécie humana. Esta discussão cabe aos biólogos e paleontologistas mais que aos clérigos. O que parece preocupante neste caso é a medida de compromisso dos autores do livro com a verdade, afinal, no mesmíssimo capítulo da obra, o autor fez questão de denunciar a fraude do "homem de Piltdown" - uma grosseira falsificação de fóssil simiesco, a qual foi desmascarada em 1953 por cientistas (não por clérigos). Um certo Charles Dawson foi o autor da falsificação, por volta de 1912. Observe o leitor como o livro A Vida - Qual a sua Origem? expõe detalhadamente a fraude, na pág. 90:

A farsa do "homem de Piltdown" - rigor nos detalhes

     Conforme se vê acima, a Sociedade Torre de Vigia fez questão de representar a falsificação em seus mínimos detalhes, de modo a não deixar qualquer margem para dúvidas. Neste caso, é natural perguntar: Não parece estranho que o autor de tal denúncia rica em pormenores, no mesmíssimo capítulo da obra, de repente, deixe passar  por alto uma adulteração grotesca ao ponto de ressuscitar um macaco "extinto" em 1967 na forma de um falso chimpanzé atual em 1985? No que pertine ao rigor científico, não parece ter havido dois pesos e duas medidas? É claro, errar é humano. Contudo, é admissível que se busque o zelo pela verdade ao mesmo tempo em que se mostra tal descaso para com minúcias que, por sua relevância, podem afetar adversamente as conclusões a que se deseja chegar? Não significa isso induzir o leitor ao erro em um assunto da mais alta seriedade?

     Não há como saber o que se passou entre as paredes do departamento de redação em Brooklyn, por ocasião da elaboração deste compêndio. É certo, no entanto, que tal falha indubitavelmente lança dúvidas sobre a seriedade da obra. É igualmente intrigante o fato de, após decorrida mais de uma década desde o lançamento do livro A Vida - Qual sua Origem?, não tenha ele sido submetido a qualquer revisão nem se tenha feito qualquer menção desta falha grotesca, de modo a fornecer esclarecimento aos leitores. Neste caso, numa alusão ao prefácio do livro, perguntamos: quão "cabal" foi a pesquisa realizada pela  Sociedade Torre de Vigia? É de se estranhar que tal compêndio esteja, por anos, sob o "fogo cerrado" dos críticos em assuntos científicos? Foram os autores completamente honestos com você, leitor?

     Diante do que foi exposto, é possível parodiar a farsa do "homem de Piltdown", pois eis que, ao lado dele, figura também o "chimpanzé de Watchtower (Torre de Vigia)", incólume nas páginas de um livro cuja tiragem, só na primeira edição, atingiu dois milhões de exemplares. Parece-nos pouco provável que, a esta altura, venha a haver algum pronunciamento de seus autores sobre o assunto, pois isso suscitaria outros questionamentos com respeito à literatura das Testemunhas de Jeová - algo totalmente indesejável neste momento delicado de sua história, com este e muitos outros episódios  sendo veiculados pela rede mundial de computadores. 

     Fatos como este, embora quase imperceptíveis, fazem-nos lembrar as palavras de Cristo, em Lucas 16:10:

"Quem é fiel no mínimo, é também fiel no muito, e quem é injusto no mínimo, é também injusto no muito."

 

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